Coisas de Meninos, Coisas de Meninas

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Esse é um texto para todas as pessoas que quando pensam em ciência, pensam em coroas de branco, segurando pipetas e potes de vidro, em laboratórios cheios de substâncias coloridas e esfumaçantes. Sim, meu caro, para você que acha que ciência envolve apenas matemática, física, química ou biologia.

Já há algum tempo, circula pelas interwebs e whatsapps, o vídeo de uma médica chamada Carla Dorgam. Nele, ela critica a inclusão da ideologia de gênero nas escolas, supostamente apresentando dados científicos que comprovam a inexistência de influência sociocultural no comportamento das pessoas. De maneira geral, e indiretamente, ela desqualifica e exclui argumentos sociais dos estudos de comportamento – pelo menos, aplicados a este caso – como se esta abordagem não tivesse credibilidade científica.

Primeiro, vamos falar sobre o que a médica relata. Depois, passaremos ao documento que ela cita.

“Venho falar de ciência, não de percepções sociais.”

É só estudar a história da ciência para constatar que ela sempre esteve atrelada ao social. Inclusive, a ciência teve origem na Filosofia (com o desejo pelo saber), com os pré-socráticos, sendo mais sistematizada e estruturada após o séc. XVI – principalmente, devido ao Renascimento. As ciências sociais e humanas seguem o mesmo rigor metodológico que as ciências exatas, com um adendo: já passamos da fase modernista de considerar que os saberes são independentes entre si…

Além disso, um Doutor é PhD: philosophy doctor! Philosophy, motherfucker!

“Não há base científica nenhuma que suporte os ideólogos de gênero.”

O documento pelo qual ela se pauta não cita nenhum outro estudo específico, com ou sem base científica, em relação à defesa da ideologia de gênero; ela apenas discorda da conclusão oposta a sua. Então, como pode afirmar que não existem fundamentos que suportem a ideologia de gênero? No mínimo, deveria reconhecer que desconsiderou qualquer estudo neste sentido. Ou que nem correu atrás para saber…

É fácil encontrar referências que, no mínimo, desestabilizariam a fala de Carla Dorgam. O texto “Cérebro de homem e cérebro de mulher”, escrito por Aline Dantas (neurocientista, neuroeconomista e pesquisadora na Universidade de Maastricht, na Holanda), apresenta argumentos que comprovam a influência social sobre o comportamento – muito mais do que a fisiologia cerebral – e aponta que as diferenças entre homem e mulher são muito mais consequências do que causas. E ela afirma estas coisas com base em pesquisas da área neurocientífica. Não é “percepção social”, não, tá?

Carla Dorgam é um bom exemplo do viés da confirmação, uma das tendências cognitivas de personalidade que influencia o comportamento a apenas buscar e interpretar informações que confirmem crenças preexistentes, ignorando aquelas que as enfraqueceriam – é a confortável bolha de conhecimento.

“Vou comentar aqui a título de exemplo apenas uma dessas várias linhas de estudo (…).”

O documento aponta apenas duas: 1) mulher e homem são construções sociais e culturais, logo não existem; e 2) os seres humanos, ao nascer, são “páginas em branco”, cujos dados são preenchidos pela sociedade. Na verdade, o uso do vocábulo “váaaaarias”, prolongando a vogal, serve apenas para sugerir quantidade elevada de opções. É para ficar bonito.

“A ciência prova justamente o oposto a alegações desta natureza. Vários estudos com primatas evidenciam a preponderante tendência de machos a se comportarem como machos e escolherem brinquedos tidos por tipicamente masculinos (…). Não há cultura aqui, portanto isso aí não depende de fator cultural.”

Mmm… Tendi.

Pera aí… Quer dizer que estudos feitos com seres humanos não são válidos para explicar o comportamento humano, mas feitos com primatas são? Parabéns, você não faz sentido…

O que ela faz é desqualificar pesquisas com pessoas para validar apenas aquelas feitas com macacos. Talvez seja mais fácil simular um ambiente controlado com primatas do que com pessoas, mas daí negar estudos com humanos para defender com outros animais é meio forçado…

“Portanto, em gênero, a influência social, se existe, não é crucial e, se atua, é dentro dos limites que o próprio corpo já traz em si.”

Ela nega a influência social. Sério mesmo? Quer dizer que nosso comportamento enquanto homens e mulheres não são direcionados pelo contexto em que vivemos? Deixe-me perguntar uma coisa antes de continuar: ser homem e ser mulher, ao longo da história, é sempre o mesmo ou os modos de se comportar são continuamente alterados com o tempo?

Uma vez que já comentei sobre as colocações da médica, para responder esta questão, passarei para o conteúdo a que ela se refere. O documento citado se chama Contribuição e Apelo Médico-Científico Acerca da Terceira Versão da Base Nacional Comum Curricular, e possui 12 autores doutores (se são doutores por serem médicos ou se são doutores por terem estudado doutorado, eu não sei… Mas fica registrado meu preconceito).

Uma coisa eu concordo: a ideologia de gênero não deveria ser ensinada para crianças e adolescentes. Não por não existir, mas porque discordo de uma abordagem direta sobre o assunto. Além do mais, esta responsabilidade é minha como pai, não das escolas. No entanto, o foco aqui é apenas no que diz respeito à desvalorização do social enquanto ciência; não pretendo entrar no debate a respeito desta inclusão ou de como educar crianças e adolescentes. Ok?

Algo que os estudos científicos aplicam hoje é a junção de diferentes saberes e áreas, mas o texto desconsidera isto, pois se baseia apenas no conhecimento biológico, como sendo a única ciência “de verdade” – a fala de Carla deixa isto bem claro também. O maior equívoco do texto é crer que pesquisas no âmbito sociocultural carecem de rigor metodológico, como se a verificação e análise lógica do processo investigativo (questionamentos, levantamento de hipóteses, observação empírica e criação de teorias), fato que legitima uma pesquisa, fossem exclusividade da área biomédica.

Menina brinca de super-herói?

Outra armadilha em que o documento cai é fazer uso de conceitos sociais para desqualificar argumentos sociais. Considerar “coisas de menino” e “coisas de menina” pressupõe interpretação, julgamento que tem como base o ambiente que nos cerca e as relações que travamos com outros seres e objetos. A definição de brinquedos “tipicamente masculinos e femininos” é, em si, uma expressão sociocultural – são produtos confeccionados por adultos, que utilizam seus conhecimentos para seguir ou criar tendências de consumo. Antes de produtos que espelham uma condição biológica, são produtos que refletem escolhas socioculturais e mercadológicas. Podemos basicamente distinguir dois tipos de brinquedos: educativos e de entretenimento. Os primeiros não visam gênero, apenas desenvolvimento cognitivo. Os segundos visam consumo, logo, precisam ser atraentes. Neste caso, as escolhas estéticas são fortemente pautadas pelo potencial de venda, não simplesmente pelo gênero da criança – seria mais correto afirmar que um brinquedo possui o marketing voltado para meninos do que dizer que ele é “tipicamente para meninos”. Assim, escolhas não são guiadas apenas pelo instinto ou programação genética. Se fôssemos guiados apenas pelo biológico, não existira moda, apenas respostas genéticas, concorda?

Sob esta perspectiva, como encarar uma menina que gosta de futebol, atividade considerada “tipicamente masculina”? Diferença hormonal influenciando sua preferência pelo esporte? Ela teria tendências masculinas? Futebol ser considerado atividade masculina é claramente uma posição pessoal corroborada pelo imaginário social. Minha filha de 5 anos, por exemplo, adora jogar bola. Já cansei de ouvir comentários surpresos a respeito da iniciativa. Agora, imagine o que se passa na cabeça dela ao presenciar diversas pessoas estranhando e até declarando que uma menina jogando futebol é diferente – em tempos de autoafirmação (adolescência), ela pode facilmente desistir de jogar bola para se sentir incluída em um grupo.

Para ilustrar: o salto alto, originalmente, era para homens também (ajudavam a montar cavalos, por exemplo). Desde o Egito antigo, passando pela Idade Média e Renascença, diversas atividades eram executadas com esses sapados – e isso foi até o séc. XVIII, quando a Revolução Francesa meio que criou um preconceito sobre a peça (era “aristocrático” demais). Naturalmente, hoje, um menino deveria se sentir atraído por utiliza-lo, pois seria “tipicamente masculino” (já que um dia foi; então, está em nosso cérebro, certo?). No entanto, são as meninas que gostam – ou dizem gostar. Neste caso, o que foi alterado: a definição do que é “tipicamente masculino e feminino” (perspectiva social) ou a ação hormonal (perspectiva biológica)? A verdade é que o uso do salto alto flutua ao longo da história, isto é, depende do contexto sociocultural, e, no caso da França, político.

O que quero deixar claro é que, de fato, conforme as pesquisas indicam, há uma condição genética que direciona o comportamento. Escolhas que diferenciam os gêneros nas relações sociais podem ter origem fisiológica. Por outro lado, o ambiente social tem força suficiente para alterar esta programação – fato comprovado por outras pesquisas, que também utilizam o método científico citado pelo documento. O ambiente e as relações sociais possuem forte influência no processo cognitivo, consequentemente (e naturalmente) impactam diretamente no comportamento do indivíduo.

Quando alguém fala “página em branco”, não quer dizer ausência de diretrizes ou assexualidade, mas sim, a existência de um potencial para mudanças. O que é ótimo para a sociedade. Do contrário, se o homem se limitasse a seguir estritamente sua programação genética, não evoluindo como ser social capaz de organizar comunidades cada vez maiores e marcadas, principalmente, pela cultura, ele ainda estaria vivendo como nômade – caçando e coletando para sobreviver…

Gustavo Audi

Se fosse uma entrevista de emprego, diria: inteligente, esforçado e cujo maior defeito é cobrar demais de si mesmo... Como não é, digo apenas que sou apaixonado por jogos, histórias e cultura nerd.

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