Sem Medo

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Minha namorada gosta do filme do Demolidor. Não a julgo, ainda mais que, como ela, concordo que é um dos melhores papéis de Ben Affleck, escolha que é um dos acertos do filme (que, embora poucos, valeram meu ingresso). Ele inclusive foi recentemente escolhido como próximo Cavaleiro das Trevas nos cinemas e mesmo que eu esteja relativamente animado com a notícia, não sei se Affleck conseguirá obter maior sucesso neste último do que naquele outro.

Não por demérito do ator, mas do personagem: em se tratando de Quadrinhos, sou muito mais o Diabo Atrevido que o Homem-Morcego, quer saber por quê?

Não é de hoje que tenho essa ideia de que todos os heróis da Marvel são uma versão modificada de algum ícone DC: para os X-Men e o Quarteto Fantástico temos a Patrulha do Destino, os Vingadores têm a Liga da Justiça, e para o Homem-Aranha temos o Batman – todos são equivalentes uns aos outros “em outra Terra”. Claro, algumas comparações precisam de boa vontade do leitor, outras nem tanto, e especificamente na última que citei (Teioso versus Cruzado Embuçado), eu adicionaria outro herói da Casa das Ideias que também bebe da verve do morcego, o Demolidor.

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X-men, Doom Patrol, Fantastic Four – alguma semelhança?

A Marvel tentou emular o segundo maior herói da “Distinta Concorrência” dividindo-o em dois principais produtos, heróis urbanos enfrentando o crime comum – Homem-Aranha e Demolidor (afora algumas tentativas mais vergonhosas, como o Cavaleiro da Lua e o Gatuno, habitantes das revistas do amigão da vizinhança). Destes, creio que o último é um caso mais emblemático. Conquanto seus mitos de origem se assemelhem nas motivações (o garoto franzino e intelectual que vê sua vida mudar pelo despertar de habilidades especiais na adolescência que ganham um novo sentido na perda da figura paterna, influenciando em sua decisão quanto a finalidade de seus poderes), as quais refletem em suas habilidades, tornando possível enxergar um diferencial interessante.

Sem me estender muito nas origens dos personagens (muito exploradas em várias mídias), podemos resumir da seguinte maneira: Peter é um garoto tímido, porém de personalidade forte, dono de uma fúria reprimida obtida por meio do bullying diário que recebe no colégio, da morte de seu tio Ben, por uma negligência sua, ele recebe seu chamado para o dever. Seus poderes refletem isso: escala paredes, tem agilidade sobre-humana e pode pressentir ataques antes que estes aconteçam. Assim, o herói pode evitar ser o centro das atenções enquanto evita qualquer ameaça “imprevista” ao mesmo tempo em que extravasa sua agressividade com piadinhas e zoações mantendo sua identidade oculta – o sonho de todo garoto abusado socialmente. Já o Demolidor é diferente, pois seus poderes refletem a vida do jovem Matt.

Filho de um pugilista de segunda linha, Murdock é proibido pelo pai de lutar, mesmo sendo perseguido no colégio, para que consiga conquistar um futuro melhor do que ser apenas um brutamonte dos ringues. Assim, trilha o caminho intelectual, buscando se tornar melhor aluno mesmo frente aos ataques dos demais (o velho tema do abuso psicológico). Quando ganha seus poderes, frutos de um ato de heroísmo e desprendimento, Matt vê sua vida mudar (sem trocadilhos), enquanto a de sua família desmorona. Com os gastos médicos, o “Demolidor Murdock” se vê obrigado a voltar aos ringues (ao mesmo tempo em que vira empregado da máfia) num último esforço de garantir o futuro do filho, ao mesmo tempo em que lhe ajuda a lidar com sua deficiência. De fato, uma vida muito sofrida, que só piora na ocasião da morte trágica do pai, que se nega a entregar a luta derradeira em nome de sua honra e virtude. Tudo para dar o exemplo final de que Matt precisava para decidir o seu ethos de maneira definitiva.

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Deste modo, temos motivações diferentes entre os heróis que definem bem os conceitos que os moverão nas próximas décadas. O Aranha é movido, assim como o Batman, por um sentimento de impotência diante do inevitável, a morte da figura paterna. A diferença entre os dois se constitui na medida em que Parker sofre por negligência e petulância, não impedindo um meliante qualquer durante uma fuga (que viria a tornar-se o assassino de seu tio). Já o Batman sofre por impotência, sendo apenas uma criança diante de um criminoso vulgar. Em ambos existe um desejo de tentar compensar o pecado original, de redimir, com seus atos virtuosos, uma primeira falha, para sempre inescusável, evitando que outros sofram como ele.

Já no Demolidor, ocorre o ensinamento pelo exemplo trágico, de como o boxeador – mesmo corrompido – recusa agir como corrupto e paga pela própria vida a defesa da honra e a transmissão do bom exemplo e dos valores corretos ao filho, gerando assim um legado. Isso se assemelha ao jovem Bruce Wayne, que vê na tentativa de defesa de sua mãe pelo pai – paga com a vida do casal – um exemplo derradeiro de proteção dos inocentes e de certos valores fundamentais, como a família. Laço este que ele está fadado a jamais conseguir reproduzir, embora ainda tente, com resultados desastrosos e disfuncionais (mordomos, “Robins” e “Batgirls”), e mesmo a proteção à vida a qualquer custo.

Como já mencionado, ao invés do caso do Aranha, no qual existe uma “responsabilidade por meio da redenção” e  o personagem carrega nos ombros uma culpa inexpiável, o Demolidor carrega um legado inescapável que custou a vida do próprio pai para se manter incólume. Matt se vê, tanto pela profissão de advogado quanto de vigilante, a trilhar o caminho tênue entre o mundo do crime e o da lei em nome da defesa do que é certo e não do que é melhor para ele. Seu pai poderia ter aceitado o “arranjo” e garantido uma vida um pouco mais confortável para si e para o filho deficiente, mas se ofereceu em sacrifício para obter justamente o contrário, para que Matt tivesse marcada em sua alma a marca da honestidade e da retidão.

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Todos vivemos por exemplos. O que fazemos deles que nos define.

Deste modo, o Demolidor é mais “cavaleiro” do que seu contraparte DCnauta: vive por um código de honra inescrito, implícito em seu nome – o “Demônio Destemido” é antes de mais nada uma criatura que não se abala, e nada teme, nem mesmo diante da morte, enquanto, por sua vez, o Aranha vive tentando negar seus efeitos. O Diabão salta entre prédios às cegas e se atira nas situações mais sem esperança (mesmo na vida pessoal, de Karen Page à Elektra, passando por Mary Typhoid) apenas com o desejo de fazer o que é certo, mesmo diante de seus desejos mais íntimos, abraçando o perigo e a morte cegamente. O Homem Sem Medo não é do modo que é somente por ser cego e não enxergar o perigo. Ele se apresenta como tal, pois, possuindo esse sentido de radar, enxerga melhor que todos nós, e talvez por isso não se importe da mesma maneira que nos importamos com o que vemos.

Parodiando o filósofo, Matt olhou dentro do abismo, porém sem utilizar dos olhos. Contemplou-o com seu olhar interior. E, antes que olhassem de volta, saltou sem se importar com a queda, apenas porque era o certo a se fazer.

http://www.youtube.com/watch?v=CyuCqb1U1Lk

 Texto do colaborador TCZ do Movimento Quodlibertário

Colaborador

Colaborador não é uma pessoa, mas uma ideia. Expandindo essa ideia, expandimos o domínio nerd por todo o cosmos. O Colaborador é a figura máxima dos Iluminerds - é o novo membro (ui) que poderá se juntar nalgum dia... Ou quando os aliens pararem com essa zoeira de decorar plantações ou quando o Obama soltar o vírus zumbi no mundo...

Este post tem 10 comentários

  1. JJota

    Não é de hoje que tenho essa ideia de que todos os heróis da Marvel são uma versão modificada de algum ícone DC: para os X-Men e o Quarteto Fantástico temos a Patrulha do Destino, os Vingadores têm a Liga da Justiça, e para o Homem-Aranha temos o Batman – todos são equivalentes uns aos outros “em outra Terra”.

    Uma forma elegante de afirmar o óbvio: ninguém no mundo dos quadrinhos é mais safado que Stan Lee!!!!

    1. JJota

      Só não entendi essa parte “A Marvel tentou emular o segundo maior herói…”

      Como assim? O que o Demolidor tem a ver com o Superman? É por que o Affleck fez o Demolidor e agora vai fazer o Batman que, provavelmente, vai salvar a vida do kryptoniano no próximo filme? Cadê minha edição encadernada d’O Cavaleiro das Trevas? Preciso rezar por estes hereges!

      1. José Messias

        já ia responder o post a vera, ai li o final do comentário….hauahauahauahua

          1. José Messias

            Escrevi errado, ia responder ao seu comentário do “não entendi” a vera, mas ai li o final do post e entendi a ironia.
            Neste caso, eu concordo com o autor, eu sou totalmente pró-Superman, como diria Caetano, o Azulão é lindo, o Azulão é mara…rs
            O velho morceguinho fica certamente em segundo lugar…rs

          2. JJota

            Já estou com meu encadernado d’O Cavaleiro das Trevas nas mãos. Mas espera aí que eu vou buscar o do Ano Um também que agora percebi que a reza aqui é dobrada.

      2. TCZ

        Mas claro, Super e Batman em primeiro e segundo só porque o Aquaman já é hors concours o

  2. Ótimo Post, Colaborador, seja lá quem for.. hehehe
    Só uma pequena observação: no penúltimo parágrafo, quando você usa a tradução literal do nome “Daredevil” como pretexto pra continuar sua argumentação, você traduz literalmente “daredevil” como “demônio destemido”, só que não é bem assim.

    É claro que há um jogo ideológico entre o nome e a fantasia de demônio do herói, mas a expressão “daredevil” não é mais uma justaposição de dois substantivos distintos: há muito, essa palavra perdeu essa característica, e virou, simplesmente, uma palavra única, com sentido de “ousado”, destemido. Em português isso também é muito comum de acontecer. Um exemplo é a palavra “botafogo”. Quando nos referimos a ela, raramente pensamos no sentido literal, ou seja, a junção do verbo “botar” com o “substantivo “fogo”. Ao falarmos em “botafogo”, simplesmente o mais comum de se vir à mente são dois significados: um bairro na Zona Sul do Rio de Janeiro e o time de futebol. A mesma coisa acontece com “daredevil”, em inglês. É muito pouco usual alguém, ao ouvir essa expressão, realmente se reportar à tradução literal “demonio ousado”. Essas palavras, isoladas, foram completamente esvaziadas do significado original delas, quando foram juntas e formaram uma nova palavra.

    Inclusive, o fato do herói usar uma fantasia de demônio é até um resgate em tom de brincadeira do sentido original das duas palavras. Como que um lembrete. Seria o mesmo que, em português, se existisse um herói chamado Botafogo, ele usasse um uniforme com chamas pintadas.

    Aliás, devido justamente a esse fato todo, que eu nunca gostei da tradução pro português de “demolidor”. Acho péssima. Preferiria mil vezes um nome como “Desafiador”, que traduz muito mais o sentido original do nome. O problema é que já existe um Desafiador, na DC… Sendo que também o nome dele é baseado numa péssima tradução… Até hoje tento entender a relação entre “Desafiador” e “Deadman”….

    1. TCZ

      Na verdade eu não ignoro isso, não. Até porque foi a estratégia que a dublagem brasileira optou quando o diabão apareceu n’O Julgamento do Incrível Hulk.

      A idéia era mais fazer uma piadinha, um chiste, jovem 😉

      Mas obrigado pelo elogio de qualquer forma o

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