PL 1577 e Mais Mimimi Sobre Games

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04/04/2019

No dia 19 de março de 2019, às 17:06, o Deputado Federal Nicolino Bozzella Júnior (mais conhecido como Júnior Bozzella – não me pergunte o porquê), do PSL, apresentou o PL 1577/2019, com o objetivo de “criminalizar o desenvolvimento, a importação, a venda, a cessão, o empréstimo, a disponibilização ou o aluguel de aplicativos ou jogos eletrônicos com conteúdo que incite a violência.” Como não quero ser mais um daqueles gamers porra-loca que saem reclamando apenas por terem se sentido atacados, decidi analisar a proposta e ler suas justificativas. Ou seja, vou dar uma chance ao Deputado… Vai que é bom…

Latin Lover…

Segundo o G1, Júnior Bozzella “é bacharel em Direito, gestor e empresário, foi vereador em São Vicente de 2013 a 2016, e nomeado superintendente de São Paulo da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Depois de receber quase 50 mil votos em 2014, ao se candidatar a deputado estadual, e não assumir a cadeira na Assembleia, por conta da legenda (PSD), ele decidiu tentar ganhar a eleição pelo PSL, partido do qual já foi o presidente estadual, e hoje faz parte do Diretório Nacional.”

Nascido em 1980 (esta data é importante, pois, teoricamente, ele pertence a uma geração que cresceu com os videogames), Bozzela tomou posse em 01/02/2019. O deputado não possui nenhum histórico envolvendo jogos ou produtos de entretenimento – tanto na (curta) vida legislativa quanto na social (fiz um escrutínio em suas redes). Está mais voltado a questões sobre violência contra a mulher – o que, a princípio, é nobre, mas devemos lembrar que ele é bolsonarista, logo, um pé atrás é recomendado… Foram 5 projetos de lei, todos apresentados em 12/03/2019. No entanto, o que chama atenção é sua equipe formada por 11 pessoas, na qual apenas duas são mulheres (sendo que uma foi contratada em 11/03).

O Projeto de Lei 1577/2019 propõe o seguinte:

1- Incluir dois parágrafos no Código Penal (Decreto-Lei nº 2848/1940):

Art. 286 – Incitar, publicamente, a prática de crime:
Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.
§1º Se o crime é praticado utilizando a internet ou meios de comunicação de massa, a pena é triplicada.
§2º Nas mesmas penas mencionadas no §1º incorre quem, por conta própria ou alheia, desenvolve, importa, vende, cede, empresta, disponibiliza ou aluga aplicativos ou jogos eletrônicos que incitem a violência e o crime.

2- Incluir um artigo no Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014):

Art. 21-A – O provedor de aplicações de internet que disponibilize jogos eletrônicos com conteúdo que incite a violência será responsabilizado subsidiariamente pelo crime de “incitação ao crime”, previsto no art. 286 do Código Penal, se deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.

É curiosa a ausência de informação nas redes sociais do deputado tratando sobre a iniciativa… Nas outras propostas, sempre há alguma divulgação. Estranho… Será que ele leu a proposta? Será que é dele? Será que pediram para ele encaminhar?

Ou será que ele sabe que não faz sentido nenhum e a divulgação apenas traria à tona toda a fragilidade do texto? Ou quis sair na frente de qualquer jeito sobre a matéria? Voto nessas duas aí.

Isto posto, vamos à análise do material…

De maneira geral, a incitação ao crime está presente no Código Penal – ela já é passível de detenção ou multa. É desnecessário incluir um parágrafo exclusivo para os jogos eletrônicos, pois em nada acrescenta ao teor da norma. Além disso, ainda é um tremendo vacilo com todas as outras tecnologias de comunicação… Afinal, o primeiro parágrafo cita a internet e os meios de comunicação de massa, então por que destacar apenas os jogos? Para variar, mais um PL que chove no molhado (igual aqueles sobre Youtuber e Influenciador Digital – que ainda vamos publicar um post sobre isso).

Mas tem seu lado bom. Não sei se o Deputado percebeu, mas ele acabou indo além da tentativa de criminalização dos games, pois o PL triplica a pena da incitação ao crime na internet e nos meios de comunicação de massa de maneira geral. Ou seja, aqueles loucos dos Chans também são alvo desta proposta. E podemos ir além: posts no Twitter, vlogs no Youtube ou lives no Facebook pregando homofobia, racismo ou misoginia também.

Que porra é essa?

Vamos voltar ao texto da proposta. Vale destacar que a criminalização estaria apenas na incitação, não na utilização. Logo, jogos com conteúdo violento não necessariamente, ou automaticamente, estariam estimulando comportamentos violentos. Tenho minhas dúvidas se a equipe do deputado se baseou em pesquisas sobre a relação entre violência e jogos para compor o texto da proposta (ok, admito, não tenho dúvida nenhuma de que ela não se preparou para isso). Sendo assim, as mudanças nas leis (que realmente não mudam nada) atingem apenas os jogos ou conteúdo que descaradamente, e publicamente, instiguem o indivíduo a cometer crimes. Neste caso, incitar possui uma conotação de ordem, como uma provocação deliberada à prática de algo nocivo. De fato, a relação entre jogos e violência não é direta, conforme podemos ver em diversos estudos, como neste post recente. ou neste Nerdologia, de 2014.

No caso da alteração do Marco Civil, o PL inclui o provedor de aplicações de internet como responsável, se não retirar o jogo com conteúdo que incite a violência do ar. Contudo, não diz quem acionará o provedor para retirar o jogo. No caso do art. 21, a indisponibilização ocorrerá “após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal”. Este vácuo sobre o pedido, portanto, levaria formalmente ao art. 19, que diz que “o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências.” Ou seja, tem de haver ordem judicial.

Felizmente, em ambos os casos, as conclusões não podem ser automáticas – como bem os ignorantes gostariam de impor. Pelo contrário, devem ser minimamente fundamentadas. O que caracterizaria uma incitação? Como julgar se um conteúdo incita a prática de crimes ou apenas utiliza a violência como forma de representação? É um caminho perigoso, pois facilmente poderíamos atribuir a incitação a quaisquer obras ficcionais ou artísticas. Como esta:

Apresento-lhes Judite e Holofernes, de Caravaggio (1599). Neste episódio bíblico, Holofernes é um general babilônio enviado por Nabucodonosor à Betulia. Durante o sítio, a viúva Judite entrou no acampamento e o embebedou. Em seguida, arrancou sua cabeça e a levou de volta, ajudando na vitória dos judeus. Pela lógica do deputado, esta pintura claramente estaria incitando o assassinato de tiranos autoritários e repressores. E aí? As artes plásticas estimulam as pessoas a decapitar governantes de extrema-direita? Ou de extrema-esquerda? Acho que não é bem assim…

Reconheço que foi um pouco difícil lidar com esta situação. Ler o projeto de lei deu bastante vergonha alheia frente a tamanha falta de conhecimento ou pesquisa, mas que, por outro lado, sobra em pressa para aproveitar o hype. O texto carece de conceitos e informações básicas. Aparentemente, foi feito correndo, baseado apenas na clássica corrente de pensamento, tão valorizada atualmente: o achismo. A justificativa do PL cita a tragédia de Suzano, ocorrida no dia 13. Com ele saindo no dia 19, será que a equipe do deputado realmente teve tempo para se preparar antes de formalizar uma proposta? Cinco dias foram suficientes para se elaborar um projeto de lei sólido? Acho que não… E tenho pena do Brasil, que gasta tempo e dinheiro para manter estas iniciativas completamente despreparadas.

Segundo o documento, “os adolescentes e as crianças são incitados a atividades que não condizem com seu perfil, conduzindo a formação de cidadãos perturbados e violentos.” Com base em que ele conclui isto? Mais uma vez, o viés da confirmação ataca: ignoram-se informações (como as pesquisas científicas) que refutam estas crenças preestabelecidas.

O fato é que, cientificamente, JOGO VIOLENTO NÃO INCENTIVA COMPORTAMENTO VIOLENTO. Você não precisa gostar desta afirmação para aceita-la. Apenas aceite. Pelo menos, até surgir algum estudo relevante que afirme o contrário. Até lá, ao invés de colocar na conta do Estado a criação das crianças e adolescentes, cobre dos pais uma presença mais efetiva na vida dos filhos.

E, mais importante, amiguinhos: NÃO OS DEIXE JOGAR JOGOS CUJA CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA NÃO CONDIZ COM SUAS IDADES!

#somosgamersnãoassassinos

[ATUALIZAÇÃO]

Foi proposto que o PL 1577/2019 fosse apensado ao PL 6042/2009 (“tipifica o crime de difusão de violência”), que é bem parecido – mesma falta de fundamentação e justificativa enviesada. Só é um pouco melhor, pois exemplifica o que entende por “incitar a violência” ao citar um jogo chamado Rapelay, mas infelizmente cai na asneira de concluir coisas com base em opinião sem evidências concretas. Ele afirma que a “prática virtual induz à prática das ações na vida real” – mas nós sabemos que é mentira, já que na internet todos são Tigrão, mas pessoalmente todos são Tchuchuca

Daí, descubro que, em 2009, o PL 6042/2009 foi apensado ao PL 1654/1996 (“proíbe a fabricação, importação e comercialização de jogos eletrônicos e programas de computador de conteúdo obsceno ou violento”), que, por sua vez, havia sido apensado, em 1996, ao PL 1070/1995 (“dispõe sobre crimes oriundos da divulgação de material pornográfico através de computadores”)…

E o que isso mostra: que é fácil propor qualquer coisa no Congresso. Que, na dúvida, será juntado à outra proposta. E assim por diante. Por mais de 20 anos…

Gustavo Audi

Se fosse uma entrevista de emprego, diria: inteligente, esforçado e cujo maior defeito é cobrar demais de si mesmo... Como não é, digo apenas que sou apaixonado por jogos, histórias e cultura nerd.

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