Os grupos secretos mistos como espaços seguros

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Este é o último da série de textos durante a campanha #podeparar, da ONU. A ação iniciada no dia 25 de novembro, marca o Dia Internacional Luta pelo Fim da Violência contra a Mulher. Durante os 16 dias de ativismo na luta contra a violência à mulher, blogs envoltos pelo #feminismonerd se propuseram a discutir as problemáticas em torno da representação de mulheres como uma matriz que reitera os discursos de violência e ódio, quanto veículos que visibilizam a discussão. Sabemos que apenas a exposição e discussões possibilitam o combate direto, a resolução e identificação do problema. Como reitera a escritora e teórica feminista Audre Lorde: “é preciso transformar o silêncio em linguagem e ação”.

Eu já havia falado sobre o assunto no Minas Nerds e no Quadrinheiros. Também abordei o tema e um seminário acadêmico promovido pelo Observatório de Comunicação e Liberdade de Expressão da USP, porém a abordagem se limitava às ações dos coletivos exclusivamente femininos.  Mas, a discussão sobre a violência no Universo Nerd não deve se limitar às mulheres, por isso, conversei com o pessoal do Cabrito Nerd, um dos grupos fechados dos quais participo no Facebook. A escolha pelo grupo se deve ao fato de seus moderadores aplicarem uma política severa em relação a qualquer tipo de discurso de ódio, racismo, homofobia e machismo, fazendo com que o espaço seja um porto seguro para discussões saudáveis sobre nerdices em geral. Outros grupos como o Balão de Fala, Mulheres em Quadrinhos e a Casa da Mãe Joanna, também possuem a mesma política de manutenção de um ambiente seguro para debates acerca dos mais variados assuntos.

Infelizmente, nem todos os grupos funcionam assim, principalmente os que já contam com mais de 10.000 integrantes. No caso dos grupos de conteúdo nerd, então, estes espaços costumam ser extremamente tóxicos. Mas vamos aos cabritos:

  • O Cabrito originalmente não tinha esse nome. Como se formou o grupo? Quanto tempo tem?

    Nós viemos da antiga HQs S/A (o outro grupo criado atualmente com esse nome não tem nada a ver conosco ou com os antigos donos do falecido haha), mas por conta de uma divergência sobre como conduzir o grupo e sobre o futuro dele, os dois membros fundadores eventualmente saíram do grupo, cada um em um momento distinto. Quando o último deles saiu, nós que ficamos refletimos sobre o que faríamos e chegamos à conclusão de que o correto deveria ser criar algo novo, do zero. Algo que seria fruto unicamente dos nossos esforços e da galera que escolheu vir conosco. Além dos moderadores antigos (Ivanildo, Rafaela e Rodolfo), se juntaram a nós a Gabriela (que sempre nos ajudava no grupo anterior), o Fernando (que acabou se tornando moderador da HQs já no seu final de vida), o Elton e o Hedy.

    Respondendo à pergunta sobre o nome, ele se originou de um apelido muito carinhoso que alguns ex-amigos nossos nos deram por conta da nossa maneira ”delicada” de lidar com pessoas que fazem discurso de ódio ou contra qualquer tipo de minoria, nos apelidando de ”Cabritões”. Nós gostamos tanto do nome que acabamos aderindo para nós.

    Qual era a intenção inicial?

    O Cabrito sempre teve a intenção de reunir pessoas em um ambiente saudável e inclusivo para todas as minorias. Estamos longes de sermos as pessoas mais desconstruídas do mundo, mas tentamos todos os dias melhorar e aprender com nossos erros e com quem tem algo a nos dizer. Basicamente: Nosso propósito sempre foi reunir todos aqueles que são excluídos do meio nerd por N motivos em um lugar que possam se sentir à vontade para expor suas ideias sem as tais ”carteiradas” ou repressões. No momento em que definimos que essa seria a nossa prioridade, nós tomamos a decisão de começar um grupo só nosso, do zero. Dessa forma, poderíamos filtrar melhor as pessoas que fariam parte do grupo. Afinal, números e quantidade em vez de qualidade nunca foi nosso objetivo (tanto que nos desfizemos de um grupo com quase 13 mil pessoas de consciência tranquila)

    Eu participo de alguns grupos mistos, no entanto, um dos poucos que parecem ter uma moderação ativa no sentido de garantir que as mulheres não sejam silenciadas ou agredidas, é o Cabrito. Como vocês mantém essa moderação?

    Acho que o início de tudo é dizer que as mulheres da nossa moderação não são meros enfeites: Existe voz ativa. Nós compreendemos o lugar de fala e protagonismo; se a Gabriela e eu (Rafaela) nos sentimos incomodadas com algo ou julgamos que é machismo: É e pronto. Se outra menina nos procura na inbox ou em qualquer outro lugar denunciando alguma coisa de violência nós optamos por ouvir. Procuramos não permitir nenhum tipo de pessoa que seja ligada a aquele velho discurso de ”passar pano” ou ”tentar justificar” qualquer tipo de machismo ou misoginia. Nós duas tentamos o máximo possível ouvir outras moças, mesmo que isso às vezes entre em conflito com a nossa militância. Não somos donas da razão e muito menos as mulheres mais desconstruídas do mundo, erramos, falamos até algumas besteiras…mas tentamos melhorar a cada dia mais. Nós somos adeptas do Feminismo Interseccional, mas tentamos não descartar outras vertentes do movimento. No começo foi difícil, às vezes discordamos de mulheres e já chegamos a banir algumas por conta de discurso de ódio, isso nos chateia bastante; mas vamos aprendendo a lidar com isso.

    Vocês acreditam que os integrantes do grupo compartilham características comuns para que a convivência seja mais cordial que em outros grupos? Quais seriam?

    Cremos que sim! As primeiras coisas que nos vem à mente são o respeito pelo próximo e pelo espaço que construímos ali; a empatia em saber dialogar com os outros, ler o que as pessoas têm a dizer e aprender com isso; e, obviamente, o gosto em comum que temos por esse universo de quadrinhos, filmes, séries, livros e colecionismo em geral!

    A nossa moderação já começa da porta de entrada no grupo. É cansativo, mas olhamos bem os perfis das pessoas que pedem para entrar no grupo e já deixamos de fora pessoas que claramente são adeptas de discursos de ódio e de atitudes que tanto trabalhamos para deixar o grupo livre. Eventualmente, um ou outro acaba passando nesse filtro, mas essas pessoas normalmente são banidas tão logo a gente perceba que possui o mesmo tipo de atitude. Creio que por conta disso, as pessoas que vão ficando no grupo são naturalmente as mais legais que poderíamos ter!

    E quanto a vocês? Quais são as características ou perspectivas que compartilham para que a convivência entre vocês seja também harmoniosa?

    Ahh se o chat da moderação falasse…nós somos amigos; compartilhamos coisas o dia inteiro de nossas vidas pessoais, profissionais e etc. Sempre tratamos tudo na transparência, e termos a mesma ideia de onde queremos que o grupo chegue ou em relação a posições políticas. Seja para dar um ban, aceitar pessoas no grupo e qualquer outra decisão: Fazemos juntos. Nós debatemos e conversamos entre nós e sempre com sinceridade o que julgamos ser o mais importante e correto.

    Acredito também que talvez por termos isso como um hobbie e fazermos porque gostamos mesmo, tudo flui melhor. Não soa e nem é uma obrigação nossa, a gente faz para ajudar outras pessoas que, assim como a gente, querem ter um espaço legal para conversar sobre esses assuntos sem se sentir ofendidas ou excluídas.

    Que tipo de feedback negativo costumam receber por serem rígidos em relação aos “trolls”?

    Normalmente o pessoal (principalmente os banidos) não aceitam muito bem a nossa postura de não sermos didáticos e banirmos de uma vez. No grupo anterior, nós passávamos quase dois, três dias (isso quando não durava semanas) debatendo com pessoas que claramente não tinham intenção de ouvir ou repensar, apenas destilar discurso de ódio. Nós perdíamos nosso tempo (que é curto) e eles o deles. Entendemos que é necessário um discurso didático e alguém que precise debater, qualquer movimento social ou que siga uma determinada ideia precisa disso; porém nós particularmente ficamos um pouco calejados e cansados. Por conta disso, nossas inbox é repleta de xingos e pessoas revoltadas com nossa postura. Inclusive o mais engraçado é que as que mais recebem esse tipo de coisa é a Gabriela e a Rafaela. Às vezes também acontece aquele discurso de ”adoramos os banimentos, até ser com nosso amigo” ou ”vocês fazem o correto, mas aquele meu amigo é desconstruído, acompanha o movimento feminista…ele ter sido machista ou tentando silenciar menina é por que ele entende do movimento” como se fosse justificável uma postura machista, LGBTfóbica ou racista. Basicamente: Nada de novo que nós não já tivéssemos ouvido. Mas levamos no maior bom humor, normalmente a gente acaba vendo esse tipo de coisa e descarta de uma vez. Para cada um desses que nos ofendem, nos chamam de ditadura ou inquisição (sim, já chegamos nesse patamar também), acreditamos que outras pessoas estejam felizes com nosso trabalho e os elogios do público que realmente queremos atingir só demonstra que estamos no caminho certo.

    Quais são as maiores dificuldades em manter o grupo?

    Nenhum de nós quer viver de ”cultura nerd” e isso para nós não é um trabalho, pelo contrário: Isso é como se fosse um passatempo e uma paixão que acabou alcançando um lugar que não imaginávamos. Com isso, é difícil às vezes realizarmos tudo que gostaríamos por conta de nossa vida pessoal e profissional que é totalmente separada do grupo e do meio nerd. Cada um de nós tem uma profissão, família, namorado/namorada, esposa/marido, filhos e etc.

    Às vezes precisamos nos ausentar para cuidarmos de nós mesmos e dar atenção para nossa vida ”fora da internet”. O que incomoda também, são as constantes inbox que recebemos de banidos ou pessoas que realmente acham que vir nos xingar ou reclamar de um banimento irá resolver alguma coisa em nossa decisão. Mas a gente respira fundo e vai tocando as coisas no bom humor (como sempre). No geral, nós vamos dando conta. A moderação é muito unida e nós somos amigos, acima de tudo. Qualquer decisão ou questão, é resolvida no mesmo instante por nós.

  • Que atitudes os moderadores de outros grupos poderiam tomar para que seus espaços sejam lugares onde as mulheres também se sintam seguras para se expressar?

    Essa resposta vai ficar longa, mas vamos lá! haha Algumas coisas bem básicas: – Mulher não é enfeite, ela tem que ter voz ativa. Nós não somos meros atrativos para nerd que sonham com a ”moça rara que gosta de quadrinhos”. – Feminismo e cultura nerd se misturam sim. – Quadrinhos não são e nunca serão apenas para o público masculino.

    Eu sinto como se o pessoal desse “bandeira branca” para amigos, conhecidos ou alguém “famoso” no meio como se fosse justificável a atitude machista por quão importante ou “legal” ele é. Isso deve parar, mesmo. Por que entramos naquela questão de silenciar a vítima ou ignorarmos a denúncia alheia, não importa quem seja: Se cometeu qualquer tipo de violência (Assediar, dar a famosa “carteirada”, querer testar o conhecimento, xingar e silenciar também é uma forma de agressão) deve ser advertido e exposto sim, não podemos deixar passar como se fosse “ok” ou “normal”. Isso PRECISA parar. O que mais vemos são meninas que são administradoras de grupos, mas que precisam passar por uma gama de ”aprovações” e ”debates” quando se trata de machismo e em grande parte das vezes não são ouvidas. Isso em um caso de um grupo até ”bom”. Já vi casos de meninas sendo desautorizadas pelos próprios companheiros de moderação quando aparece um cara sendo misógino. Sem contar quando os administradores também reproduzem discursos machistas o que piora bem mais a situação. Infelizmente muitas meninas não participam com medo de exposição, assédio ou xingamentos que infelizmente partem às vezes da própria administração.

    Piadas com estupro e com qualquer tipo de violência, carteirada, ”mansplaining” (ou como gostamos de chamar de ”omi explica”), chamar de ”feminazi”, assédio frequente e etc deveriam ser cortados e não tolerados. Ou a menos ter empatia e conversar com uma mulher a respeito daquilo. Acho que o princípio é ter noção de protagonismo de movimento, se uma mulher (cis ou trans) viu que uma atitude foi machista: Ela foi e pronto, não cabe a um homem querer ensinar o que achamos que é machismo ou não; ele tem que ouvir e deixar que a moça em questão tome a atitude que ela quiser. É basicamente: Não tolerar e saber ouvir.

     

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

Este post tem 2 comentários

  1. Rafaela

    Dani, obrigada por essa oportunidade maravilhosa.
    Conte conosco sempre <3

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