Solidariedade Mínima

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Estava eu no Via Parque, na Barra da Tijuca, aguardando minha esposa voltar do show dos seus queridos Backstreet Boys (sim, a adolescência dela foi de gritinhos e piradas homéricas por esses caras), parado na fila de validação do estacionamento, jogando meu game genérico de pedras preciosas no celular, quando notei uma moça loira gordinha que olhava insistentemente para baixo. Ao seguir o olhar dela, vi que ela não parava de prestar atenção em uma outra moça, sentada com as costas apoiadas na vitrine de uma loja fechada. A outra moça aparentava uns 25, 26 anos, estava branca, de tão pálida, e uma camada fina de suor manava-lhe da testa.

suor

Intrigado, aguardei alguém falar alguma coisa, e notei que a loira gordinha andava, seguindo o fluxo da fila, deixando a moça branca pra trás. Ao chegar perto da moça branca, perguntei:

– Você tá passando bem, precisa de alguma coisa?

– Não. Não tô bem não. Tô passando mal…

– O que você tá sentindo?

– Tá tudo fora de foco, tô sentindo uma vontade enorme de desmaiar e muita fraqueza.

Achando os sintomas familiares, respondi:

– Olha moça, minha esposa costumava ter esse tipo de coisa muito frequentemente. Isso pode ser pressão baixa ou pouca glicose.

Notei que, entre seus pertences, havia um saquinho que parecia ser de uma loja de chocolates e falei:

– Moça, se for glicose baixa, doce ajuda a melhorar. Notei que você tem alguns chocolates aí, coma um deles e veja como fica.

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Ela pegou, com pouquíssimo ânimo, o que parecia ser uma trufa e foi comendo. Nisso chega, discretamente, o namorado dela, que estava mais à frente na fila e parecia aflito. Expliquei a ele o que eu achava que ela estaria sentindo, e ele me respondeu que ela estava desde meio-dia sem comer nada. Era baixa de glicose.

Alguns minutos e uma segunda trufa depois, perguntei como a moça estava (o namorado estava já pertíssimo do totem de validação do ticket de estacionamento), e ela, com um leve sorriso no rosto e me agradecendo com um olhar inusitadamente grato, me disse que já se sentia melhor. Fiquei feliz, e, ao passar pelo namorado, que ia na direção dela, falei discretamente que, se esses sintomas se repetissem ainda naquele dia, que ele levasse ela diretamente ao hospital. Os dois deixaram o Shopping, acenando pra mim e me agradecendo.

Por que contei essa historinha? Pra destacar que, tirando eu e a loirinha que, logo em seguida, começou a olhar insistentemente para o celular e a conversar efusivamente com uma amiga que chegou depois (se esquecendo totalmente do pequeno drama particular da moça branca), ninguém sequer notou que a moça passava mal. Na verdade, as pessoas passavam o tempo todo ou zumbizando no celular, ou conversando, sem sequer olhar para os lados.

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Que mal é esse que temos, no mundo de hoje, em que as pessoas têm uma ânsia enorme em se conectar com quem mal conhecem e não olham ao redor? Por que deixam de absorver o que os rodeia para fixarem-se em seus dramas pessoais (muitas vezes inconsistentes) e na tela de um celular?

Fiquei feliz por ter sido de ajuda para alguém, que passava por um pequeno problema de saúde, mas fiquei mais triste por perceber, mais uma vez, um mundo que não se enxerga; pessoas que não veem o outro e, por isso, não se veem; cristãos (um dos integrantes da fila, acompanhado de uma moça, carregava um crucifixo pendurado ao pescoço) que não exercem a cristandade nem no momento mais monótono e passável de suas vidas – como esse, dentro de uma fila.

Só pra complementar essa história, alguns dias depois, vi duas mães (provavelmente da mesma família, pois eram parecidas) que carregavam seus respectivos filhos, dividindo dois bancos de ônibus. As duas conversavam, cada uma com a cara enfiada no celular, e falavam de quem postou ou não postou determinada foto ou mensagem como se fosse a coisa mais importante do universo, enquanto se questionavam por que tal fulano teria dito tal ou qual coisa, baseado no que elas tinham postado. Enquanto isso, o filho de uma delas (tinha por volta de 2 ou 3 anos), claramente querendo atenção, batia a cabeça no banco da frente, com uma cara de tédio insuperável. De quando em vez, olhava pra mãe, cujo centro do universo estava na tela de seu celular.

Não sou religioso e não quero me passar por piedoso ou como exemplo para ninguém. Ao contrário, faço desse pequeno relato um lamento, por ver o viver concreto alçado a segundo plano, e o viver virtual jogado como o principal na vida de muitas pessoas; por não ver a compaixão e solidariedade espalhadas como senso comum, como ar que se respira.

Colossus de Cyttorak

Detentor dos segredos da Mãe-Rússia, fã incondicional de jogos da antiga SNK (antes de virar esse arremedo, chamado SNK Playmore), e da Konami, Piotr Nikolaievitch Rasputin Campello parte em busca daquilo que nenhum membro da antiga URSS poderia ter - conhecimento do mundo ocidental. Nessa nova vida, que já conta com três décadas de aventuras, Colossus de Cyttorak já aprendeu uma coisa - não se deve misturar Sucrilhos com vodka, nunca!!!!

Este post tem 6 comentários

  1. Rodrigo Sava

    O celular é o novo monolito, Colossus. E também uma nova parede.

    1. Exterminador de Marvecos.

      A culpa não é dos celulares mas sim do ser humano que usa eles de forma errada.

  2. Exterminador de Marvecos.

    Tomara que as pessoas se tornem mais anti-sociais eu estou torcendo por isso.

  3. Exterminador de Marvecos.

    Sabe o que eu acho engraçado é como as pessoas culpam a tecnologia por tudo de ruim como se ela fosse a caixa de pandora que libertou todos os males do mundo e antes da internet e tecnologia o “mundo era lindo e todo mundo se ajudava”, eu acho que são apenas ferramentes se o ser humano usa elas mal ai o problema está com o ser humano.

  4. Aline Rosa

    Parabéns pelo texto Colossus, ele mostra muito bem a inversão de valores que está embutida em nossa sociedade. Já divulguei o texto da melhor forma possível. Obrigada.

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