Transmetropolitan 40 e uma realidade incoveniente

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No último post de 2014 no Darth Chief, eu tive a oportunidade de falar um pouco de Transmetropolitan e desta edição em especial. Mas resolvi começar o ano de 2015 me aprofundando um pouco mais no assunto.

Transmetropolitan – magistralmente escrita por Warren Ellis (Planetary, Authority, Oceano) e inesquecivelmente desenhada por Darick Robertson (Justiceiro – Nascido para Matar, The Boys, Happy!), com arte-final de Rodney Ramos – conta as aventuras de Spider Jerusalém, um jornalista que, depois de se tornar um grande sucesso no mundo da literatura, se afastou da humanidade e passou viver isolado – acompanhado apenas de enormes quatidades das mais diversas drogas – em uma cabana nas montanhas, até ser forçado (por conta de questões contratuais com seus editores)  a retornar a cidade grande, onde assume um emprego de colunista para poder pagar as contas. Sarcástico, virulento e sem meias palavras, logo se torna novamente uma celebridade com seus textos rascantes e suas denúncias, alcançando um grande número de inimigos, em especial o novo presidente dos Estados Unidos!

De vez em quando, Warren Ellis pausa a narrativa das aventuras em si para mostrar o mundo em que Spider vive (que é fascinante, refletindo muitos do problemas sociais que nos afligem), através dos textos do personagem ou mostrando ele colhendo material para suas reportagens. Em Programa, publicado no número 40 da série original e aqui no Brasil no encadernado Transmetropolitan 5 – O Flagelo de Spider, temos um exemplo desta última. Spider encontra dois garotos se prostituindo, resolve investigar o caso e descobre um grande número de crianças de ambos os sexos que vendem seus corpos nas ruas não para sobreviver, mas para adquirirem luxos supérfluos e drogas as mais variadas. Intrigado por algumas delas citarem um determinado abrigo para crianças como origem, ele resolve ir lá investigar e conhece Bill Rose, o administrador do local.

“É muito fácil esquecer que são crianças”.

Spider fica relativamente surpreso ao descobrir que Bill, longe de se esquivar do problema, deseja que ele escreva sobre o assunto. Seria uma forma de trazer para a mesa das pessoas uma das famosas “verdades incovenientes” que todos fazem de conta não ver, ainda que esteja diante dos seus olhos. O próprio Jerusalém lembra que, anos atrás, tentou escrever sobre o assunto, mas seu texto foi ignorado pelo jornal para o qual trabalhava.

Capa da edição original de Transmetropolitan 40.
Capa da edição original de Transmetropolitan 40.

Depois de constatar que as crianças já chegam ao abrigo emocionalmente mortas, Spider faz a pergunta: “Onde começa?” e recebe a resposta… E aí Ellis volta a um ponto de vista incômodo que ele já tinha abordado – e sido censurado na época – na história Atire!, quando de sua passagem pelo título Hellblazer.

“Todo mundo procura alguém em quem botar a culpa. Na sociedade, na cultura, em Hollywood, nos aproveitadores. Olhando para todo lado, menos pro lugar certo. Crianças são muito simples, Sr. Jerusalém. São dispositivos muito fáceis de quebrar ou de montar errado. Quer saber quem fez isso com elas?”

Bom, sobre os “culpados” eu já falei no post sobre Atire!. Prefiro, de certa forma, aceitar o desafio e discorrer um pouco sobre o incômodo assunto.

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Em 2001, um relatório da ONU colocou o Brasil em segundo lugar no ranking mundial da exploração sexual de menores de idade. A mesma ONU, em 2010, calculou em 250.000 o número de crianças e adolescentes prostituídos no país. As pessoas honestamente envolvidas no combate a esta prática criminosa consideraram os números aquém da realidade.

Os infantes de ambos os sexos forçados a se tornarem objetos de prazer têm como “clientes” normalmente homens de classe média ou alta. Tem crescido o número de estrangeiros – principalmente europeus – que visitam o Brasil em busca deste tipo de atividade imunda, normalmente contando com o apoio de compatriotas já estabelecidos no nosso país, em especial nas regiões litorâneas do Norte e do Nordeste.

A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.

Parágrafo 4º do Artigo 227 da Constituição Federal de 1988

Entre os fatores principais que provocam a prostituição prematura estão a miséria, a baixa educação, distúrbios nas relações familiares, envolvimento com drogas lícitas e ilícitas e desejos consumistas desenfreados. Os principais responsáveis são as autoridades públicas e os familiares das vítimas.

As nossas autoridades são culpadas por serem de uma ineficiência assustadora no combate aos fatores provocadores e à prostituição infantil em si. Também não oferecem educação ou atendimento médico de qualidade. A maior parte da legislação que busca proteger o  menor carece de aplicabilidade ou de agentes aplicadores em número suficiente.

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É claro que o Estado nega sua ineficiência, até porque somos campeões mundiais em despedício de dinheiro público. Só de Comissões Paralamentares de Inquérito (CPIs) tivemos duas dedicadas ao assunto, que geraram gastos enormes e exposição para os políticos envolvidos, mas entregaram poucos resultados práticos. Os Conselhos Tutelares penam com a falta de estrutura e problemas no tocante a sua organização, onde o vírus da péssima política se inseriu.

Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone:

Pena – reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos.

§ 1º – Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.

§ 2º – Incorre nas mesmas penas: 

I – quem pratica a conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (quatorze) anos na situação descrita no caput deste artigo;

II – o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as práticas referidas no caput deste artigo.

§ 3º. Na hipótese do inciso II do § 2º, constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento. 

Artigo 227-B do Código Penal Brasileiro

Já os familiares normalmente são culpados por violência, maus tratos, incentivo (normalmente acompanhado de exploração) e/ou – o que considero tão terrível quanto qualquer um dos outros citados – negligência. É incrível como pessoas que sequer são capazes de cuidar de si mesmas (e não estou falando apenas do ponto de vista material, mas principalmente psicológico e moral) coloquem filhos no mundo para serem criados de qualquer jeito, muitas vezes por outras pessoas (ou, irc!, pela televisão aberta).

Claro que isso não livra a nossa responsabilidade. Diante da inércia criminosa de autoridades públicas e parentes, torna-se necessário fazermos a parte que nos cabe como sociedade, que inclui pararmos de fechar os olhos e andar pelo mundo “selecionando” o que queremos enxergar. Não compactue com esta prática de forma alguma. Não contrate, em primeiro lugar. Sentir desejo sexual por pessoas ainda em formação física e, principalmente, mental não é normal, por mais que pessoas doentes que defendem essa prática tentem apresentar argumentos em contrário. Independente disso, não se aproveite da situação de dependência (seja ela química, física, emocional ou econômica) de uma pessoa para satisfazer seus desejos.

“Essas crianças aprenderam a não sentir nada. E, por não sentirem nada, podem fazer de conta que são adultos e ignorar a dor que faz parte do jogo.”

Não compactue de forma alguma. Evite contato com pessoas que “trabalham” com a exploração de menores, que usufruem disto ou que se beneficiem ainda que de forma indireta (como os traficantes que vendem tóxicos pras crianças). Não somos mestres em “isolar” grupos por questões políticas, religiosas ou sociais? Então façamos uso deste talento e tornemos um pouco mais difíceis as vidas dos exploradores sexuais de crianças. Uma boa iniciativa é se recusar a frequentar locais onde esta atividade é incentivada ou mesmo tolerada.

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Não contrate, não incentive, não “faça a ponte” para que um tarado possa contratar, não tolere os exploradores sexuais, familiares ou não das vítimas, não aceite as desculpas fáceis que tentam justificar o injustificável. É pouco? É, sim. Mas, dependendo da região, é o que podemos fazer.

Não ignore. Não faça de conta que o problema não existe. Não feche os olhos quando cruzar na rua com esta situação porca. Reprove, se não com ações ou palavras (por ser, principalmente, arriscado), pelo menos com o olhar. É pouco? É, sim. Infelizmente, vivemos em um país onde denunciar é, quase sempre, inútil e, muitas vezes, perigoso.

“Tem tudo a ver com a responsabilidade de fazer um ser humano.”

Principalmente: seja um bom pai ou mãe. Mesmo que você não tenha tido bons progenitores. Mesmo que você não tenha sido um bom filho. Mesmo que você não more com seus rebentos. Mesmo que eles não sejam seus filhos de sangue. Cuide deles, seja presente, oriente-os, fique atento. Faça seu melhor e depois um pouco além. Ou, se definitivamente você aceita ser uma pessoa incapaz para tal empreitada, seja por qual motivo for, não tenha filhos, naturais ou não. Não aceite a responsabilidade sobre a guarda, educação ou formação de quem quer que seja. Não entregue novas vítimas aos criminosos deste mundo. Faça isso. Faça pelo menos isso…

Transmetropolitan - O Flagelo de Spider. Roteiro de Warren Ellis. Desenhos de Darick Robertson. Arte-final de Rodney Ramos. Editora original DC Comics. Editora no Brasil Panini. 292 páginas. R$ 86,00.
Transmetropolitan – O Flagelo de Spider. Roteiro de Warren Ellis. Desenhos de Darick Robertson. Arte-final de Rodney Ramos. Editora original DC Comics. Editora no Brasil Panini. 292 páginas. R$ 86,00.

JJota

Já foi o espírito vivo dos anos 80 e, como tal, quase pereceu nos anos 90. Salvo - graças, principalmente, ao Selo Vertigo -, descobriu nos últimos anos que a única forma de se manter fã de quadrinhos é desenvolvendo uma cronologia própria, sem heróis superiores ou corporações idiotas.

Este post tem 9 comentários

    1. JJota

      Valeu, Luc. Acho que chegou mesmo o momento de pararmos um pouco de escolher o que enxergamos ou ficar aceitando “a vida como ela é.”

      1. Superman Leaves

        Concordo quase plenamente com vc. Quase, porque nem sempre é uma questão de “escolher o que enxergamos”, e isso eu entendo vc falando de uma maneira geral, não apenas em relação ao problema da prostituição. Quando vc diz “não compactue de forma alguma”, acho que é uma simplificação. No mundo conectado de hoje, vc sabe que com simples atos como comprar um produto ou até mesmo usar a internet (quem sabe?) acabamos contribuindo para essas práticas exploratórias, nesse caso estendendo também ao trabalho infantil ou escravo, por exemplo. Ou então acho que vc quis dizer: faça o máximo para não compactuar com isso.
        Ah, e quando li o “não ignore”, juro que quase imaginei vc sugerindo bancar uma de morcego huahuahuahua.

        1. JJota

          Superman, realmente escolher o que enxergar é de maneira geral (até pra colocar uma pulga atrás da orelha, pois muitas vezes fazemos isto de forma inconsciente). Não compactuar está direcionado a não fazer isto de forma direta ou por omissão: obviamente, há um mundo de coisas que, infelizmente, possuem relação com atividades criminosas e indecentes e que não podemos evitar. Não ignore é mesmo um último apelo, mais uma vez um “não feche os olhos”.

      2. lucasvilanovag

        Um safado que é contra os heróis matarem devia ter a sua opinião enfiada no rabo. 1

  1. Fluffy

    Ótimo post, JJ. Interessante pra caralho e um puta tema pertinente na sociedade atual.

    1. JJota

      Pena que um assunto desses só venha a mídia quando serve para ser explorado politicamente, ficando a maior parte do tempo no limbo.

  2. lucasvilanovag

    Um safado que é contra os heróis matarem devia ter a sua opinião enfiada no rabo.

  3. lucasvilanovag

    Eu já falei que bandidos merecem ser esquartejados.

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