Originais: Areia e pólvora – Um conto inédito da Liga Extraordinária*

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nautilus

Decrépito. Fraco. Até mesmo pálido. Ossos à mostra para quem quiser caçoar. Em menos de uma estação, deitarei derradeiramente nesta terra batida, cuja poeira resseca meus cabelos. Nesta ilha vazia e irritante. Não é preciso mais para descrever o estado lastimável em que me encontro, a odiosa sensação de calmaria, o tédio irrefreável da mais absoluta paz.

Resta resmungar. Reclamar, a todos que possam ouvir, das mazelas dessa viagem longa e letárgica. Cada vez menos vêm ouvir este velho, o que é detestável, pois me obrigam a pôr estas velhas mãos para trabalhar. Há algum carvão que posso usar, mas os papéis são poucos, de modo que serei sucinto. Ao final de tudo, espero que seja realmente o fim, pois nada mais posso desejar deste mundo.

A todos que buscam entender os garranchos diante de seus olhos, saibam que este que vos escreve é Nemo, capitão dos mares livres. Ingovernável, irascível, metódico e prático. Jamais haverá outro. Não é este meu testamento. Não é igualmente o mapa para meu tesouro supostamente subtraído pelas profundezas abissais. Este é simplesmente o relato de um sonho que tive, fantasioso demais para repetir em voz alta, real o suficiente para jamais se esvair como brumas ao fim de sua apropriada estação.

Algo que sonhei ou vivi, em anos tão efervescentes de aventuras e tão prósperos de companheiros de batalha que minha mente febril parece ter alucinado, deixando-me à beira de um outro século, de um mundo e um futuro tão incompreensíveis quanto inimagináveis, em que as luzes dominavam o horizonte, incontroláveis e ferozes.

Como é peculiar nos sonhos, assim como em qualquer devaneio, num dado momento, pois, estamos apegados ao mundo material, pisando num convés realmente sólido ou simplesmente casando as abotoaduras, e noutro estamos emergindo o Náutilus numa praia, tão à frente da arrebentação que é como se fôssemos tatuís escapando da areia ao sabor de breves marolas. Não nos preocupamos com o impossível nos sonhos, apenas seguimos em frente, na mais completa naturalidade, desfrutando o caminho que se apresenta ou temendo-o de todo o coração. Antes que me decidisse por qualquer dos dois, desembainhei o aço que trazia em minha cintura assim que farejei o odor inconfundível da guerra.

Sim, era pólvora o que explodiu bem próximo a mim, cinco vezes, em intervalos muito pequenos. A quinta explosão era sempre a mais forte, e temi pelo pior no exato momento em que surgiram alguns de meus irmãos-em-armas, posicionados nos flancos, defensivamente.

O Sr. Quatermain segurava um rifle com o dobro do seu tamanho, embora fino como seus braços, parecia tão ameaçador quanto cauteloso. Percebi que olhava com certa dor para a Srta. Murray, como se preocupado com sua segurança. A senhorita, por seu turno, sibilava diante do perigo, como se estivesse sedenta pelo porvir. Estava devidamente trajada – não que eu me detivesse costumeiramente em tais detalhes, todavia, pude notar que não se encontrava com seu indefectível cachecol.

mapa

Enxergávamos além da umidade e do sal que flutuavam na beira d’água em forma de gotículas. Aos poucos, vimos o que teria sido melhor não ver. A maior turba que pude testemunhar em minhas inúmeras viagens. Maior do que a que encontrei na coroação do rei negro que uniu diversas tribos de mil desertos e oásis. Maior do que o número de colonizados largados à própria sorte em ajuntamentos insalubres em meu próprio país. Sim, aquela costa, embora estreita e descampada, abrigava uma formidável quantidade de pessoas. Inicialmente, concluí se tratar de um conflito entre povos ou nações, tribos ou clãs.

Meu contramestre, entretanto, despertou-me da ansiedade pelo conflito que se descortinava, ao segurar-me firme no ombro, de modo que eu observasse que estavam todos se movendo, se balançando em torno de seus próprios eixos, como em rituais de fertilidade ou em festas comemorativas de boas safras. Com isso, pude inferir que a pólvora estava sendo usada de modo controlado, em pequenos bastões, provavelmente na saudação a alguns de seus deuses. Não pareciam estar se matando. Porém, as luzes eram outra conversa. Intensas demais, faziam com que nossos rostos recuassem. Elas vinham de todas as direções, de incríveis naves voadoras, de torres de vidro, de carruagens enfileiradas e, principalmente, da mão de todos os presentes.

Era como se aquele brilho fosse o principal de seus deuses, pois prestavam reverência àquela luz em suas mãos a cada instante, tocando-a efusivamente, e apontando-a para as próprias cabeças, sorrindo desavergonhadamente com todos os dentes para tais luzes, que respondiam com um som breve e seco, como o de um graveto se quebrando.

Lembro-me que foi nesse momento que esfreguei com força os olhos, talvez esperando acordar e me livrar daquela situação desconfortável e confusa. Entretanto, o temporário breu apenas serviu para que eu notasse o constante ruído que era abafado pela pólvora, que explodia no céu em diferentes intervalos. Um ruído cadenciado, como o de tambores tocados por milhares de gigantes simultaneamente. Era algo irritante e deveras doloroso de se notar. Não havia trégua. Provavelmente feito para estimular uma espécie de transe coletivo. Eu não ficaria ali para descobrir.

Não havia muito o que fazer pelas pessoas. Numa guerra declarada sempre se pode tomar um lado. Numa situação como essa, a neutralidade soa como a melhor saída, e o Náutilus está diante de mim, acolhedor.

A tripulação adivinhou meu pensamento, como de costume, e já estavam posicionados, aguardando apenas a chegada de seu capitão à boca da fera para fechar as escotilhas. Eu não deveria ter me detido por um momento e olhado para trás. Não teria visto a terrível cena que vi. O Sr. Quatermain e a Srta. Murray deitados na areia, beijando-se sem qualquer pudor.

Naquele irremediável instante toda a política de não intervenção naufragara e temi que a população se sentira ultrajada por tão repugnante cena à vista de todos, posto que todo o ruído parou. O silêncio durou uma pequena eternidade, e confesso que foi uma das poucas vezes em que meu coração parou verdadeiramente.

nemo

Agarrei o arpéu enferrujado e disparei contra eles. Embora você, como um cavalheiro, possa considerar que teria sido uma forma honrosa de terminar com tal constrangimento, saiba que, ao menos no sonho, não matei o despudorado casal, apenas dei-lhes a oportunidade de serem puxados de volta pelo cabo do arpéu, salvando-os da fúria daquele povo que certamente os eliminaria, talvez refestelando-se com seus ossos.

E, assim, numa única girada de manivela fechamos as escotilhas, aceleramos sem freios e submergimos para nunca mais voltarmos àquela costa continental abaixo da África. Por pouco, o Naútilus não fora avariado pela ira daquela turba, que parecia pronta para tudo, pulando e gritando como loucos naquele exato momento, enquanto pareciam lançar suas armas contra nós, todas explodindo no céu, gigantes e ameaçadoras.

Não fosse o temor pela nossa segurança, não fosse toda a adrenalina que corria em nossas veias, poderia um dia ter dito a meus amigos, a meus irmãos, ao meu povo, como digo agora, que fiquei impressionado com todas aquelas luzes diáfanas retumbando no céu, toda aquela pólvora explodindo em cores e formas vibrantes. Parecia que, no fim das contas, havia uma rara beleza naquele espetáculo.

*Para redigir este conto, inspirei-me nos personagens imortais criados por Jules Verne, Henry Rider Haggard e Bram Stoker, e utilizados por Alan Moore em A Liga Extraordinária. Feliz 2014 a todos vocês.

Rodrigo Sava

Arqueólogo do Impossível em alguma Terra paralela

Este post tem 4 comentários

    1. Rodrigo Sava

      Agradecido, Colossus. E, não.. Temo que os velhos senhores de barba venham me apresentar suas cimitarras e penas afiadas. Entretanto, quem sabe? Gostei da sugestão ; )

      1. Harvey_o_Adevogado

        Do jeito que é o Alan Moore, você não terá problemas com direitos autorais.

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