PANTEÃO POP – FRANK MILLER (PARTE 3)

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Olá, galera. Hora de continuar discorrendo (não deixem de olhar a primeira e a segunda partes) sobre a carreira do sujeito que tem 90% da culpa por eu ter me tornado um colecionador de HQs. E, para deleite de muitos, chegou a hora de falar sobre seu trabalho com o Batman.

Em 1984, Frank Miller e Steve Gerber (falecido em 2008, co-criador do Howard, o Pato) apresentaram um ousado projeto para a DC: uma linha nova chamada Metrópolis, com três títulos que reformulariam os principais personagens da editora: Man of Steel ou The Man of Steel (Superman), Amazon (Mulher-Maravilha) e The Dark Knight (Batman, claro!).

A proposta original de Miller para a série do Homem Morcego (inicialmente pensada com o título Holy Terror e entregue no fim de fevereiro de 1984) tinha uma forte pegada cinematográfica e um “realismo” sujo.  Apesar de mal poder ser chamado de argumento, já se sentia a força da narrativa que poderia brotar daquilo.

Página de abertura da história curta Wanted: Santa Claus - Dead or Alive, escrita por Denny O'Neil e publicada em DC Special Series nº 21 (1980). Foi o primeiro trabalho profissional de Miller com o personagem que, anos depois, ele ajudaria a levar ao topo.
Página de abertura da história curta Wanted: Santa Claus – Dead or Alive!, escrita por Denny O’Neil e publicada em DC Special Series nº 21 (1980). Foi o primeiro trabalho profissional de Miller com o personagem que, anos depois, ele ajudaria a levar ao topo.

A DC recusou o projeto, pois Crise nas Infinitas Terras já estava em gestação. A tentativa de consertar sua confusa cronologia, com suas múltiplas realidades (trabalho desfeito recentemente por Grant Morrison em sua Crise Infinita), era um dos pontos através dos quais a editora tentava vencer as dificuldades que afetavam o mercado de quadrinhos como um todo e a DC em particular. Outros foram o investimento em autores britânicos (como Alan Moore, Neil Gaiman, Jamie Delano, Grant Morrison, etc.), o desenvolvimento de histórias mais “maduras” – que anos depois levariam a criação do selo Vertigo – e uma série de arcos ou edições especiais que findariam uma cronologia e começariam um novo Universo DC.

Arte original da página 10 da terceira edição de O Cavaleiro das Trevas, mostrando Batman e Carrie Kelley saltando sobre a cidade. Imagem icônica, uma das favoritas de Frank Miller, foi arrematada em um leilão em 2011 pela quantia de US$ 449.000,00.
Arte original da página 10 da terceira edição de O Cavaleiro das Trevas, mostrando Batman e Carrie Kelley saltando sobre Gotham City. Imagem icônica, uma das favoritas do artista, foi arrematada em um leilão em 2011 pela quantia de US$ 449.000,00.

O editor Dick Giordano, que gostou das ideias apresentadas na tal linha Metrópolis, pediu a Frank que escrevesse uma proposta para o que seria a “ultima história do Batman”. Se Alan Moore, ao fazer o mesmo trabalho para o Superman, fez uma história que homenageava toda a trajetória do personagem, Miller sabia muito bem o que queria evitar a todo custo: a infantilidade dos anos 1950 e o besteirol dos 1960. Queria pegar um conceito mais próximo do original, revitalizado por Denny O’Neal e Neal Adams, e levá-lo ao máximo.

Arte original de Miller para o encadernado d'O Cavaleiro das Trevas. Miller declarou que sempre havia visto o herói como "um terrorista", que atacava vilões. Além disso, o via como algupem obcecado e mentalmente instável.
Arte original de Miller para o encadernado d’O Cavaleiro das Trevas. Ele declarou que sempre havia visto o herói como “um terrorista”, que atacava vilões, além de obcecado, furioso e mentalmente instável.

O projeto virou uma mini-série de luxo (lançado no inovador formato prestige, com o título The Dark Knight Returns – no Brasil, simplesmente O Cavaleiro das Trevas) e foi distribuída no sistema de venda direta (ou seja, o material não era colocado em bancas, mas em lojas especializadas e livrarias, que faziam encomendas antecipadamente e não devolviam os encalhes). Vista inicialmente como uma forma de a DC se precaver de um possível prejuízo, o formato de venda direta se desenvolveu com esta obra – e com Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons – e se tornou vital, na época, para a sobrevivência das editoras de quadrinhos.

Arte original da capa do segundo número d'O Cavaleiro das Trevas. Em 2013, esta obra foi a leilão, tendo sido arrematada por estimados US$ 478.000,00, segundo a Associated Press.
Arte original da capa do segundo número d’O Cavaleiro das Trevas. Em 2013, esta obra foi a leilão, tendo sido arrematada por estimados US$ 478.000,00, segundo a Associated Press.

Mas por que a DC estava preocupada? Ela não sabia como os leitores receberiam “aquele” Batman. Era certo que a dupla O’Neal/Adams já havia avançado no processo de resgate do personagem depois de tantos acontecimentos infames que o idiotizaram (a criação de um sidekick, as histórias bobocas dos anos 1950 que visavam se adequar às exigências da CMAAComics Magazine Association of America -, a horrenda série de TV, etc.), trazendo de volta o elemento noturno, investindo no aspecto detetivesco e apoiando um visual mais realista. Frank, no entanto, foi além.

Sem desprezar a bola levantada pelos últimos roteiristas, Miller foi atrás das origens mais violentas do vigilante de Gotham. Não foi por acaso que vemos, em quatro momentos distintos, o Homem Morcego usando armas de fogo: aquilo remete às primeiras histórias do Batman, nas quais ele utilizava esse tipo de armamento. Frank não adotou o físico esguio utilizado por Adams e seguido por vários desenhistas desde então: seu Batman era enorme, tanto em altura como em envergadura, um ser que seria assustador por si só. A definição do corpo do Batman lembrando “um tanque” se tornou clássica ao longo dos anos.

Uma declaração interessante de Miller, que mostra bem o controle do ritmo que o autor detinha na época: "Quando eu estava estruturando Cavaleiro das Trevas a primeira coisa que eu fiz foi estabelecer o esquema de 16 quadros em que a série inteira iria ser baseada. Isto era eu tentando tentando tratar os painéis como notas musicais em um pulso, para controlar o passo.Era um livro muito denso, eu estava empacotando coisas de maneira extremamente forte nesse ponto, mas você notará que a tensão desses pequenos painéis em staccato é quebrada de vez em quando por uma meia página ou por uma imagem de página inteira que é destinada não a retirar você da história mas fazer com que você dê uma pausa e se dê conta de onde a história está, qual é o objetivo. Meu favorito do grupo é no terceiro número, quando você vira a página e se depara com uma imagem de Batman e Robin sobre a cidade, e você está olhando para cima para eles. Esta é provavelmente a cena mais heróica em que eles aparecem em toda a série."
Uma declaração interessante de Miller, que mostra bem o controle do ritmo que o autor detinha na época: “Quando eu estava estruturando Cavaleiro das Trevas a primeira coisa que fiz foi estabelecer o esquema de 16 quadros (por página) em que a série inteira iria ser baseada. Isto era eu tentando tratar os painéis como notas musicais em um pulso, para controlar o passo. Era um livro muito denso, eu estava empacotando coisas de maneira extremamente forte nesse ponto, mas você notará que a tensão desses pequenos painéis em staccato é quebrada de vez em quando por uma meia página ou por uma imagem de página inteira que é destinada não a retirar você da história mas fazer com que você dê uma pausa e se dê conta de onde a história está, qual é o objetivo. Meu favorito do grupo é no terceiro número, quando você vira a página e se depara com uma imagem de Batman e Robin sobre a cidade, e você está olhando para eles. Esta é provavelmente a cena mais heróica em que eles aparecem em toda a série.”

Outra diferença é que não temos investigação e sim inteligência: menos detetive e mais espião.  Fica claro que o Batman aqui não é um auxiliar da polícia e sim um soldado, cuja principal arma é o terror que busca infligir aos criminosos.

Outra inovação - que mostrava o quanto Miller amava o personagem e detestava a série de piadas idiotas que foram feitas com o mesmo ao longo dos anos - foi colocar uma garota no papel de Robin. Lendas dão conta que a ideia surgiu de um papo com John Byrne, que disse que uma Robin mulher ficaria com um visual muito interessantes, demonstrando isso mostrando a personagem Maggie - da série Love and Rocketts, de Jaime Hernández - vestida como uma garota-prodígio. Acima, vemos alguns dos primeiros rabiscos que o desenhista criou para Carrie Kelley, a Robin.
Outra inovação – que mostrava o quanto Miller amava o personagem e detestava a série de piadas idiotas que foram feitas com o mesmo ao longo dos anos – foi colocar uma garota no papel de Robin. Lendas dão conta que a ideia surgiu de um papo com John Byrne, que disse que uma Robin mulher ficaria com um visual muito interessante, demonstrando isso ao mostrar a personagem Maggie – da série Love and Rocketts, de Jaime Hernández – vestida como uma garota-prodígio. Acima, vemos alguns dos primeiros rabiscos que o desenhista criou para Carrie Kelley, a Robin.
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Esta seria a ilustração que Byrne usou pra convencer Miller que uma mulher seria uma escolha perfeita para o papel de Robin.

Também nunca antes o aspecto psicológico do herói foi tão profundamente explorado. É comum até hoje ouvir a pergunta “Por que um bilionário se vestiria de morcego pra combater o crime?”. A resposta de Miller é simples: porque ele é maluco. Ou, pelo menos, se encontra às portas da loucura. Na visão do autor, segundo especialistas que analisaram a obra, Batman apresenta diversos traços preocupantes de distúrbios mentais, entre eles depressão, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno dissociativo de personalidade e comportamento anti-social. Embora ele não chegue ao ponto de merecer uma camisa de força no Arkham, se encontra em uma tênue fronteira, vivendo à beira do abismo.

Terminando, outro aspecto que merece destaque – e foi exaustivamente copiado ao longo dos anos, não apenas nas HQs como na TV e no cinema – foi a narração através da mídia. O Cavaleiro das Trevas está repleto de quadros que imitam telas de TV, em que o leitor acompanha a visão que a mídia eletrônica tem sobre os acontecimentos (visão deturpada e oscilante, indo de acordo com a opinião pública ou a vontade dos detentores do poder). Além disso, serve como uma forma inovadora de contar a história, criando suspense e criando expectativas. O retorno do Batman é um momento memorável, principalmente quando acompanhamos, no dia seguinte, as pessoas na TV dando sua opinião sobre o acontecimento. Miller ainda aproveita pra tecer críticas ácidas ao que é considerado “notícia” e até brincar com alguns de seus amigos, como o escritor Harlan Ellison.

Alan Moore sobre O Cavaleiro das Trevas: "... temos o romance essencial do Cavaleiro das Trevas. Miller conseguiu transformar o Batman em uma verdadeira lenda, introduzindo o elemento sem o qual as lendas são incompletas (...) e esse lemento é o tempo... (...) Em sua história cativante, da grande batalha final de um homem, Miller conseguiu criar algo radiante que torcemos para que esclareça as coisas para o resto do campo dos quadrinhos, lançando uma nova luz sobre os problemas que enfrentamos todos nós que trabalhamos no setor. Talvez até mesmo nos guiando em direção a novas soluções."
Alan Moore sobre O Cavaleiro das Trevas: “… temos o romance essencial do Cavaleiro das Trevas. Miller conseguiu transformar o Batman em uma verdadeira lenda, introduzindo o elemento sem o qual as lendas são incompletas (…) e este elemento é o tempo… (…) Em sua história cativante, da grande batalha final de um homem, Miller conseguiu criar algo radiante que torcemos para que esclareça as coisas para o resto do campo dos quadrinhos, lançando uma nova luz sobre os problemas que enfrentamos todos nós que trabalhamos no setor, talvez até mesmo nos guiando em direção a novas soluções.”

A história do Batman envelhecido que retorna ao combate ao crime dez anos depois de sua “aposentadoria”, desafiando as autoridades estabelecidas e enfrentando novos e antigos vilões, além de um ex-aliado,  foi… melhor, é um sucesso estrondoso, sendo republicada e vendida até os dias de hoje. Frank Miller foi definitivamente alçado ao estrelato, formando com Alan Moore – e, posteriormente, com Neil Gaiman – uma casta de roteiristas que tornaram os super-heróis interessantes até para pessoas que consideravam o conceito infantil.

Num caso clássico de confusão entre criador e obra, virou modinha chamar o Batman de O Cavaleiro das Trevas de fascista. Apesar do próprio Miller apontar o herói como um "terrorista", eu acho a ideia completamente equivocada. Um fascista busca controle e poder usando as desculpas mais atraentes que existirem na época (insegurança, instabilidade econômica, crise étnica, etc.). O fascista quer impor sua ideologia sobre todos e se incomoda de sobremaneira com os que a criticam. O fascismo, em suma, busca a criação de um novo Estado, uma nova cultura, uma nova forma de ver o mundo, centrada na reunião das massas e na figura de um líder carismático, com uma estúpida tendência ao messianismo. Onde está o novo Estado que o Batman quer fundar? Ele sequer se opõe aos governantes (ele chega a, indiretamente, salvar a vida do governador do Estado) ou policiais. Por exemplo, ele nada fez para evitar a indicação de Ellen Yindel como sucessora de James Gordon, mesmo ela tendo declarado que seu primeiro ato seria emitir um mandado de prisão contra o vigilante. "Ah, mas ele cria um movimento..." Batman reinicia sua guerra sozinho. Ao ver o efeito que sua imagem tem sobre os jovens, a contragosto e forçado pelas circunstâncias advindas dos efeitos do Arauto do Inverno, usa a força do símbolo para a) impedir que jovens violentos e desfocados continuem a agir como criminosos, e b) trazer paz em um momento do completa instabilidade. Ressalte que eu escrevi "paz" e não "segurança". Reforço mais uma vez: a chamada "milícia" de Batman está ali apenas para impedir atos criminosos. Reparem que não há imposição ideológica de nenhuma espécie: muitas pessoas comuns são contra o Cavaleiro das Trevas e não sofrem nada com isso. Batman não cerceia a liberdade do indivíduo comum nem censura a imprensa, mesmo esta dando cobertura parcial aos fatos. Quando o Governo Federal ordena ao Superman que capture o Batman, o grande problema está no fato de que ele desobedeceu um acordo feito anos antes, que proibiu os super-heróis de agirem em público. O governo que, naquele mesmo momento, havia declarado Lei Marcial e oferecido auxílio militar contra manifestações de violência e saques. Chiem com TDK2 à vontade.
Num caso clássico de confusão entre criador e obra, virou modinha chamar o Batman de O Cavaleiro das Trevas de fascista. Apesar de o próprio Miller apontar o herói como um “terrorista”, eu acho a ideia completamente equivocada. Um fascista busca controle e poder usando as desculpas mais atraentes que existirem na época (insegurança, instabilidade econômica, crise étnica, etc.). O fascista quer impor sua ideologia sobre todos e se incomoda sobremaneira com os que a criticam. O fascismo, em suma, busca a criação de um novo Estado, uma nova cultura, uma nova forma de ver o mundo, centrada na reunião das massas e na figura de um líder carismático, com uma estúpida tendência ao messianismo. Onde está o novo Estado que o Batman quer fundar? Ele sequer se opõe aos governantes (chega a, indiretamente, salvar a vida do governador do Estado) ou policiais (ele nada fez para evitar a indicação de Ellen Yindel como sucessora de James Gordon, mesmo ela tendo declarado que seu primeiro ato seria emitir um mandado de prisão contra o vigilante). “Ah, mas ele cria um movimento…” Batman reinicia sua guerra sozinho (a adição de Carrie leva em conta gratidão e desejo de proteção). Ao ver o efeito que sua imagem tem sobre os jovens, a contragosto e forçado pelas circunstâncias advindas dos efeitos do Arauto do Inverno, usa a força do símbolo para a) impedir que jovens violentos e desfocados continuem a agir como criminosos, e b) trazer paz em um momento de completa instabilidade. Ressalte que eu escrevi “paz” e não “segurança”. Reforço mais uma vez: a chamada “milícia” de Batman está ali apenas para impedir atos criminosos. Batman existe para evitar mortes! Batman não cerceia a liberdade do indivíduo comum nem censura a imprensa, mesmo esta dando cobertura parcial aos fatos. Quando o Governo Federal ordena ao Superman que capture o Batman, o grande problema está no fato de que ele desobedeceu um acordo feito anos antes, que proibiu os super-heróis de agirem em público. O mesmo governo que, naquele momento, havia declarado Lei Marcial e oferecido auxílio militar contra manifestações de violência e saques.

Depois de fazer a “última” história do Batman, nada mais natural que Miller fosse convidado para escrever a primeira. Uma vez sepultado o péssimo conceito de Multiverso, graças a Crise nas Infinitas Terras, era necessário recomeçar o Universo DC e relançar seus principais personagens. E assim surgiu outro clássico: Batman Ano Um.

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Batman 407, em que Frank Miller e David Mazzuchelli terminaram de reescrever a origem do maior personagem da DC.

Publicada da edição 404 a 407 de Batman, a história centrava no retorno de Bruce Wayne à cidade que jurou proteger, ainda indeciso quanto aos meios que utilizaria pra cumprir tal promessa. Simultaneamente – e assim será por toda a história – acompanhamos também a chegada do policial James Gordon a Gotham, que encara sua tranferência para a cidade corrupta e tomada pelo crime em todos os níveis como um castigo.

Miller respeita os aspectos básicos da mitologia do Homem Morcego, mas não deixa de incluir novos e dar personalidade sólida e condizente com a época ao herói e ao seu futuro aliado. O realismo impera: vemos um Batman inexperiente e um policial com fraquezas humanas comuns. O confronto do vigilante com a equipe swat num prédio abandonado é um dos melhores momentos do personagem nas HQs.

O texto de Miller é estupendo, embora hoje tenha quem minimize sua qualidade. A passagem em que Bruce, às portas da morte, "fala" com seu pai e a em que Gordon reflete sobre o Batman, comparando-o com seus superiores, são exemplos de uma qualidade maior que anda perdida atualmente.
O texto de Miller é estupendo, embora hoje tenha quem minimize sua qualidade. A passagem em que Bruce, às portas da morte, “fala” com seu pai e a em que Gordon reflete sobre o Batman, comparando-o com seus superiores, são exemplos de uma excelência  que anda escassa ultimamente. Na imagem, vemos a cena em que Batman declara guerra à elite corrupta de Gotham.

Nos desenhos, Miller mais uma vez contou com o traço ímpar de David Mazzuchelli. O desenhista adotou um traço ainda mais realista (ou seja, sem toda aquela musculatura do Demolidor) e carregada nas sombras. Isso, mais a opção de usar o astro Gregory Peck como referência e o auxílio das belas cores de Richmond Lewis, criou uma atmosfera noir que agradou a diversos fãs e influenciou dezenas de histórias que vieram depois.

Capa do encadernado de Ano Um. Tanto este trabalho como O Cavaleiro das Trevas foram adaptados em excelentes longas metragens de animação (O Cavaleiro das Trevas foi dividido em duas partes).
Capa do encadernado de Ano Um. Tanto este trabalho como O Cavaleiro das Trevas foram adaptados em excelentes longas metragens de animação (O Cavaleiro das Trevas foi dividido em duas partes).

Miller voltou ao herói anos depois. Primeiro, no equivocadíssimo projeto O Cavaleiro das Trevas 2 (The Dark Knight Strikes Again). Quando Bob Schreck recebeu um convite para se tornar o novo editor da linha Batman na DC Comics, ligou para o amigo Frank Miller, com quem trabalhara diversas vezes da editora Dark Horse. Este não só o incentivou a aceitar como disse algo como “quem sabe a gente faz a continuação d’O Cavaleiro das Trevas?”. Quando Schreck sondou o amigo sobre a seriedade da proposta, este sorriu e perguntou “Pronto pra começar?”

Uma das primeiras artes promocionais de O Cavaleiro das Trevas 2. Infelizmente, o traço se deteriorou enormemente até a publicação do projeto.
Uma das primeiras artes promocionais de O Cavaleiro das Trevas 2. Infelizmente, o traço se deteriorou enormemente até a publicação do projeto.

Miller planejou uma história mais ampla, mais ambiciosa. Ele queria esclarecer diversos pontos que foram levantados na obra original (qual o motivo para o Governo dos EUA ter abolido os super-heróis? por que o Superman topava agir de forma anônima à serviço deles? Onde foram parar os principais membros da Liga da Justiça? qual o motivo do afastamento de Wayne e Grayson?) e procurar fazer com que outros personagens clássicos voltassem a funcionar. Infelizmente, problemas diversos fizeram a coisa desandar.

Miller fez um trabalho tão ruim que chegou a conflitar com alguns elementos estabelecidos na obra original. Pela primeira vez, ele também desprezou o personagem de James Gordon e chuou a cara dos fãs ao dar um destino completamente idiota ao antigo Robin, Dick Grayson.
Miller fez um trabalho tão ruim que chegou a conflitar com alguns elementos estabelecidos na obra original. Pela primeira vez, ele também desprezou o personagem de James Gordon e chutou a cara dos fãs ao dar um destino completamente idiota ao antigo Robin, Dick Grayson. Observem como Lynn Varley trabalhou pessimamente com a colorização digital.

Feita em três partes, o primeiro número incomodou muito mais pela arte relaxada e pela equivocadíssima colorização digital adotada por Lynn Varley do que pelo texto. Há bons momentos, principalmente quando é esclarecido ao leitor o que aconteceu com o Elektron e com o Flash. Infelizmente, a caracterização do Superman  beirou o ridículo e o Capitão Marvel com aparência de Tio Marvel não agradou. Mesmo assim, ninguém esperava o terror que foi a segunda edição: até hoje não entendo como alguém autorizou que se matassem árvores, e fazer papel, pra ser desperdiçado naquilo. Se os desenhos estavam ruins, ficaram piores. É como se o atentado do 11 de setembro, que aconteceu na época, tivesse desencadeado em Miller uma terrível má vontade com os heróis fantasiados que ele um dia tanto defendeu. Nem a demora pro lançamento da terceira edição salvou a lavoura: Frank Miller conseguiu fazer uma continuação que seria desconsiderada pelos próprios fãs.

Apesar disso, a série deu retorno financeiro. E a DC resolveu reunir dois talentos a trabalharem recentemente com o Homem Morcego no novo selo All-Star (que era livre da cronologia): Frank Miller foi unido ao mega-astro do desenho Jim Lee (ainda colhendo louros pelos números estupendos de Silêncio, seu arco de histórias com o Batman, escrito por Jeph Loeb). Infelizmente, foi outro grande equívoco: Miller fodalizou o personagem a ponto de torná-lo ridículo como aqueles heróis de filmes de ação dos anos 1980. Ao mesmo tempo, demonstrou um desprezo incomensurável por todos os outros super-heróis. Isso, aliado a seus constantes atrasos na entrega dos roteiros pífios que andava escrevendo, levaram a série a ser, praticamente, abandonada, embora a DC, em 2011, tivesse anunciado a retomada do título por mais seis edições.

All Star: um Batman excessivamente cruel e perturbado não agradou a ninguém. Uma pena, visto que este era um projeto segundo o qual Miller ligaria Ano Um a O Cavaleiro das Trevas, criando assim a sua própria mitologia do herói.
All Star: um Batman excessivamente cruel e perturbado não agradou a ninguém. Uma pena, visto que este era um projeto segundo o qual Miller ligaria Ano Um a O Cavaleiro das Trevas, criando assim a sua própria mitologia do herói.

Na mesma época de All Star, Frank Miller anunciou que estava trabalhando em uma graphic novel que colocaria o herói de Gotham enfrentando… a Al Qaeda! Anos de espera depois, a DC desistiu do projeto, chamada Holy Terror, forçando Miller a procurar uma nova editora e redefinir os personagens principais (que, inicialmente, seriam o Batman e a Mulher-Gato).

O Censor, o "substituto" que Miller arranjou para o Batman quando foi lembrado pela DC que o Batman não mata!!!!!!!
O Censor, o “substituto” que Miller arranjou para o Batman quando foi lembrado pela DC que o vigilante de Gotham não mata!!!!!!!

Apesar de tudo, fica claro que Miller redefiniu o personagem principal da DC Comics e criou uma visão que, apesar de algumas exceções, vem sendo a mais adotada pelos roteiristas nas últimas décadas. Mesmo sua interpretação visual do herói serviu de base para diversos artistas, como Jim Lee, John Romita Jr., Alex Ross, Eduardo Risso, entre outros.

E é isso, pessoal! Durante 2014, voltaremos com a quarta e última parte, onde analisaremos as obras autorais de Frank Miller e seu envolvimento com o cinema.

JJota

Já foi o espírito vivo dos anos 80 e, como tal, quase pereceu nos anos 90. Salvo - graças, principalmente, ao Selo Vertigo -, descobriu nos últimos anos que a única forma de se manter fã de quadrinhos é desenvolvendo uma cronologia própria, sem heróis superiores ou corporações idiotas.

Este post tem 10 comentários

  1. Bizarro

    Ele era um bom escritor e desenhista (apesar de ser extremamente repetitivo, mas sabia como contar uma historia). Fez clássicos, junto com outros grandes, inovou a industria, e por fim acabou ficando louco e falecendo. Descanse em paz Frank Miller.

      1. Bizarro

        Infelizmente morreu depois de terminar Ronin (não aceito esse skrull que assumiu depois dele) . Triste. Hahaha.

        1. JJota

          Eu só aproveitei pra colocar essa notícia fake.

          E ainda curto muita coisa que ele fez depois, embora realmente nada mais tenha tido a qualidade dos primeiros trabalhos dele.

  2. Post excelente, Jota! Frank Miller, a meu ver, morre depois que faz 300 e Ronin. Sin City tem momentos ótimos, mas já começa a demonstrar a instabilidade crescente do autor.

    Mesmo assim, ainda sou putinha dele. Ponto.

    1. JJota

      Ainda há quem critique 300, cobrando uma autenticidade histórica que nunca foi o objetivo da obra.

      Holy Terror balançou muito minha consideração pelo sujeito.

      1. Cara, 300 foi declarada pelo próprio Miller como um sonho antigo de recontar, do jeito dele, uma história que o cativou na infância, que foi um episódio das guerras entre gregos e persas (batalha das Termópilas). Quem cobra autenticidade histórica é crítico idiota, de má-fé, e que quer aparecer..

        Não me lembro de ter lido Holy Terror…

        1. JJota

          Quem cobra autenticidade histórica é crítico idiota, de má-fé, e que quer aparecer..

          Cara, vou um pouco além: vi poucas pessoas falarem mal desta obra até o Alan Moore (estranhamente, como sempre, numa mesma entrevista em que acabara de declarar que “há muitos anos” não lia nada feito pelo Frank Miller) detonar a obra, justamente cobrando essa autenticidade histórica. E ainda tachou a obra de homofóbica. Isso, em uma obra em que os heróis são espartanos que ficam nus diante uns dos outros quase todo o tempo livre…

          E, por favor, de fã do Miller para fã do Miller: poupe seus olhos e esqueça Holy Terror.

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