Olá, galera. Hora de continuar discorrendo (não deixem de olhar a primeira e a segunda partes) sobre a carreira do sujeito que tem 90% da culpa por eu ter me tornado um colecionador de HQs. E, para deleite de muitos, chegou a hora de falar sobre seu trabalho com o Batman.
Em 1984, Frank Miller e Steve Gerber (falecido em 2008, co-criador do Howard, o Pato) apresentaram um ousado projeto para a DC: uma linha nova chamada Metrópolis, com três títulos que reformulariam os principais personagens da editora: Man of Steel ou The Man of Steel (Superman), Amazon (Mulher-Maravilha) e The Dark Knight (Batman, claro!).
A proposta original de Miller para a série do Homem Morcego (inicialmente pensada com o título Holy Terror e entregue no fim de fevereiro de 1984) tinha uma forte pegada cinematográfica e um “realismo” sujo. Apesar de mal poder ser chamado de argumento, já se sentia a força da narrativa que poderia brotar daquilo.
A DC recusou o projeto, pois Crise nas Infinitas Terras já estava em gestação. A tentativa de consertar sua confusa cronologia, com suas múltiplas realidades (trabalho desfeito recentemente por Grant Morrison em sua Crise Infinita), era um dos pontos através dos quais a editora tentava vencer as dificuldades que afetavam o mercado de quadrinhos como um todo e a DC em particular. Outros foram o investimento em autores britânicos (como Alan Moore, Neil Gaiman, Jamie Delano, Grant Morrison, etc.), o desenvolvimento de histórias mais “maduras” – que anos depois levariam a criação do selo Vertigo – e uma série de arcos ou edições especiais que findariam uma cronologia e começariam um novo Universo DC.
O editor Dick Giordano, que gostou das ideias apresentadas na tal linha Metrópolis, pediu a Frank que escrevesse uma proposta para o que seria a “ultima história do Batman”. Se Alan Moore, ao fazer o mesmo trabalho para o Superman, fez uma história que homenageava toda a trajetória do personagem, Miller sabia muito bem o que queria evitar a todo custo: a infantilidade dos anos 1950 e o besteirol dos 1960. Queria pegar um conceito mais próximo do original, revitalizado por Denny O’Neal e Neal Adams, e levá-lo ao máximo.
O projeto virou uma mini-série de luxo (lançado no inovador formato prestige, com o título The Dark Knight Returns – no Brasil, simplesmente O Cavaleiro das Trevas) e foi distribuída no sistema de venda direta (ou seja, o material não era colocado em bancas, mas em lojas especializadas e livrarias, que faziam encomendas antecipadamente e não devolviam os encalhes). Vista inicialmente como uma forma de a DC se precaver de um possível prejuízo, o formato de venda direta se desenvolveu com esta obra – e com Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons – e se tornou vital, na época, para a sobrevivência das editoras de quadrinhos.
Mas por que a DC estava preocupada? Ela não sabia como os leitores receberiam “aquele” Batman. Era certo que a dupla O’Neal/Adams já havia avançado no processo de resgate do personagem depois de tantos acontecimentos infames que o idiotizaram (a criação de um sidekick, as histórias bobocas dos anos 1950 que visavam se adequar às exigências da CMAA – Comics Magazine Association of America -, a horrenda série de TV, etc.), trazendo de volta o elemento noturno, investindo no aspecto detetivesco e apoiando um visual mais realista. Frank, no entanto, foi além.
Sem desprezar a bola levantada pelos últimos roteiristas, Miller foi atrás das origens mais violentas do vigilante de Gotham. Não foi por acaso que vemos, em quatro momentos distintos, o Homem Morcego usando armas de fogo: aquilo remete às primeiras histórias do Batman, nas quais ele utilizava esse tipo de armamento. Frank não adotou o físico esguio utilizado por Adams e seguido por vários desenhistas desde então: seu Batman era enorme, tanto em altura como em envergadura, um ser que seria assustador por si só. A definição do corpo do Batman lembrando “um tanque” se tornou clássica ao longo dos anos.
Outra diferença é que não temos investigação e sim inteligência: menos detetive e mais espião. Fica claro que o Batman aqui não é um auxiliar da polícia e sim um soldado, cuja principal arma é o terror que busca infligir aos criminosos.
Também nunca antes o aspecto psicológico do herói foi tão profundamente explorado. É comum até hoje ouvir a pergunta “Por que um bilionário se vestiria de morcego pra combater o crime?”. A resposta de Miller é simples: porque ele é maluco. Ou, pelo menos, se encontra às portas da loucura. Na visão do autor, segundo especialistas que analisaram a obra, Batman apresenta diversos traços preocupantes de distúrbios mentais, entre eles depressão, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno dissociativo de personalidade e comportamento anti-social. Embora ele não chegue ao ponto de merecer uma camisa de força no Arkham, se encontra em uma tênue fronteira, vivendo à beira do abismo.
Terminando, outro aspecto que merece destaque – e foi exaustivamente copiado ao longo dos anos, não apenas nas HQs como na TV e no cinema – foi a narração através da mídia. O Cavaleiro das Trevas está repleto de quadros que imitam telas de TV, em que o leitor acompanha a visão que a mídia eletrônica tem sobre os acontecimentos (visão deturpada e oscilante, indo de acordo com a opinião pública ou a vontade dos detentores do poder). Além disso, serve como uma forma inovadora de contar a história, criando suspense e criando expectativas. O retorno do Batman é um momento memorável, principalmente quando acompanhamos, no dia seguinte, as pessoas na TV dando sua opinião sobre o acontecimento. Miller ainda aproveita pra tecer críticas ácidas ao que é considerado “notícia” e até brincar com alguns de seus amigos, como o escritor Harlan Ellison.
A história do Batman envelhecido que retorna ao combate ao crime dez anos depois de sua “aposentadoria”, desafiando as autoridades estabelecidas e enfrentando novos e antigos vilões, além de um ex-aliado, foi… melhor, é um sucesso estrondoso, sendo republicada e vendida até os dias de hoje. Frank Miller foi definitivamente alçado ao estrelato, formando com Alan Moore – e, posteriormente, com Neil Gaiman – uma casta de roteiristas que tornaram os super-heróis interessantes até para pessoas que consideravam o conceito infantil.
Depois de fazer a “última” história do Batman, nada mais natural que Miller fosse convidado para escrever a primeira. Uma vez sepultado o péssimo conceito de Multiverso, graças a Crise nas Infinitas Terras, era necessário recomeçar o Universo DC e relançar seus principais personagens. E assim surgiu outro clássico: Batman Ano Um.
Publicada da edição 404 a 407 de Batman, a história centrava no retorno de Bruce Wayne à cidade que jurou proteger, ainda indeciso quanto aos meios que utilizaria pra cumprir tal promessa. Simultaneamente – e assim será por toda a história – acompanhamos também a chegada do policial James Gordon a Gotham, que encara sua tranferência para a cidade corrupta e tomada pelo crime em todos os níveis como um castigo.
Miller respeita os aspectos básicos da mitologia do Homem Morcego, mas não deixa de incluir novos e dar personalidade sólida e condizente com a época ao herói e ao seu futuro aliado. O realismo impera: vemos um Batman inexperiente e um policial com fraquezas humanas comuns. O confronto do vigilante com a equipe swat num prédio abandonado é um dos melhores momentos do personagem nas HQs.
Nos desenhos, Miller mais uma vez contou com o traço ímpar de David Mazzuchelli. O desenhista adotou um traço ainda mais realista (ou seja, sem toda aquela musculatura do Demolidor) e carregada nas sombras. Isso, mais a opção de usar o astro Gregory Peck como referência e o auxílio das belas cores de Richmond Lewis, criou uma atmosfera noir que agradou a diversos fãs e influenciou dezenas de histórias que vieram depois.
Miller voltou ao herói anos depois. Primeiro, no equivocadíssimo projeto O Cavaleiro das Trevas 2 (The Dark Knight Strikes Again). Quando Bob Schreck recebeu um convite para se tornar o novo editor da linha Batman na DC Comics, ligou para o amigo Frank Miller, com quem trabalhara diversas vezes da editora Dark Horse. Este não só o incentivou a aceitar como disse algo como “quem sabe a gente faz a continuação d’O Cavaleiro das Trevas?”. Quando Schreck sondou o amigo sobre a seriedade da proposta, este sorriu e perguntou “Pronto pra começar?”
Miller planejou uma história mais ampla, mais ambiciosa. Ele queria esclarecer diversos pontos que foram levantados na obra original (qual o motivo para o Governo dos EUA ter abolido os super-heróis? por que o Superman topava agir de forma anônima à serviço deles? Onde foram parar os principais membros da Liga da Justiça? qual o motivo do afastamento de Wayne e Grayson?) e procurar fazer com que outros personagens clássicos voltassem a funcionar. Infelizmente, problemas diversos fizeram a coisa desandar.
Feita em três partes, o primeiro número incomodou muito mais pela arte relaxada e pela equivocadíssima colorização digital adotada por Lynn Varley do que pelo texto. Há bons momentos, principalmente quando é esclarecido ao leitor o que aconteceu com o Elektron e com o Flash. Infelizmente, a caracterização do Superman beirou o ridículo e o Capitão Marvel com aparência de Tio Marvel não agradou. Mesmo assim, ninguém esperava o terror que foi a segunda edição: até hoje não entendo como alguém autorizou que se matassem árvores, e fazer papel, pra ser desperdiçado naquilo. Se os desenhos estavam ruins, ficaram piores. É como se o atentado do 11 de setembro, que aconteceu na época, tivesse desencadeado em Miller uma terrível má vontade com os heróis fantasiados que ele um dia tanto defendeu. Nem a demora pro lançamento da terceira edição salvou a lavoura: Frank Miller conseguiu fazer uma continuação que seria desconsiderada pelos próprios fãs.
Apesar disso, a série deu retorno financeiro. E a DC resolveu reunir dois talentos a trabalharem recentemente com o Homem Morcego no novo selo All-Star (que era livre da cronologia): Frank Miller foi unido ao mega-astro do desenho Jim Lee (ainda colhendo louros pelos números estupendos de Silêncio, seu arco de histórias com o Batman, escrito por Jeph Loeb). Infelizmente, foi outro grande equívoco: Miller fodalizou o personagem a ponto de torná-lo ridículo como aqueles heróis de filmes de ação dos anos 1980. Ao mesmo tempo, demonstrou um desprezo incomensurável por todos os outros super-heróis. Isso, aliado a seus constantes atrasos na entrega dos roteiros pífios que andava escrevendo, levaram a série a ser, praticamente, abandonada, embora a DC, em 2011, tivesse anunciado a retomada do título por mais seis edições.
Na mesma época de All Star, Frank Miller anunciou que estava trabalhando em uma graphic novel que colocaria o herói de Gotham enfrentando… a Al Qaeda! Anos de espera depois, a DC desistiu do projeto, chamada Holy Terror, forçando Miller a procurar uma nova editora e redefinir os personagens principais (que, inicialmente, seriam o Batman e a Mulher-Gato).
Apesar de tudo, fica claro que Miller redefiniu o personagem principal da DC Comics e criou uma visão que, apesar de algumas exceções, vem sendo a mais adotada pelos roteiristas nas últimas décadas. Mesmo sua interpretação visual do herói serviu de base para diversos artistas, como Jim Lee, John Romita Jr., Alex Ross, Eduardo Risso, entre outros.
E é isso, pessoal! Durante 2014, voltaremos com a quarta e última parte, onde analisaremos as obras autorais de Frank Miller e seu envolvimento com o cinema.
Ele era um bom escritor e desenhista (apesar de ser extremamente repetitivo, mas sabia como contar uma historia). Fez clássicos, junto com outros grandes, inovou a industria, e por fim acabou ficando louco e falecendo. Descanse em paz Frank Miller.
http://pt.mediamass.net/famosos/frank-miller/boato-da-morte.html
Infelizmente morreu depois de terminar Ronin (não aceito esse skrull que assumiu depois dele) . Triste. Hahaha.
Eu só aproveitei pra colocar essa notícia fake.
E ainda curto muita coisa que ele fez depois, embora realmente nada mais tenha tido a qualidade dos primeiros trabalhos dele.
Coitado, morreu tão jovem…
Mesmo depois de Holy Terror?
Post excelente, Jota! Frank Miller, a meu ver, morre depois que faz 300 e Ronin. Sin City tem momentos ótimos, mas já começa a demonstrar a instabilidade crescente do autor.
Mesmo assim, ainda sou putinha dele. Ponto.
Ainda há quem critique 300, cobrando uma autenticidade histórica que nunca foi o objetivo da obra.
Holy Terror balançou muito minha consideração pelo sujeito.
Cara, 300 foi declarada pelo próprio Miller como um sonho antigo de recontar, do jeito dele, uma história que o cativou na infância, que foi um episódio das guerras entre gregos e persas (batalha das Termópilas). Quem cobra autenticidade histórica é crítico idiota, de má-fé, e que quer aparecer..
Não me lembro de ter lido Holy Terror…
Cara, vou um pouco além: vi poucas pessoas falarem mal desta obra até o Alan Moore (estranhamente, como sempre, numa mesma entrevista em que acabara de declarar que “há muitos anos” não lia nada feito pelo Frank Miller) detonar a obra, justamente cobrando essa autenticidade histórica. E ainda tachou a obra de homofóbica. Isso, em uma obra em que os heróis são espartanos que ficam nus diante uns dos outros quase todo o tempo livre…
E, por favor, de fã do Miller para fã do Miller: poupe seus olhos e esqueça Holy Terror.