Yeshuah e a mensagem que não envelhece

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“Magistral!”, “Uma obra prima!”

Esses são alguns dos adjetivos que ouvi quando mencionei estar lendo Yeshua Absoluto. Lançado pela Devir em 2016, o livro de 516 páginas reúne em capítulos as histórias que já haviam sido lançadas separadamente. Com arte e roteiro de Laudo Ferreira Jr. e arte-final de Omar Viñole, o trabalho é resultado da dedicação e pesquisa de 13 anos. Eu li no Social Comics.

Fazer uma resenha sobre uma obra que tem a intensidade e o tamanho de uma vida, não é tarefa fácil, principalmente por se tratar de uma narrativa secular, recontada de diversas formas e infinitas vezes. Mas acreditem, a máxima que diz que uma perspectiva é uma janela para a realidade, parece caber perfeitamente aqui. Quanto mais janelas você abre, maior será sua percepção acerca de um acontecimento e o que Laudo oferece é a sua janela, para que através dela, o leitor descubra uma versão ainda não contada do maior ícone ocidental.

O Ranço

Minha primeira reação, assim como de muita gente, foi de não querer ler uma história que eu “já conhecia” e que provavelmente não me acrescentaria nada de novo, principalmente por eu não ser cristã. O cara morre no final e ao longo da vida pregou um monte de coisas bonitas… O que eu poderia encontrar ali? Curiosamente, o mesmo ranço também é compartilhado por alguns cristãos, que por motivos diversos, não se aventuram a conhecer uma visão diferente da que estão acostumados acerca de seu ídolo.

Lápis de Laudo e arte-final de Omar

Na primeira parte da história, onde somos apresentados a alguns dos personagens, eu me senti um pouco perdida, porque são muitos nomes que não me são familiares, por isso, achei que ficaria entediada e não conseguiria terminar.

As mulheres de Yeshuah

Então, algo me chamou a atenção e me motivou a continuar — Maria, que na história é Miriam, se vê diante de uma situação sem saída. Um homem, que já havia aparecido anteriormente, lhe diz que sua vida irá mudar e que ela será responsável por uma série de coisas que não pediu, inclusive, dar a luz ao profeta que viria para expiar os pecados dos homens. Até aqui, nenhuma novidade, certo? A não ser o fato de que a perspectiva de Maria é raramente considerada. Estamos diante de uma menina que está noiva e é virgem, em um contexto em que mulheres são apedrejadas por adultério. Como explicar ao futuro esposo, aos pais e à família que um homem lhe visitou e que depois de nove meses ela daria a luz, mas que permanecia virgem?

Mas Miriam não é a única mulher de destaque na narrativa. Já no prefácio de 7 páginas, Laudo nos dá uma ideia da importância que as mulheres têm em sua vida e em sua obra. A filósofa Júlia Bárány Yaari faz uma belíssima análise da pesquisa envolvida na confecção da HQ e detalha com precisão fatos mais marcantes das passagens mais conhecidas da Bíblia e que são retratadas no livro.

Em seguida, conhecemos a outra Miriam, a Maria Madalena, que em Yeshuah tem o papel de um dos apóstolos, mas não qualquer apóstolo — ela tem grande importância ao longo de toda história, já que é ela quem está nos contando sobre o seu convívio com o profeta. Esta Miriam faz as vezes de consciência de Jesus, quando não é uma amiga, irmã, mãe e, porque não, amante? Ora veja, uma mulher tem um papel tão significante em uma história que a vida toda nos foi contada de outra forma e, independentemente da discordância com as versões mais populares da narrativa, Laudo é tão respeitoso em seu tratamento na relação dos dois, que o que vemos é uma mulher retratada como um personagem tão significante quanto foram os 12 apóstolos.

Definitivamente, as mulheres exercem um papel especial ao longo de todo o percurso de Yeshua, inclusive a esposa de Pôncio Pilatos, Cláudia Procula, que também passa longe de ser um acessório cenográfico. Cláudia tem nas mãos o poder de mudar o curso da história ou ao menos, influenciar as decisões do esposo, mas sua hesitação acaba determinando seu destino e o de outros.

O percurso

Por mais que todos saibamos o que acontece no final, a forma que a trama é construída segue um ritmo de tensão crescente, com momentos marcantes quando há mudanças significativas na vida do protagonista.

Cada personagem foi desenvolvido com riquezas de características que tornam perceptíveis seu crescimento ao longo da história. A personalidade de Yeshuah é visivelmente alterada na medida em que o envolvimento com sua missão aumenta e ele entende qual é o seu papel no mundo. O Jesus de Laudo não é divino, mas não deixa de ter aspectos místicos que o destacam dos demais personagens, porém,  sua elevação espiritual não é um mérito exclusivo do escolhido de deus, mas de todos aqueles que se entregam aos mesmos votos ou ideais.

A mensagem

Yeshuah faz jus a qualquer adjetivo que evoque grandiosidade e é certamente uma obra-prima. Com uma narrativa universal que é capaz de agradar leitores de diferentes credos, o que temos é um trabalho excepcional de pesquisa e dedicação que podem ser observados nos detalhes de cada quadro e nos diálogos entre os personagens.

E por se tratar do ícone mais idolatrado no ocidente, Laudo poderia soar pretencioso ao tentar retratar a humanidade de um personagem histórico que é mais conhecido por seus aspectos divinos. No entanto, pretensão passa bem longe do livro — o tom de respeito e humildade permeiam todo enredo, conferindo ao trabalho um ar de obra que já nasce clássica. Não à toa, esteve entre os finalistas do prêmio Jabuti em 2015 e ganhou prêmios como HQMIX e o troféu Ângelo Agostini.

E a mensagem continua sendo a mesma, milenar e ignorada: AME! No fim, é só o que realmente importa. Por isso, se posso deixar a minha mensagem a vocês, é que leiam Yeshua, descubram um personagem em uma perspectiva diferente e interiorizem o verbo, pois, sendo ele divino ou não, é certamente a maior lição que alguém poderia ter deixado.

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

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