Nos Tempos do Politicamente (In)Correto

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Perceberam que o passado de uma geração é sempre melhor que o da seguinte? Por exemplo, as crianças brincavam mais, corriam mais, comiam melhor e não eram viciadas em coisas eletrônicas; o bullying não tinha este nome e era considerado uma “lição para a vida”; havia respeito com os pais e disciplina nas escolas; menino era menino (guerreiro, sem choro e jogador de futebol) e menina era menina (meiga, submissa e dançarina de balé). Certas pessoas enchem a boca para falar que antigamente era bem melhor que agora.

Como em qualquer época, há um conflito de gerações e mentalidades a respeito da maneira de se comportar e de educar os filhos para o mundo. De um lado, a nostalgia – aquela sensação de tempo agradável em que as coisas eram simples, mas que não voltará mais; e do outro, o contemporâneo – aquela sensação de pressa e complexificação da vida. É o Antigo – eficiente e simples – contra o Novo – confuso e imaturo. Esta visão romântica do passado leva ao questionamento sobre se o presente é verdadeiramente o modo correto de se preparar para o futuro…

Esta dúvida é natural. Regularmente, questiono-me em relação à criação da minha filha. Será que estou exagerando quando tento não repetir o mesmo modelo das gerações anteriores? Por que ir contra algo que aparentemente dá certo – afinal, não sou exemplo prático deste processo? A dúvida vem, mas vai embora assim que me lembro do estado atual da sociedade: forte crise ética e moral, temperada com bastante ódio. Então, a questão que fica é: se o passado era tão bom, por que enfrentamos tantos problemas agora? Talvez, esta criação não seja assim tão eficaz, concorda?

Menino sagaz…

Mas, e talvez também, a desobediência ao modo tradicional possa ser fonte dos problemas. Se aceitarmos o mesmo modelo, ainda estaríamos em crise? Realmente, é um argumento válido, porém, perde força frente à incontestável dinâmica da existência, em que nada é permanente – como bem dizia Heráclito, em torno de 500 a.C: “tudo flui e nada permanece; tudo cede e nada fica fixo. Você não pode pisar duas vezes no mesmo rio, pois outras águas e, ainda, outras vão fluir.” O mundo não fica parado. E nem nós.

Há uma tentativa de simplificação da vida por meio da polarização de pensamentos. É mais fácil rotular do que admitir nuanças de personalidade. Hoje, reconhecer espectros da verdade é considerado enfraquecimento do argumento, como se a razão só pudesse existir se plenamente aceita pelo outro. No jogo da vida, só se permite soma zero – para um ganhar, outro deve perder. Este egoísmo impede qualquer tipo de empatia, isto é, de se colocar em outra realidade e realmente sentir o momento. No caso do conflito de gerações e mentalidades, a imutabilidade do passado aparentemente o credenciaria como melhor solução para o presente; é um esquecimento voluntário dos pontos negativos para deixar apenas aquilo que mais agrada – mas se esquece de que ele é uma das causas da atual situação. E nisso entra um dos pontos que colaboram para a crescente crise: a crítica ao politicamente correto.

Reflexo do embate de mentalidades, a internet é repleta de discussões acaloradas, muitas vezes violentas, a respeito do que pode ou não ser dito ou publicado online. Enquanto para uns é ofensa, para outros, apenas liberdade de expressão ou brincadeira. O fervor dos debates alcança até a comédia com a tão intrincada pergunta: qual o limite do humor?

Este questionamento chama atenção para o ponto-chave das discussões: limite. Qualquer debate precisa levar em consideração três passos: reconhecer sua existência; saber que cada pessoa pode ter um; e respeitá-lo. O politicamente correto valoriza o limite de cada indivíduo, impondo em seus discursos algo extremamente valioso: respeito. Pense no politicamente correto como uma “metodologia de jogo de cintura” – como você não conhece a pessoa do outro lado, não se arrisque falando ou fazendo algo potencialmente ofensivo.

Não é frescura ser politicamente correto, é apenas educado.

Seja legal. É de graça.

Na vida privada, os limites dependem exclusivamente das relações já existentes – nestes casos, uma pessoa “de fora” não tem de se meter, pois quem estabelece as fronteiras são os próprios envolvidos. Por outro lado, considerar limites mais baixos, isto é, mais frágeis, é extremamente importante na vida pública, pois nunca se sabe como o outro lado poderá interpretar o evento.

Além disso, não existe “piadinha inofensiva” quando ela é sistematicamente confirmada e repetida nos grupos sociais. O desenvolvimento cognitivo depende de pequenas inserções conceituais que ocorrem no dia a dia das pessoas, por isso, o que parece sem importância agora, como esta “piadinha”, será fonte para a formação da personalidade. Comentários misóginos vão influenciar a formação da visão de mundo das crianças.

O discurso politicamente correto não existe para o adulto mudar seu modo de pensar. Ele existe para mudar seu modo de agir e, assim, permitir que as crianças cresçam sem os preconceitos, medos e inseguranças que tanto nos definem.

Uma característica que difere a criação entre as gerações é o nível de tolerância frente a ofensas e preconceitos. Na década de 1980, era permitido (ou tolerável socialmente) falar e fazer certas coisas que, hoje, são questionadas. Claro que devemos considerar a existência de pessoas excessivamente frágeis que veem problema em quase tudo. Por exemplo, pais que protegem seus filhos de qualquer tipo de frustração criam verdadeiros bonecos de porcelana, incapazes de lidar com a derrota ou oposição e, assim, sentindo-se ofendidos por qualquer coisa. Também, muitas vezes, como a desonestidade existe em qualquer pessoa, um comentário é considerado ofensa e utilizado apenas como oportunidade para justificar outras ações. Infelizmente, o vitimismo existe.

Obviamente, todos nós daremos escorregadas e falaremos ou faremos algo que ofenderá alguém ou algum grupo. O que fazer nestas horas? Rir e dizer que não é sério? Pedir para relaxarem? Ou simplesmente afirmar que não fará novamente? Pense comigo: você realmente precisar repetir aquela piada sobre pessoas em cadeiras de rodas? Qual a necessidade de, orgulhosamente, confirmar seu preconceito ou atitude grosseira?

A verdade é que reclamar do politicamente correto é apenas uma forma de justificar a própria babaquice. E ninguém precisaria ser babaca para viver em sociedade…

Dedé Santana, Renato Aragão, Zacarias e Mussum, no programa “Os Trapalhões”, da Rede Globo.

Mudança de comportamento não significa negação do passado. É possível reconfigurar o cérebro sem, no entanto, desvalorizar o que já passou. Por exemplo, nós podemos exigir piadas não racistas e, ao mesmo tempo, reconhecer o valor de Os Trapalhões. Ou, ainda, estimular a presença da mulher no mercado de trabalho e admirar nossas avós exclusivamente donas de casa.

Muitos afirmam que o mundo politicamente correto é chato. Entretanto, tal interpretação depende da própria referência do que seria legal. É fácil considerar um mundo tranquilo quando suas características não são questionadas, depreciadas ou utilizadas gratuitamente para humilha-lo ou justificar superioridade. Volto aqui a citar a empatia. Tente se colocar no lugar da pessoa sendo “zoada”, tente saber o que ela está sentido antes de desvalorizar uma reação. Gosto de dar como exemplo sobre tolerância a ofensas algo que presenciei. Tenho um amigo com a cabeça antiga (que considera o politicamente correto um mimimi), chamado Almeida (que não é o nome verdadeiro, claro). Almeida é torcedor de futebol doente, daqueles que deixam de ir aos aniversários dos amigos para assistir a jogos. É o típico torcedor que gosta de sacanear e xingar os adversários e acha que isso faz parte do futebol. Um dia, questionei-o e ele confirmou que é normal, que a pessoa deveria levar numa boa, que é apenas brincadeira – e não apenas no universo do futebol, para ele, o bullying é besteira. Contudo, após o seu time ser eliminado de um campeonato, um amigo em comum, no nosso grupo de Whatsapp, resolveu zoa-lo. Eis que Almeida responde com um pedido: não ser sacaneado por estar muito recente, que ainda estava chateado com a eliminação. Ou seja, quando a ofensa foi sentida, ela passou a ser um problema a ser evitado, por isso o pedido para “pegar leve”.

O que Almeida solicitou foi apenas que nosso amigo se colocasse em seu lugar de sofrimento, que tivesse empatia e não o provocasse. E é isso o que as pessoas politicamente corretas chamam atenção: se você não se sente ofendido, não quer dizer que o ato não o seja. O que Almeida não percebeu é que cada pessoa tem seu limite, e este limite é válido independentemente da sua opinião. Almeida possui um limite em relação à derrota no futebol e devemos respeita-lo (mesmo que ele não mereça).

Um dos maiores problemas do politicamente incorreto (ou da crítica ao politicamente correto) ocorre quando o preconceito é mascarado de humor ou posição política. Qualquer discurso é validado sob o crivo da liberdade de expressão. Entretanto, a liberdade de expressão não dá o direito de ser desrespeitoso – é possível criticar ou apontar algo sem ser ofensivo. Em qualquer relação social, principalmente na internet, é preciso um mínimo de ponderação para o bom convívio. Diminuir características ou estados dos outros não é brincadeira inofensiva, é pura babaquice mesmo. E, de novo: não é porque antigamente não era assim que estava certo. As coisas mudam.

Não seja como o Almeida…

Gustavo Audi

Se fosse uma entrevista de emprego, diria: inteligente, esforçado e cujo maior defeito é cobrar demais de si mesmo... Como não é, digo apenas que sou apaixonado por jogos, histórias e cultura nerd.

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