Videogame é arte?

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Teríamos de definir Arte para sabermos se videogame é arte,. Entretanto, eu não me atrevo a isso. Tentar expor uma definição é forçar uma redução que desvalorizaria o próprio conceito. Só o pensar no que seria a arte já serve para se construir um sentido particular. E foi o que fiz ao questionar a posição do videogame dentro da arte. Para isso, recorri ao passado. O que vivemos hoje não é tão diferente do que já passamos pela história (claro que com as devidas particularidades). O meu ponto de comparação/contemplação foi o Impressionismo.

É importante citar que falar sobre arte não necessariamente a define. Todavia, entrar em contato com obras artísticas desperta (ou aguça) a sensibilidade na contemplação. É importante ver/ouvir/ler/sentir para criar o senso crítico.

O Impressionismo

O Impressionismo, de maneira geral, é um movimento artístico originado na pintura francesa do fim do século XIX. O movimento começou, principalmente, com as obras de Manet, Monet, Pissarro, Renoir e Degas. Em Paris, a melhor maneira de um artista ser reconhecido era expor suas obras no Salão. Como muitas obras eram recusadas, e isso causava revolta, as autoridades criaram o Salão dos Recusados, onde as obras não aceitas poderiam ficar. Umas das obras recusadas era Le déjeuner sur l’herbe, de Manet (foto abaixo). Felizmente, esta obra foi vista por Monet e seus amigos, que os influenciou a criarem um grupo, posteriormente conhecido como Impressionistas.

O nome impressionismo veio da crítica de um escritor sobre o quadro Impression du Soleil Levant, de Monet (foto abaixo), revelado na primeira exposição do grupo em 1874. A crítica era depreciativa, mas os artistas gostaram do nome e passaram a adotá-lo.

A inovação dos impressionistas estava em quebrar com a tradição idealista ou acadêmica, que buscava a retratação “perfeita” da realidade. Para fazer isso, eles simplesmente levaram o estúdio para céu aberto e passaram a usar, e valorizar, a luz natural sobre os objetos. Para nós, uma pintura como a de Monet não causa tanto estranhamento, chega a ser até agradável. Mas imaginem para uma sociedade não tão íntima com imagens como nós e fortemente acostumada com figuras perfeitas, volumosas, simétricas, iluminadas, em perspectiva e representadas em situações divinas, como a Vênus, de Cabanel, abaixo…

O choque foi grande e os críticos rejeitaram as mudanças. Toda a novidade da ênfase na luz e sombra natural, movimento, cor e instantâneo; e das temáticas da natureza e acontecimentos cotidianos, comuns, reais, não foram suficientes para considerar o movimento como expressão artística.

Não é meu objetivo definir o impressionismo, relatando suas principais características e a de seus artistas. O que quero é usá-lo como exemplo para entender um pouco sobre uma expressão artística atual: sim, para mim, videogame também é arte. Não é minha intenção igualar o movimento do fim do século XIX e todo o trabalho realizado pelos artistas que o defenderam ao videogame. O propósito é apenas ter o impressionismo como base para entender um fenômeno atual.

Um dos pontos em comum entre o impressionismo e o videogame é o uso da tecnologia. A obra impressionista é resultado direto (mas não único) do surgimento de diversas ferramentas, como tintas em tubinho, pincel achatado, cavalete portátil. Elas permitiram ao artista sair dos estúdios e pintar diretamente nos locais desejados.

Outra tecnologia que influenciou bastante foi a fotografia. O enquadramento fotográfico e o instantâneo, a captação de um momento específico no tempo, são utilizados nas telas impressionistas. Além disso, a fotografia, enquanto “retratação legítima da vida”, também libertou a imaginação do artista, que não mais estaria preso a esta pretensa cópia do real.

De forma alguma estou afirmando que a tecnologia determina a expressão artística, mas admito que haja fortes influências. No século XVI, a Europa teve um aumento no número de livros publicados. Reflexo de um maior interesse das pessoas letradas sobre a leitura? Em parte sim, mas também é uma consequência da invenção da prensa tipográfica de Gutenberg.

Sobre a temática das obras impressionistas, ela reflete claramente o momento histórico: pós-Revolução Francesa e Revolução Industrial (é, generalizei…). Ocorre a valorização do dia comum, do comportamento burguês. Com a saída da nobreza e da igreja no financiamento da produção artística, quem passou a ditar a arte foi o parisiense médio – ele quer se ver representado. O movimento e a velocidade passam a ser referências, pois as cidades estão crescendo e se diversificando, e junto a elas, a população.

E o Videogame com isso?

Calma, vamos chegar lá.

Toda essa inovação na linguagem e na temática não foi bem aceita pela sociedade francesa da época. Desta forma, o impressionismo só foi reconhecido muito tempo depois (uns 30 anos). A princípio, os críticos e a própria população, não acostumados com aquilo, riam e falavam mal das obras (situação normal de resistência à quebra de paradigmas).

O videogame como expressão artística sofre da mesma resistência, repulsa, estranhamento, negação, desvalorização. Tolice achar que seria facilmente reconhecido como tal, principalmente porque ainda vivemos na sua época de experimentação. É preciso muita luta, debate e criação antes de alcançarmos o status completo de Arte.

Primeiramente, pegaremos estes dois elementos que citei sobre o impressionismo: a influência tecnológica e histórica. Da mesma forma que o movimento na pintura, o videogame sofre as mesmas influências. Ele é uma tecnologia e utiliza ferramentas tecnológicas na sua criação e contemplação. Qualquer inovação de desenvolvimento (uma linguagem de programação, maior poder de processamento, armazenamento etc.) sugestiona diretamente o conteúdo da obra. Não podemos imaginar um Assassins’s Creed sendo criado na plataforma Atari 2600, mas poderíamos imaginar uma versão mais básica em NES…

Talvez seja dispensável falar sobre o atual momento histórico, pois estamos nele. Basta olhar ao redor. Mesmo assim, citarei algumas características da cultura digital que considero fortes influências no desenvolvimento de jogos: interatividade, cooperatividade, compartilhamento, interdisciplinaridade, entretenimento, rápida recuperação da informação, consumismo, individualidade e customização, visibilidade… O jogo responde a estes elementos ao permitir que o jogador atue, crie, personalize, participe, compartilhe, se divirta etc.

É importante destacar os elementos divertimento e consumismo, pois, de alguma forma, eles ajudam e atrapalham a caracterização do videogame como arte. Ajudam porque incentivam a criação em quantidade e valorização do produto. Mas atrapalham porque ocultam o valor artístico em função de um propósito mais comercial. É fácil perceber que os jogos lançados hoje em dia possuem um apelo financeiro muito maior que artístico. Como exemplo, podemos citar o jogo Dante’s Inferno. Por um lado, um jogo totalmente comercial cujo objetivo é destroçar monstros ao longo das fases e salvar a princesa. Por outro, uma releitura (eu costumava odiar este termo…) da Divina Comédia, de Dante Alighieri (séc. XIV).

Inclusive, nesta foto promocional do jogo acima, o personagem do meio é O Pensador, de Rodin. Ele criou esta escultura em 1902 com base em uma versão menor que compunha a Porta do Inferno, obra criada a partir das personagens principais do poema de Alighieri.

Ou seja, se você pensava que Dante’s Inferno era só um joguinho de matança e save de princess, vai ler a Divina Comédia, pô!

Esse exercício de procurar o lado artístico sobre o comercial vale a pena, pois prolonga a vida útil do jogo, além de lhe dar uma nova visão. Apesar de às vezes não parecer, tanto a narrativa quanto a composição gráfica são baseadas em obras artísticas. De onde vocês acham que saíram os desenhos dos personagens em God of War?

O valor cultural e artístico do videogame existe, basta aceitá-lo. As fases que o Impressionismo passou para ser aceito como expressão artística são claras: estranhamento (negação), segregação, aceitação e valorização. Se uma forma de arte (pintura) já reconhecida há séculos levou décadas para emplacar, imaginem uma criada há pouco tempo? É de se esperar que passemos por isso também.

Se considerarmos que ainda há preconceito sobre quem joga, aprecia ou desenvolve jogos, podemos afirmar que estamos na fase de segregação. Mas o simples fato de haver crescimento comercial e de eu escrever um texto falando sobre a posição do videogame na arte, já demonstra a entrada na fase de aceitação. Falta pouco para a valorização…

Se você, contudo, ainda não considera que videogame seja Arte, não tem problema. Daqui a 138 anos, quando um pensador fizer um texto comparando uma nova forma de arte contemporânea do séc. XXII com o “ludicismo” do início do séc. XXI, seu tataraneto balançará a cabeça pensando como nós, do século XXI, éramos atrasados…

Gustavo Audi

Se fosse uma entrevista de emprego, diria: inteligente, esforçado e cujo maior defeito é cobrar demais de si mesmo... Como não é, digo apenas que sou apaixonado por jogos, histórias e cultura nerd.

Este post tem 15 comentários

  1. Leonardo Delarue

    Excelente texto Gustavo. Concordo plenamente quando você se refere a arte e ao comercial. Agora serei honesto… Só consegui ler o Inferno da Divina Comédia. O texto é muito pesado, mas eu prometi para mim mesmo que eu terminaria tudo até o final do ano. Bom já estamos no fim!! Preciso cumpri a minha promessa!!!

    1. Gustavo Audi

      Realmente, ler a Divina Comédia não é fácil. Eu torço para algum autor gente boa criar uma versão em prosa…

  2. JJota

    Acredito, sim, que tenha valor artístico. Afinal, não existe apenas arte boa nem arte para todos os paladares. Se cinema e quadrinhos já são consideradas formas de arte, games também são. 

    1. Marcelo Rocha Brugger

      Não são, mas serão! Ainda temos uma legião de conservadores da nossa própria geração que vão lutar para dizer o contrário do que você diz. O motivo é óbvio: nunca jogaram. E não digo jogar pensando em pegar um disco pirata do PS2 (geralmente com todos os cheats) e sair matando lutando com a baixa resolução que esse tipo de mídia (des)oferece, mas sim jogar como se joga Fable, Deus Ex, GTA ou Tomb Raider por várias semanas, sentindo a história, as emoções, a trilha sonora e as paisagens belíssimas (de acordo com cada processador, até com os mais limitados).

      1. Marcos Davi Oliveira

        Talvez um dia sejam mesmo. Porém na atualidade, o que domina são jogos feitos com propósitos lucrativos apenas, o que serve para Hollywood e televisão aberta, e não são considerados arte, apesar do meio de comunicação Cinema ser. Outro ponto que pesa é o fato de os adolescentes e crianças estarem se viciando cada vez mais em jogos, inclusive os adultos; e jogos que não levam a nenhum tipo de reflexão concreta e complexa.

        1. Marcelo Rocha Brugger

          Mas você precisa aplicar isso que disse também a outros tipos de arte; existem livros, filmes e pinturas que existem com objetivos exclusivamente comerciais, não levam a nenhuma reflexão e podem também ser encaixados nos atuais critérios de “arte menor”. Se bem que, na Antiguidade, ter relação com o dinheiro não diminuía o valor de uma obra. O interessante é que estamos discutindo esses conceitos e problematizações tradicionalmente pertencentes a artes já consagradas aplicando-os aos vídeo games – e é isso que acho maravilhoso!

          1. Marcos Davi Oliveira

            A relação com dinheiro séculos atrás era diferente, então não pode ser comparada a mesmo nível com hoje. E as artes predominantes, passíveis de registro, daqueles tempos pretéritos, como pintura e escultura, são artes mais simples. O motivo de a televisão até hoje não ser considerada arte é porque o objetivo desse meio de comunicação é apenas o lucro (além, claro, da manipulação).

          2. Marcos Davi Oliveira

            E mais, daqui a décadas, quando talvez se chegue a esse nível de jogos de arte x jogos comerciais, os de arte vão ser apreciados por uma imensa minoria que será alcunhada de hipster, de chatos, de mimizentos. Não é assim com Cinema, literatura e qualquer arte?

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