Warren Ellis, violência, família e educação.

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E mais uma vez somos forçados a assistir a reprise de uma obra com roteiro ruim: violência sem sentido – e superficialmente investigada – descambando em acusações contra alguma forma de entretenimento – no caso, os games.

No período entre os dias 04 e 05 de agosto deste ano, cinco pessoas de uma mesma família morreram em consequência de disparos de arma de fogo. A polícia apontou o filho, um menino de 13 nos, encontrado morto no local, como responsável pelas mortes de todos, inclusive a própria.

Não pretendo de forma alguma discutir como as investigações estão sendo conduzidas. Sou um crítico da forma como os investigadores agem na maioria dos casos, pois primeiro se acha um suspeito e depois se esforça pra justificar a suposição. Mas não é este o foco deste texto.

Uma vez levantada a possibilidade de um garoto ter sido o criminoso, imediatamente começaram a procurar os “culpados”. Quantas vezes já vimos este filme? Era apenas uma questão de saber quem seria a bola da vez: os filmes, as revistas em quadrinhos ou os games? Bom, sobrou pros games.

A idiotice de tal afirmação – e o motivo pelo qual os meios de comunicação parecem sempre adorar estas teses estapafúrdias –  foi muito bem sintetizada neste texto do Sorg para o Baile dos Enxutos.

Recentemente, tive o prazer de ler a história Atire (Shoot, no original), de Warren Ellis. Produzida para ser a edição 141 do título Hellblazer, ela terminou não sendo publicada por conta de, poucos dias antes da mesma ir pra gráfica, ocorrer o Massacre de Columbine.

O Massacre de Columbine foi como ficou conhecido o episódio em que dois estudantes de 18 e 17 anos invadiram a própria escola e mataram 13 pessoas, feriram 21 e depois - "corajosamente", como sempre - se mataram. Inspirou filmes (como o documentário Tiros em Columbine (Bowling for Columbine - 2002), de Michael Moore, e Elefante (Elephant - 2003), de Gus Van Sant.
O Massacre de Columbine foi como ficou conhecido o episódio em que dois estudantes de 18 e 17 anos invadiram a própria escola e mataram 13 pessoas, feriram 21 e depois – “corajosamente”, como sempre – se mataram. Inspirou filmes, como o documentário Tiros em Columbine (Bowling for Columbine – 2002), de Michael Moore, e Elefante (Elephant – 2003), de Gus Van Sant.

Ellis deixou o título e a DC por conta desta polêmica, mas fez questão de fazer bastante barulho sobre o assunto. Tanto que a editora resolveu publicar a história dentro da edição especial Vertigo Resurrected.

Capa original de Vertigo Ressurrected, onde foram publicadas histórias que inéditas que constavam nos arquivos do Selo Vertigo. Claro que Shoot foi o carro chefe da edição.
Capa original de Vertigo Ressurrected, onde foram publicadas histórias inéditas que constavam nos arquivos do Selo Vertigo. Claro que Shoot foi o carro-chefe da edição.

Na história, está acontecendo uma onda sinistra: em vários locais dos EUA, crianças estão indo às escolas armadas e atirando em colegas. Uma comissão do Senado é formada pra investigar o assunto e emitir um parecer. É contratada uma psicóloga para que aponte os culpados por tal comportamento. Seriam as HQs? Os games? Cinema? Obcecada, ela começa a passar horas assistindo as gravações dos assassinatos, sem encontrar nenhum elo que possa levá-la a uma conclusão. Entretanto, ela percebe que uma pessoa parece estar presente nos locais de alguns dos crimes horas depois, mesmo com distâncias grandes entre um e outro. O homem é John Constantine e, um dia, ele a está esperando dentro da sua sala. Lá, de forma extremamente agressiva, ele abre os olhos dela para aquilo que não querem ver: não apenas os verdadeiros culpados por aqueles crimes, mas também o fato de que os assassinos, as testemunhas e até mesmo as “vítimas” possuírem algo em comum.

"Eu vejo um monte de crianças no pátio de um buraco qualquer em um condado de merda num estado em ruínas sem nenhuma educação e nenhuma esperança no futuro. (...) Nascidas para uma vida que já está fora do alcance. Vendo-se crescer e ser que nem a mamãe e o papai. Com uma vida já vivida. Uma vida em um mundo que a mamãe e o papai não se importaram de construir direito. Um mundo que não faz sentido algum."
“Eu vejo um monte de crianças no pátio de um buraco qualquer em um condado de merda num estado em ruínas sem nenhuma educação e nenhuma esperança no futuro. (…) Nascidas para uma vida que já está fora do alcance. Vendo-se crescer e ser que nem a mamãe e o papai. Com uma vida já vivida. Uma vida em um mundo que a mamãe e o papai não se importaram de construir direito. Um mundo que não faz sentido algum.”

Duas coisas saltam aos olhos. A primeira, que o trabalho da psicóloga é apontar um “responsável”. Contudo, ela mesma deixa bem claro que não poderá acusar os pais pela negligência de deixar armas ao alcance dos filhos, até porque isso poderia trazer problemas com a NRA. Um colega deixa claro as opções dela: HQs, cinema ou videogames. Ao que ela contrapõe que os assassinos se inspiram na Bíblia mais do que em qualquer outra coisa.

A NRA (National Rifle Association of America) é uma organização norte-americana, fundada em 1871, que visa defender a Segunda Emenda da Constituição dos EUA, o direito dos proprietários de armas de fogo, a garantia da caça e do direito de auto-defesa.
A NRA (National Rifle Association of America) é uma organização norte-americana, fundada em 1871, que visa defender a Segunda Emenda da Constituição dos EUA, o direito dos proprietários de armas de fogo e a garantia da caça e do direito de auto-defesa.

A segunda diz respeito a maneira como devemos observar as pessoas que parecem ficar tão satisfeitas com as desculpas de que videogames, histórias em quadrinhos e filmes são responsáveis por tragédias aparentemente sem sentido. São as pessoas que ficam satisfeitas em fechar os olhos. As pessoas que fogem da responsabilidades. Pessoas que foderam a porra desse mundo e agora suspiram aliviadas porque podem fazer de conta que não são culpadas pelas desgraças que o assolam.

A cultura mundial é a da falsidade. Até um termo ridículo encontramos pra não usar o correto: falsidade hoje virou politicamente correto. Posamos de bons moços e pessoas preocupadas, mas na verdade continuamos a agir segundo a Lei de Gérson, que, no Nordeste, é traduzida como “farinha pouca, meu pirão primeiro!”

Pais mergulham em trabalho ou outras ocupações e se esquecem de seus filhos. Justificam-se dizendo que os criam  “livres” como seus pais nunca permitiram. Como são ausentes, não tomam conhecimento dos problemas disciplinares ou de personalidade que a maioria desenvolve. Quando se sentem obrigados a agir, erroneamente tomam as dores e aceitam todas as desculpas apresentadas.

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Nas escolas a situação não é diferente: enquanto as particulares se transformaram em “preparadores de vestibular a longo prazo”, as públicas padecem de um abandono de dar dó. Professores trabalham sem material (a maioria tendo que pagar do bolso papel e fotocópias para poderem executar atividades em sala de aula). Nas creches, chega a faltar itens básicos de higiene.  Apesar de todos estarem conscientes que as verbas são liberadas, ninguém parece disposto a procurar saber onde elas estão indo parar. Crianças violentas são tratadas com condescendência, sem acompanhamento de psicólogo. Alunos com necessidades especiais são misturados com os que não carecem delas. Salas de aula que deveriam abrigar 15 alunos tem cinquenta.

Fingimos ignorar a miséria. Passamos ao lado de crianças famintas e nos fazemos de cegos. Quando confrontados com a situação, buscamos desculpas do tipo “isso é responsabilidade do Estado”, “esmola vicia”, “deveria estar na escola”…

atire (4)

Recentemente, vi uma opinião fantástica no Facebook (desculpe, amigo, mas não guardei o seu nome): as crianças nascem boas, somos nós, adultos, que as estragamos com o passar dos tempos. Somos nós que colocamos preconceito, ódio, desesperança, tristeza e desilusão em suas cabecinhas. Somos nós que fodemos com o mundo e depois queremos que elas o consertem.

Estamos sempre fugindo da responsabilidade. Como pais. Como professores (e deveríamos ser todos professores, não?). Como cidadãos de bem que teimamos em dizer que somos. E precisamos arranjar culpados quando, como um mar em ressaca brava, todo o lixo que jogamos no esgoto volta em nossas caras.

Nestes tempos em que, recentemente, fomos às ruas e à internet protestar contra os gastos exorbitantes com obras que visam uma competição fútil e idiota que em nada acrescentará ao nosso desenvolvimento, seja como nação, seja como pessoas (na verdade, pelas reações depois de uma vitória estranha contra a Espanha, acho que ficamos foi tremendamente arrogantes), peço a vocês que olhem ao seu redor. John  Lennon disse uma vez que devemos pensar em termos globais e agir em termos locais. Façamos isso.

Observemos a situação dos colégios perto das nossas casas. Vamos reclamar, denunciar, exigir! Ajudemos os professores a terem condições de exercer seu trabalho e depois vamos cobrar deles!

Arrumemos tempo para cuidar um pouco das crianças. Mesmo que não sejam nossos filhos, vamos cuidar delas. Não simplesmente agradando, mas ensinando o certo, o errado e as consequências deste último. Vamos tratar melhor o mundo pra não passar adiante algo pior do que o que recebemos. Vamos dar esperança a elas. Rumo. Exemplo! 

Provemos a nós mesmos que não é por causa de R$ 0,20. Que não é nem mesmo por causa de dinheiro. Aceitemos a responsabilidade.

Por favor.

Vertigo Especial - Atire e Outras Histórias, lançada recentemente pela Panini. Apesar da encadernação paupérrima, de papel pisa brite e capa mole, vale a pena pelo conteúdo e o preço de R$ 19,90 por 234 páginas de material. Além da citada história (que conta com arte de Phil Jimenez), também temos a participação de artistas do quilate de Brian Bolland, Brian Azzarello, Esad Ribic, Grant Morrison, Frank Quitely, Garth ERnnis, Tim Sale, Bill Willingham, Eduardo Risso, Jeff Lemire e Peter Milligan, entre outros.
Vertigo Especial – Atire e Outras Histórias, lançada recentemente pela Panini. Apesar da encadernação paupérrima, de papel pisa brite e capa mole, vale a pena pelo conteúdo e o preço de R$ 19,90 por 234 páginas de material. Além da citada história (que conta com arte de Phil Jimenez), também temos a participação de artistas do quilate de Brian Bolland, Brian Azzarello, Esad Ribic, Grant Morrison, Frank Quitely, Garth Ennis, Tim Sale, Bill Willingham, Eduardo Risso, Jeff Lemire e Peter Milligan, entre outros.

 

 “Vocês se esforçam para encontrar alguma coisa em que possam jogar a culpa, mas deveriam simplesmente olhar para fora da janela. Um comportamento típico, não? Vocês querem subtrair coisas das vidas das crianças para assim deixar o mundo melhor .” – John Constantine – 

 

 

JJota

Já foi o espírito vivo dos anos 80 e, como tal, quase pereceu nos anos 90. Salvo - graças, principalmente, ao Selo Vertigo -, descobriu nos últimos anos que a única forma de se manter fã de quadrinhos é desenvolvendo uma cronologia própria, sem heróis superiores ou corporações idiotas.

Este post tem 25 comentários

  1. Inferno_Sempre_Infame

    Jotinha, não deixe de ouvir o cast do BdE que sai amanhã, tem tudo a ver com seu texto.

    1. JJota

      Olha o comentário do Inferno. Deve ter coisa bacana no Enxutocast amanhã sobre esta questão.

      Ah, e veja esta HQ. Vale a pena.

  2. Falecido Egon

    Grande(eu li, caso vc duvide) texto JJ, Parabéns.

  3. Churrumino

    Fazia tempo que não lia um texto teu JJota! Não tem como não concordar, os culpados somos nós mesmos e não queremos enxergar isso.

    1. JJota

      Valeu, Churrumino. E acho que é isso mesmo: o ser humano costuma ser muito fanboy de si mesmo!

    1. JJota

      Foi lançada, sim, Sorg. Mês passado. É a última imagem.

      1. Vintersorg

        é, vim depois no site da comix.
        Ia comprar mas acabei de fechar o pedido no extra com Preacher 2 e 3 e sandman absolute 😀

        2013/8/16 Disqus

        1. JJota

          Mas tá barato, Sorg. Além de Atire, tem Mate Seu Namorado (do Morrison, não vou criticar) e uma série de boas histórias curtas com Garth Ennis, Brian Azzarello, Esad Ribic, Eduardo Risso, Frank Quitely…

          Aguardando Justiça chegar na Liga HQ pra usar uns bônus que tenho lá.

          1. Vintersorg

            tá na lista de aquisições.

            Em 16 de agosto de 2013 14:33, Disqus escreveu:

          2. JJota

            Livros da Magia também?

            E algum sinal de quando será lançado o quarto Volume do Sandman edição definitiva?

          3. Vintersorg

            Livros da Magia e Orquídea Negra que ainda não comprei.

            Cara, não sei do 4º. Comprei o 3º e estou esperando relançarem o 2º que está fora de catálogo faz uns 6 meses.
            Acabei comprando o 3 sem ter o dois por medo dessa merda esgotar também.

            Em 16 de agosto de 2013 14:37, Disqus escreveu:

          4. JJota

            Eu comprei o segundo primeiro. Por sorte, quando saiu o terceiro, a liga HQ disponibilizou novamente o número 1 e aí eu comprei os dois.

            O quarto volume está prometido pra este ano!

          5. Vintersorg

            então é torcer pra aparecer o 2 qquando o 4 sair.

            Em 16 de agosto de 2013 17:16, Disqus escreveu:

  4. Kaligunas

    Caralho JJota, texto muito foda, e quando eu leio o que escreveste, hoje, quase um mês após a “grande onda de manifestações” eu ainda tenho pelo menos um mínimo de esperança que aquilo não vai ser esquecido e ano que vem não continuará tudo como dantes no quartel de Abrantes

    1. JJota

      Minha esperança também é esta. Mas devo dizer que fiquei muito aborrecido como a vitória naquele torneio que não vale nada terminou sendo usado não apenas pra tirar o foco dos protestos como foi vendido como uma resposta aos mesmos.

  5. Canoa Furada

    Excelente texto! Tão bem escrito e argumentado que fica até difícil discordar. É uma pena que alguns “profissionais” dos grandes veículos de comunicação ainda se equivoquem tanto ao tratar desse assunto.

    Única ressalva foi esse anúncio do lançamento da Panini no final, me pareceu quase uma propaganda em cima do assunto. Acredito que não foi a intenção inicial, mas me incomodou um pouco. De qualquer forma não tira a validade de suas palavras.

    1. JJota

      Obrigado, Renan.

      Quanto ao anúncio, é algo que eu costumo fazer nos meus posts (sem receber absolutamente nada por isso), visando apenas indicar aos amigos colecionadores onde e por quanto eles podem adquirir a história a qual faço menção.

      1. Canoa Furada

        Então aproveito para pedir desculpas pelo meu equívoco.

        E apesar de preferir h.q’s do gênero super heróis, confesso que fiquei curioso sobre essa edição especial. Engraçado como a Panini anda lançando muito encadernado. Parece até que as mensais não dão retorno. Ou então as mensais dão tanto retorno que permite lançar encadernados. Não sei. Enfim, vou procurar pela obra indicada e talvez até compre.

        1. JJota

          Vale a pena. O preço é bom e o material é acima da média.

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