Os prazeres e as dores crônicas do Festival do Rio de cinema

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Entra ano, sai ano, e o suadouro não passa. Basta setembro mostrar a que veio, com suas chuvinhas envergonhadas e a proximidade de um novo Festival do Rio de cinema para o nervosismo tomar conta das cabecinhas dos hipsters, clubbers, cults, pseudos, alcóolatras festivos, intelectuociosos, trocadores de figurinhas da Copa e cinéfilos cariocas.

Ao invés de trabalhar, estudar, lavar louça e dormir ocasionalmente, essa fauna metropolitana pira e senta o dedo na internet para reservar e adquirir, uma semana antes, um disputado passaporte que oportuniza uma privilegiada participação no festival, fornecendo acesso oneroso a 20 ou – dádiva dos deuses para quem tem dinheiro sobrando e férias já agendadas50 ingressos para sessões de filmes que, com raras exceções, jamais passarão novamente pela aduana brasileira. De posse do comprovante da aquisição do limitado passe, é preciso teletransportar-se para a Central de Ingressos, um bunker de atendentes e papéis colados e riscados, encravado no lobby do cinema Estação Rio, a fim de receber o indefectível passaporte em forma de cartão e cordinha com clipe para pendurar.

Para alguns, ele é pura ostentação, quase como pendurar uma melancia no pescoço. Para outros, é apenas uma forma de demonstrar apreço pela sétima arte. Porém, para os fãs do Festival, é uma espécie de distinção, um crachá de cinéfilo, quase um curralzinho vip em forma de penduricalho.

Entretanto, por mais sexy que você possa se sentir vestido com o passaporte-penduricalho, ainda precisa atravessar o arco-íris até o pote de ingressos. O que significa apropriar-se de uma revista do festival contendo a programação oficial e detectar uma mesa, cadeira, bancada, banqueta, beirada ou degrau acarpetado de escada, onde, munido de uma caneta de ponta fina, apta a escrever em diminutos espaços na referida revista ou em rascunhos disponibilizados ainda menores, você possa (des)confortavelmente adquirir uma intensa dor nas costas lendo tensa e avidamente a sinopse de cerca de 350 filmes, em busca dos seus prediletos.

Ah, os prediletos. Você abre a programação sonhando com Larry Clark, Linklater e Loach, e, horas mais tarde, contabiliza apenas um desses cineastas em sua planilha, numa sessão encaixada entre dois documentários ucranianos recentes que lhe farão entender como ninguém a tensão com a Rússia.

revistaSim, não há como sair incólume do guia oficial. Suas certezas desabam à leitura da infernal revistinha. Sinopses enigmáticas atiçam sua curiosidade. Sinopses dramáticas apelam para suas emoções. Sinopses mencionando prêmios internacionais recebidos e censuras sofridas em outros países te fazem trincar os dentes, em insaciável desejo.

Assistir a um filme no Festival passa pelo binômio vontade X possibilidade. Não basta escolhê-los. É preciso avaliar cuidadosamente a possibilidade de estar em dois cinemas ao mesmo tempo, ou de estar disposto a correr pelas ruas ignorando faixas de pedestres e sinais de trânsito para chegar a salas razoavelmente próximas, dada a chance da sessão seguinte iniciar-se imediatamente após a anterior.

A dica (leia-se resignação) é assumir suas limitações temporais e incapacidade de voar, escolhendo apenas sessões no mesmo cinema, ou em salas próximas do seu trabalho, faculdade ou ponte aérea. Daí, basta ler a sinopse dos filmes que se encaixam nesses cenários, o que o deixará menos cansado e mais feliz, podendo, no entanto, causar-lhe dores no braço esquerdo e no peito, caso seus esperados filmes do coração não estejam dentre os possíveis de encaixe.

Saindo vivo dessa fase, você terá uma listinha riscada e atropelada, cheia de títulos, códigos e horários, pronta para ser submetida aos decifradores que atendem na Central de Ingressos. Não se assuste quando eles parecerem ler sua mente, ao identificarem o filme que você está querendo adquirir, pela simples leitura dos seus garranchos ou por citar o diretor, ator ou a comoção que a película causou em Cannes.

Tudo bem que, quanto antes você tentar adquirir ingressos para os filmes que escolheu, menor será a possibilidade de adquirí-los efetivamente. Eis que nos primeiros dias do Festival a maioria dos rolos de filmes, cópias e arquivos ainda não terá chegado, muitas vezes porque estão presos na alfândega.

Com o passar dos dias, a venda de tais sessões vão sendo liberadas ou são preenchidas com outros longas, fazendo a alegria dos fãs de plantão que visitam a Central de Ingressos três vezes ao dia, em busca de aualizações na listagem oficial de liberações, rabiscadas à munheca em papéis colados em toda parte.

Em algum momento você terá seus ingressos, e, aí sim, depois de tanta espera e espinhosas aventuras, poderá relaxar suavemente numa poltrona de couro forrada de veludo, comendo pipoca com hambúrguer enquanto assiste às vinhetas que antecedem cada filme, torcendo para que as legendas eletrônicas não parem de funcionar até que venha o climático e esperado

THE END

(Ah, que fim que nada! Pelas próximas semanas, acompanhe a melhor cobertura do Festival do Rio aqui mesmo no Iluminerds, pessoal! A festa nunca termina 😉

Rodrigo Sava

Arqueólogo do Impossível em alguma Terra paralela

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