Iluminamos: A Onda (2009) – “De boas intenções…”

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O texto a seguir se trata de uma resenha escrita em 2009 quando ainda era repórter/colaborador/crítico do site Cinetotal. Como a página saiu do ar, e com ela o arquivo dos três ou quatro anos de críticas, decidi publicar por aqui algumas delas que considero ainda relevantes. Esta, sem dúvidas, é uma delas.

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20110130232503!Die_Welle_(A_Onda)Era uma vez um homem chamado Adolf e ele só queria fortalecer seu país, completamente desestruturado após a Primeira Grande Guerra. Como todos sabem, dentre os métodos utilizados por ele estava incitar o ódio racial e o confronto direto com outras nações, consideradas inferiores, o que culminou na Segunda Guerra Mundial. Na história da humanidade existem centenas de acontecimentos trágicos como esse, muitas vezes insuflados por líderes bem-intencionados. Em “A Onda” (Die Welle), um exercício escolar, à primeira vista inocente, transforma alunos de uma escola alemã em fascistas em potencial.

O filme é baseado numa história real que na verdade aconteceu nos Estados Unidos. Em 1967, o professor Ron Jones propôs uma experiência a sua turma, eles tentariam simular como era viver sob a disciplina extrema de um regime autocrático (ditadura cujo poder está centrado num indivíduo ou pequeno grupo). O grupo foi chamado de “A Terceira Onda” – uma referência ao Terceiro Reich alemão –, e rapidamente se espalhou por toda a escola levando a atos de violência e vandalismo.

Quatorze anos depois, em 1981, o norte-americano Todd Strasser escreveu o livro “A Onda”, sob o pseudônimo Morton Rhue – curiosamente derivado das palavras morte e rua em francês (mort e rue). Antes mesmo de virar longa na Alemanha, o livro gerou um especial de tevê norte-americano que inclusive chegou a ganhar um prêmio Emmy. A obra é um Best-seller mundial e leitura obrigatória nas escolas germânicas, daí a necessidade de atualizá-la nesta nova produção (de 2008).

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O projeto ficou a cargo do promissor Dennis Gansel. Como diretor, ele já recebeu prêmios em diversos festivais europeus e seu trabalho em “A Onda” lhe rendeu uma indicação no Sundace. Gansel também participou da confecção do roteiro, dessa vez dividindo o crédito com seu amigo pessoal, e ex-colega de faculdade, Peter Thorwarth. Graças à dupla, o longa conseguiu produzir um retrato bastante fidedigno da sociedade alemã, sobretudo a juventude, ainda estigmatizada pelo nazismo. Assim como fez em seu último longa, “NaPolA – Antes da Queda”, Gansel não se acanhou na hora de tocar em temas sensíveis como anarquia, nazismo, consumo de drogas e delinquência juvenil.

Outra peça chave para o funcionamento da mecânica de “A Onda” é o elenco. Encabeçado pelo ator ganhador de um Urso de Prata do Festival de Berlim, Jürgen Vogel (o professor Rainer Wenger), o elenco ainda conta com jovem Frederick Lau que rouba a cena como perturbado Tim. Essa atuação lhe rendeu o prêmio de melhor ator coadjuvante no equivalente ao Oscar alemão.

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“A Onda” nos mostra o quanto a mente humana está sujeita a ideologias potencialmente perigosas. Começa sempre com uma boa iniciativa, depois vem o famoso discurso do “para um bem maior” e quando menos se espera as liberdades individuais estão em risco. No filme, um dos momentos que melhor ilustra este quadro é a cena da nomeação do grupo. Dentre os vários nomes escolhidos pelos alunos está “Clube dos Visionários”, revelando o quão tênue pode ser a linha que separa uma possível utopia de uma ditadura.

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Pegando um autor como Nietzsche ou até Spinoza e a crítica que, de certa forma, ambos fazem a ideia de moral, é possível observar como à luz de eventos recentes, como os justiçamentos, o slut shaming (tipo de assédio em que antagoniza-se a mulher por conta da expressão de sua liberdade sexual), e claro, o #somostodosmacacos e o linchamento público do jogador colombiano Zuniga (que tirou Neymar da Copa), que ela é uma construção social bastante arbitrária e, sobretudo, tendenciosa. Segundo Nietzsche, as ideias de bem e mal foram, grosso modo, “implantadas” na psique do homem pela religião, mais precisamente, o cristianismo, como forma de reforçar seu discurso doutrinador, ou, para não ser leviano com o pensamento do filósofo, que o pensamento religioso engendra essa polarização que só serve de fato para o enunciador. Só lembrar de dona Sheherazade, Malafaias, Bolsonazi e demais figuras públicas que propagam discursos de ódio e discriminação com base nos “valores cristãos”, “na moral e bons costumes”, entre outros.

Um desdobramento disto, em nosso mundo teoricamente muito mais secular, seria que a gente inventa e reinventa constantemente nossa própria moral de acordo com nossos interesses, nosso próprio ponto de vista. Somos sempre os mocinhos das nossas próprias histórias. O que se reflete na emblemática cena da seleção dos nomes no filme, mencionada na crítica, ou mesmo na escolha da Suástica pelo nazismo, sendo este um símbolo milenar de culturas hindus e/ou budistas, entre outras, e que significa basicamente bem-estar. Fora do contexto político-ideológico, isso se reflete na sociedade brasileira, hoje mesmo, na sua rua, na sua casa, no seu sofá, com os “cidadãos de bem”. Nada pode ser mais hipócrita, na minha humilde opinião, do que o dito “cidadão de bem pagador de seus impostos” que se arvora em seu “bom-mocismo” e “correção moral” (o que hoje independe de religião) para exigir o “espancamento do bandido”, a morte dos “corruptos” ou denunciar o “vagabundo que recebe ajuda do governo pra não trabalhar”.

O legado desse longa, espera-se, não é que você assista e pense, “nossa, como esses alemães são malvados”. Muito pelo contrário, “nossa, como uma ideia pode tomar dimensões catastróficas e isso pode acontecer com um e em qualquer lugar”. Não é com o fascismo que a gente tem que se preocupar, mas de onde ele vem, de nossas construções de bem e mal.

 

Zé Messias

Jornalista não praticante, projeto de professor universitário, fraude e nerd em tempo integral cash advance online.

Este post tem 3 comentários

  1. Não gosto de comentar nos posts do site, mas esse mereceu. Revi o filme semana passada e cogitei fazer um iluminamos dele, mas você foi mais rápido!!!

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