Pequeno tratado da narrativa ficcional

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Apesar do nome pretensioso, o objetivo deste texto é propor uma reflexão sobre os acordos que os contadores de histórias firmam com seu público e que fazem com que as pessoas não só se mantenham interessadas em uma narrativa, mas que cheguem ao final dela com a sensação de que o acordo firmado inicialmente com o autor da obra, foi cumprido.

O ser humano é um animal dotado de uma capacidade de abstração que permite que ele imagine algo que sequer tenha visto. Isto porque somos educados desde crianças dentro de uma cultura que nos transmite os valores e as referências dessas imagens, de maneira que seja possível para nós conceber imageticamente qualquer objeto a partir de sua descrição.

The last Unicorn

Essa capacidade, assim como todas as outras que usamos cotidianamente, são treinadas. O gosto é treinado e apurado e ele reflete uma convenção social vigente. Como assim? Simples: temos um instinto básico de sobrevivência que depende dos nossos sentidos, porém, esses sentidos não são mais usados instintivamente desde que paramos de caçar e criamos convenções sociais para que a convivência em grupos fosse possível.  Portanto, só sabemos que algo se parece com o que deveria se parecer, porque fomos ensinados assim. Nossos gostos são definidos a partir das nossas referências culturais e sociais, então, o que é bonito e agradável em determinada cultura, pode não ser em outra.
O famoso neurologista e escritor Oliver Sacks, em seu livro Um Antropólogo em Marte, relata vários casos de pacientes oftalmológicos que ilustram o que mencionei acima. Um dos mais conhecidos e que deu origem ao filme À Primeira Vista (1999), é o caso do massagista vítima de cataratas congênitas que o deixaram cego desde os 3 anos de idade. Tendo se desenvolvido sem a visão, diante da possibilidade de uma cirurgia que o faria enxergar novamente, a expectativa era de que após a cirurgia o paciente passaria a ter uma vida completamente ativa e funcional. No entanto, o que aconteceu foi tão frustrante que o paciente teve uma série de complicações subsequentes, pois ele nunca havia tido referência alguma das imagens que passou a ver, então, seu sistema cognitivo não era capaz de interpretar o que via. Imagine, o processo de atribuição de sentido às imagens que nos cercam é contínuo e é iniciado na infância, logo, somos treinados, desde que nascemos, para interpretar o mundo que enxergamos, coisa que não aconteceu com o paciente do livro.

Grandes pensadores e teóricos se dedicaram a entender a nossa relação com a imagem e como a imaginação, criando verdadeiros tratados sobre o assunto. Por isso, que um dos maiores conselhos que os grandes autores costumam dar aos aspirantes a escritores é: LEIA! Por mais óbvio que possa parecer, a falta de repertório de alguns autores é notável quando são incapazes de manter seu público interessado em sua narrativa. Muitos se sentem como gênios injustiçados, acusam os críticos de serem incapazes de entender suas obras, quando na verdade, o que acontece é que eles simplesmente ignoram premissas básicas do acordo que falei.

Para entender as cláusulas do tal contrato, algumas leituras são obrigatórias, como A Imaginação, de Sartre, Simulacros e Simulações, de Baudrillard, A Jornada do Herói, de Joseph Campbell, Apocalíticos e Integrados, de Humberto Eco, O Sofista, de Platão e Biografia Literária, de Samuel T. Coleridge.

No vídeo abaixo,Raphael Pinheiro fala sobre a suspensão da descrença nas narrativas ficcionais e explica a importância do autor se ater ao contrato que firmou com seu leitor. Para isso, ele explica que é preciso que o autor saiba o que seu público espera e, principalmente, é preciso saber quem é esse público, afinal, o que é aceitável ou concebível para um grupo, pode não ser para todos. Raphael é quadrinista e atuamente mora na França onde está trabalhando em um novo projeto de quadrinhos.

Como explica Coleridge, suspensão da descrença é um conceito que pressupõe um pacto entre a obra do autor e o leitor/espectador para que a narrativa seja apreciada como se fosse verdadeira, mesmo sabendo-se ser uma criação. É a permissão do leitor/espectador para entrar na história, e vivenciá-la como verdadeira, desde que ela seja minimamente verossímil dentro do enredo proposto. Sendo assim, não é possível esperar que seu público embarque na sua história se você nem ao menos entende quais são as expectativas do seu leitor.

Fundamental para este processo é a aptidão de obter prazer das emoções assim despertadas, pois, quando as imagens são ajustadas, também o são as emoções. Como uma consequência direta, criam-se fantasias convincentes, de tal modo que os indivíduos reagem subjetivamente a estas como se fossem reais. É esta uma propriedade nitidamente moderna, a aptidão de criar uma ilusão que se sabe falsa, mas se sente verdadeira. O indivíduo é tanto o autor como a plateia no seu próprio drama, ‘seu próprio’ no sentido que ele o construiu (…) (CAMPBELL,2001, p.115 – A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno.).

Obviamente, nem todas as histórias são concebidas no intuito de agradar a um público. Muitas vezes, o que o artista busca é apenas expressar o que sente ou realizar um processo catártico. Nesse caso, se seu trabalho não está vinculado à necessidade de uma aprovação de um grupo, o autor pode se dar ao luxo de não se preocupar com certas convenções, porém, também não pode esperar que seu trabalho caia nas graças do público ou dos críticos.

O que talvez alguns artistas não entendam é que estamos inseridos em um contexto capitalista que implica, acima de tudo, uma relação de consumo entre obra e consumidor. Ou seja, qualquer autor que tenha como objetivo que seu trabalho seja consumido, tem que entender a lógica do mercado com o qual trabalha. Isso implica necessariamente muita pesquisa, seja de público, seja de referências….

No contexto que vivemos hoje, algumas narrativas não funcionam mais para certos grupos, até porque, aparentemente, todas as histórias já foram contadas. Mesmo assim, fórmulas batidas ainda são usadas quando lembramos que todos os dias há novos consumidores entrando no mercado.

Então, se pretende criar uma história, pense que talvez sua imaginação não seja o suficiente para garantir que seu leitor aceite o que você propõe. Não subestime seu público, saiba o que ele espera e estabeleça com ele uma relação de confiança que garanta que ele tenha interesse de seguir sua narrativa até o fim. No entanto, se mais importante do que o que o público pensa é a sua expressão, então seja fiel a ela, mas não espere que todo mundo a aprove. Se não se deu ao trabalho de pesquisar e adquirir um repertório que garanta o mínimo de sentido de verossimilhança para quem lê seu trabalho, não diga que foi injustiçado porque as pessoas não entenderam sua mensagem. As pessoas não lhe devem nada! Stephen King e Neil Gaiman não se tornaram grandes autores sem antes terem passado anos debruçados em livros. Faça o mesmo!

De nada!

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

Este post tem 2 comentários

  1. Gustavo Audi

    Tem uma frase do Aristóteles (na Poética) que eu gosto muito: “quando plausível, o impossível se deve preferir a um possível que não convença.”
    Inclusive, é uma ótima dica de leitura para quem quer se aventurar por este campo.

    1. Daniela

      Concordo totalmente. A Poética é uma referência fundamental para quem quer entender melhor sobre o conceito de verossimilhança. Usei bastante esse livro pra produzir alguns artigos sobre o assunto! Valeu a dica!

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