Uma tarde no museu com Ron Mueck

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Era uma vez um reino distante, povoado por aborígenes e cangurus, no qual um alquimista almejava criar vida recombinando a matéria.

Ele não batia na pedra até ela viver. Na verdade, o mancebo, nascido Ron Mueck, pedia licença às rochas, realinhava-as cuidadosamente, numa dança suave que envolvia tinturas, instrumentos, tecidos e texturas.

O artífice das formas devotou parte de sua trajetória à elaboração de ilusões para as plateias de teatros nos quais o cinematógrafo projetava sonhos em lonas brancas.

Ao lado de construtores de quimeras como Jim Henson, Ron Mueck desenvolveu protótipos de seres, dotando-os de linhas e cordas, tornando-os apropriados a movimentos ordenados e limitados, porém, mantendo-os para sempre destituídos de vida e liberdade.

Até que o destino, como sempre conspirando para alterar a ordem natural das coisas, fez com que a pintora Paula Rego, mãe da cara-metade de Ron, necessitasse de um boneco de madeira para a composição de uma de suas telas.

Ela encomendou a pequena criatura a Ron Mueck, e o apresentou a Charles Saatchi, grande colecionador de arte contemporânea da ilha da Rainha, que, por sua vez, encomendou-lhe outras criaturas, o que fez com que abandonasse sua vida pregressa de criador e domador de seres para projeção em câmaras escuras.

O artífice das formas começou então a valer-se de suas técnicas, de sua magia e ilusionismo para engajar-se numa nova era, em que as criaturas nasceriam livres, sem a escravidão da praticidade, da funcionalidade e da limitação de movimentos.

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Passariam a crescer à sua imagem, subjetivas, repletas de sentimentos e, em consequência disso, questionamentos, numa gestação de anos, alimentadas por silicone, resina, fibras e cabelos.

O resultado dessa entrega está em parte exposto ao público numa grande embarcação de concreto encalhada no Aterro do Flamengo, que atende pelo nome de Museu de Arte Moderna.

Qual um circo de excentricidades, a plateia passeia pelas atrações, cada uma delas nascida de um mesmo pai, e, aglomerada, espreme-se no limiar das linhas de segurança, a fim de conseguir as melhores poses, os mais sinceros olhares de desespero tempo o suficiente para serem registrados por suas câmeras digitalíssimas.

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Entre galináceos aterrorizados com o próprio destino a pequeninos casais congelados na revelação de uma verdade inconveniente, é impossível não reconhecer o DNA de Ron Mueck na atmosfera de reflexão que suas criaturas provocam, no choque de seu extremo realismo impossível dentro da caixa em que passamos a maior parte dos dias.

Como homens livres de Liliput, observamos regozijados um casal maduro doirando no sol, mãe e pai de um Gulliver moderno e globalizado, livre das cordas do temor e do desconhecimento.

Como não vê-los erguendo-se lenta e gradualmente, ossos e juntas estalando, músculos desenhando relevos sob a pele, esticando as rugas que os anos dobraram?

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As filas são um mal menor diante da grandiosidade apresentada pelos filhos de Ron Mueck em sua mostra. Abasteça o seu cantil, tire o pó de sua lupa ou binóculo, saia da caixa, abra sua mente e ouça as histórias num fôlego só contadas pelas vidas expostas no MAM.

Rodrigo Sava

Arqueólogo do Impossível em alguma Terra paralela

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