Clube da luluzinha e o advento do Tubby

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Em primeiro lugar, é preciso registrar de onde se fala. Na internet, justamente a Meca dos anônimos mal intencionados e dos leitores com pouca capacidade interpretativa (não é o caso de vocês, claro), acho fundamental para um texto de blog mostrar de cara suas cores e não passar uma falsa ideia de opinião imparcial e verdadeira acima de qualquer suspeita e escrutínio – o que frequentemente acontece quando se tenta advogar por alguma causa geralmente disfarçando seus próprios interesses como opinião culta ou intelectualizada (como o fazem Olavos de Carvalho, Danilos Gentili da vida, e mais recentemente o próprio Lobão). Assim como a máxima “traduzir é trair”, opinar, comentar e/ou criticar é se posicionar.

Parafraseando outro equivocado na vida, "véi, tu traiu o movimento punk"
Parafraseando outro equivocado na vida, “véio, tu traiu o movimento punk”.

Dito isso, devo dizer que sendo um nerd de raiz, muito provavelmente não fui avaliado, para o bem ou para o mal, no famigerado aplicativo Lulu. Afinal, nerd, via de regra, não pega mulher na balada (ele mal consegue se dar bem em show de rock, convenção de quadrinhos e outros lugares em que tem alguma intimidade). Das duas uma, ou ele morre solteiro ou tem uma (no máximo, duas) namorada na vida toda e eventualmente se casa com ela. Como cavalos-marinhos, abutres e cupins, nerds são andróginos, meio afeminados, repulsivos e, sobretudo, acasalam pra vida toda.

Logo, pra começo de conversa, não tenho muito motivo pra ficar chateado com o Lulu e muito menos teria interesse em entrar no Tubby – caso ele fosse real, o que aparentemente não é – como é possível ver por essa matéria da Folha. Mesmo assim, entendo caso algum leitor que tenha sido avaliado, humilhado ou coisa parecida tenha um certo sentimento de revanche e que ache bem feito a suposta criação do Tubby para poder devolver a ofensa. No entanto, meu caro, sinto lhe informar, não é a mesma coisa! Obviamente, nesse ponto, faz-se necessária uma explicação para o leitor meio desavisado que não participa de redes sociais e não sabe do que cargas d’água do que estou falando.

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Sob o ponto de vista social, chamar uma mulher de machista é uma inverdade. Afinal, o oprimido não pode ser confundido com o opressor.Mas pode se dizer que essa é uma reprodução de um comportamento machista

O lulu seria um aplicativo relacionado ao Facebook que serve para mulheres avaliarem homens (namorados, ficantes e peguetes, ex e atuais, mas também amigos, colegas etc.), por meio de notas e hashtags como #nãolavaalouça #mãoaberta #caideboca etc., para outras mulheres. Ou seja, como diz o nome, seria a reinvenção cibernética do Clube da Luluzinha, daí o nome (lembrando que o aplicativo não é originalmente brasileiro, mas creio que a expressão seja meio que universal). A suposta polêmica está rolando faz umas duas semanas, homens indignados falam de vingança, extinção do sexo frágil, objetificação etc. Como a maioria de nós do Mundo Nerd – teoricamente mais civilizado e mais gentil no romance e na paquera –, não tenho nada a ver com isso, e devo dizer que até achei uma justa inversão de papéis.

O problema mesmo era sobre privacidade, mineração de dados e exposição pessoal explorada pelo capitalismo de hoje, algo bem complexo e que envolve a maneira como as empresas ganham dinheiro através da nossa vida pessoal – algo pertencente ao campo do capitalismo cognitivo que estudo no doutorado e que merece um grande texto no futuro.

Passei a me interessar mesmo pela questão, do ponto de vista dos gêneros, quando surgiram os rumores de um Tubby, um lulu somente para homens, e de cunho exclusivamente sexual com hashtags como #engole #analvoluntário #menage, entre outras. Novamente preciso dizer que o aplicativo é “falso”, ou melhor dizendo, não é um boato, ele é real, mas aparentemente se trata apenas de um chamariz para fazer mulheres correrem para se descadastrar e assim terem seus dados (amigos, fotos, informações pessoais etc.) minerados pelo programa e posteriormente utilizados para um fim que ninguém sabe bem qual é.

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Exemplo, jocoso, claro, de como seria a interface do lulu

Lembrando de um ótimo texto que li sobre racismo escrito por uma mulher branca, resolvi devolver o favor e escrever algumas linhas sobre como a objetificação feminina e masculina são diferentes – embora nenhuma das duas seja “correta” – e,  no caso da primeira, muito mais perversa. Não que as mulheres precisem ser defendidas por um homem, antes que azamigafeminista venham me gongar, só achei que da mesma forma que sou praticamente ignorado quando falo de racismo por ser negro – sendo tachado “sensível demais” ou revanchista –, um pouco de perspectiva fora da caixa poderia ser interessante.

Como o negro, a mulher é uma “classe” ou um grupo histórica e socialmente oprimido, marginalizado, desvalorizado, subestimado, como preferirem (não esquecendo a comunidade LGBT, claro). Dessa forma, ofensas aos dois nunca são realmente “só ofensas”, elas passam por séculos (e séculos e séculos) de uma “sabotagem sistemática”, de uma cultura de segregação e diferença endêmica que está tão impregnada na nossa sociedade que ela nos caracteriza e nos influencia antes mesmo de dizermos ou pensarmos algo. É como aquele provérbio japonês, “nossos cílios estão tão próximos que não os enxergamos”.

Por isso que prefiro trabalhar com duas categorias SEMPRE: existe a ofensa e existe o preconceito (étnico, de gênero, orientação etc.). Por exemplo, qualquer pessoa pode se sentir ofendida por qualquer coisa, ser chamado de gordo, magro, feio, careca, burro, muito inteligente ou muito bonito (existe!), e aí pra isso tem aquele PROCESSO CIVIL de dano moral, calúnia e difamação ou qualquer que seja o nome jurídico correto. Já o preconceito, a discriminação e a injúria racial, de gênero, entre outras, são questões CRIMINAIS (ou deveriam ser, no caso da de orientação sexual que ainda não é tratada como tal), é outra esfera. Você pode se sentir ofendido e não ser preconceito e você ter sido de vítima injúria racial ou de gênero mesmo não tendo ficado ofendido ou desmoralizado. O caso do Direito foi só um exemplo e nem muito bom, porque aparentemente essas diferenças nem estão assim tão clara em nossos códigos civil e penal (assim como ainda não temos uma legislação contra homofobia e as questão de gênero em geral), mas ele dá um indício de onde quero chegar.

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Por falar em processo…

Isso envolve justamente aquelas questões de justiça social e reparação histórica que muita gente prefere ignorar na hora de discutir racismo e ou discriminação contra a mulher, como se fossem uma invencionice de sociológicos, assistentes sociais e antropólogos – resumindo, “essa gente de Humanas que não serve pra nada” (incluindo os jornalistas. No caso, eu). É impressionante como “todo mundo” aceita a opinião do engenheiro, do “informático”, do médico, do advogado, do físico e do químico sobre suas áreas de expertise, mas “todo mundo” se acha autorizado a discutir de igual para igual com um profissional ou pesquisador que passou boa parte da vida estudando o social e os meandros da vida em conjunto pelo simples fato de também viver em sociedade.

Não que se deva aceitar passivamente argumentos de autoridade vindos de qualquer um ou que seja necessário um diploma em ciências sociais pra falar da sociedade (embora dê vontade de exigir um ao discutir com alguns sujeitos). Questionar e debater são direitos e deveres de todos, mas devo dizer que às vezes cansa….rs

Voltando a mulher, desta forma, é injusto, e até meio surreal, comparar um aplicativo que objetifica homens por ter um potencial revanchista e ofensivo (e até tem mesmo) com a situação BRUTAL em que se encontra a mulher com sua sexualidade, ainda hoje, julgada, examinada e regulada, e seus direitos violados ou simplesmente não considerados. Exemplos corriqueiros e até “batidos”, mas aparentemente não ouvidos o suficientes, são o da mulher de vida sexual ativa que é “piranha”; da mulher responsabilizada pelo próprio estupro, e outras formas de violência, por causa da forma como se veste; ou, mais recentemente, da mulher hostilizada (e que se mata) quando o parceiro “vaza” um vídeo íntimo enquanto ele, o homem, não recebe nenhum tipo de julgamento social ou moral (e é até ovacionado, por sua virilidade, masculinidade…).

Duas ideias certamente derivadas do machismo nosso de cada dia, no entanto, uma mais perigosa do que a outra
Duas ideias certamente derivadas do machismo nosso de cada dia, no entanto, uma mais perigosa do que a outra.

Por essas e outras (muitas outras, infelizmente), sempre recorro ao livro do Stieg Larsson e seu título original, “Os homens que não amavam as mulheres”. Não pelo brilhantismo literário ou pelos homens retratados na obra – estupradores, espancadores e canalhas de maneira geral – numa Suécia, “país de Primeiro Mundo”, contemporânea, mas pelo entendimento de que não são apenas os vilões da história que são os responsáveis por esse quadro. Não tenho medo de dizer que, de certa forma, todos nós odiamos um pouco as mulheres (da mesma forma que digo que nós brasileiros somos racistas, diga-se de passagem, ao contrário do que Ali Kammel pensa, e que isso não é só uma questão socioeconômica) quando autorizamos, nos calamos, menosprezamos ou mesmo assistimos e compartilhamos esses casos de violência contra a mulher e vemos como algo natural e acabamos contribuindo para sociedade ficar um pouco mais obtusa (eu incluso, claro. Como autointitulado onanista residente do Iluminerds, não tenho como escapar).

https://youtu.be7K0FjQieQYw

Machista não é (só) o cara que bate na mulher ou o que acha que lugar de mulher é na cozinha, mas quem acredita que assédio sexual é brincadeira ou histeria; beijo roubado não é violência; o tamanho da saia seja referencial de honra ou moral; quem promove insegurança ao criar e reproduzir a valorização de determinado padrão estético; ou que as mulheres têm um papel ou espaço predeterminado X ou Y.  Tanto no lulu quanto no tubby – se vier a existir um –, as mulheres ainda são as vítimas, são elas, em última análise, que estão se expondo e são elas o foco da discussão – o que seria ou não seu comportamento adequado/apropriado. O mote deste texto é mostrar que nós ainda “estamos por cima”, ainda colocamos a mulher numa posição subserviente na sociedade, os salários ainda são menores, elas ainda não sofrem violência, ainda são forçadas a provar algo pra serem consideradas iguais, a escolher entre carreira ou família etc. A partir do momento em que negamos que haja um problema e que negamos e condenamos a expressão da feminilidade, não somos muito melhores do que o estuprador, o apalpador, o misógino.

Resumindo, ela não “está pedindo”, ela não “mereceu” e, principalmente, você não pode expor uma mulher só porque ela te expos primeiro – as consequências são muito diferentes e a repercussão e o impacto não são os mesmos.

Zé Messias

Jornalista não praticante, projeto de professor universitário, fraude e nerd em tempo integral cash advance online.

Este post tem 4 comentários

  1. Gustavo Audi

    Se depois deste texto você não comer ninguém, nada o fará…

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