O pessimismo mundial e os quadrinhos – Narrativas Distópicas

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Notícias dão conta de que o livro 1984, de George Orwell, se esgotou em diversas lojas após a posse de Donald Trump. Não é de se surpreender que diante do que parece de fato ser uma distopia, um surto coletivo, as pessoas recorram a obras que possam ajudar a entender o que está acontecendo e onde foi que erramos.

Quando Thomas More escreveu Utopia em 1516, não imaginava que também seria tão referenciado, mas, ao contrário do que se passa na obra de Orwell, onde o futuro é apocalíptico e desanimador, More imaginou um reino ideal, como muitos imaginavam nosso futuro até há poucas décadas.

https://www.youtube.com/watch?v=QQCf6seKloo

Assunto recorrente no universo nerd, eu e a Paola Giometti já falamos sobre distopias aqui e aqui. Recentemente, a autora G. Willow Wilson, uma das responsáveis pelo sucesso estrondoso da nova Ms. Marvel Kamala Khan, falou sobre o pessimismo herdado pela geração conhecida como Millenials*, se comparado com a visão de futuro que nossos avós tinham nos anos 50, quando o homem havia retornado da Lua com promessas tecnológicas apresentadas em produções como Os Jetsons ou Star Trek.

Arte de Phill Noto
https://www.bleedingcool.com/2017/01/28/phil-noto-revises-civil-war-ii-0-kamala-khan-ms-marvel-cover-art-reaction-trumps-immigration-ban/#.WI6VrAhxOXt.facebook

“Imagine um mundo onde as pessoas vivem numa condição sub-humana, guiadas por políticos ou condutas opressoras, onde a escassez de alguma matéria-prima transforma a todas em cães de briga, ou até mesmo as faz seguidoras de uma tradição que as levará à ignorância cega, a um destino cataclísmico. Isso é distopia: o inverso de uma sociedade utópica, o oposto a um futuro esperançoso. Pareceu familiar a você? “(Paola Giometti no texto sobre distopias)

 E como nenhuma expressão artística é desprendida de seu contexto histórico, distopias aparecem em produções cinematográficas e quadrinhos com os mesmos questionamentos e provocações encontradas em obras clássicas como as citadas acima. Por isso, vou deixar aqui algumas sugestões de quadrinhos que oferecem narrativas distópicas, mas que dado o cenário atual, podem nos deixar em dúvida se hoje não seriam mais utópicas que a realidade que se apresenta diante de nós.

Akira – Uma das maiores referências em Mangá, Akira foi lançado em 1982, mas ficou mais conhecido por aqui depois que sua animação, de1988.  O estilo cyberpunk com tom extremamente apocalíptico de Katsuhiro Otomo, se passa em uma Tókio pós III guerra mundial. As brigas de gang servem de pano de fundo para uma trama misteriosa que envolve experiências paranormais secretas e que eram desenvolvidas pelo governo japonês.  Questões de cunho filosófico sobre nossos valores, sobre ética, corrupção política e militarização são abordadas ao longo da HQ, conferindo à narrativa uma densidade que não é facilmente digerida por leitores que não estão acostumado a esse estilo.

Ghost in the Shell – Com sua versão cinematográfica prestes a ser lançada, também foi publicado como mangá em 1989 e posteriormente ganhou uma animação, assim como Akira.  Com a mesma pegada cyberpunk de seu predecessor, a violenta história de Masamune Shirow foca nas implicações de uma tecnologia que permitiria a fusão de seres humanos a computadores conectados a uma rede mundial. A protagonista Motoko Kusanagi, que no filme será interpretada por Scarlet Jonhanson, faz parte de uma organização policial de anti-terrorista e graças à sua porção cyborg, consegue exterminar seus inimigos com precisão e rapidez.  Questões relacionadas à inteligência artificial, identidade individual, consciência e liberdade fazem parte da trama.

V de Vingança – Série icônica escrita por ninguém menos que Alan Moore, foi lançada pela Vertigo em 1988. Com fortes influências de 1984, a história se passa na Inglaterra de 1997, quando após uma guerra nuclear, um regime totalitarista vigente seria responsável em controlar seus cidadãos por meio de monitoramento constante via câmeras espalhadas em todos os lugares. Em meio ao caos em que se encontra o país, surge V, que com uma máscara do personagem histórico Guy Fawkes – no Brasil e no mundo mais conhecida com a máscara do grupo Anonymous – junta recursos bélicos e tecnológicos para tentar acabar com o sistema. Ao recrutar a órfã Evey, que na obra fílmica é interpretada por Natalie Portman, a humanidade de V se torna mais aparente. Conceitos de anarquia, totalitarismo, liberalismo e socialismo permeiam toda a HQ, que, por não dispor de elementos surreais em termos de tecnologia e por apresentar semelhanças relevantes em relação à realidade atual, tornam V de Vingança assustadoramente familiar.

O Incal – Lançado no Brasil pela Devir em 1983, O Incal é uma saga de ficção-científica escrita por Alejandro Jodorowiski e ilustrada por Moebius. Em um universo futurístico chamado Jodoverse, o detetive John Difool recebe um cristal poderoso, o Incal, de um alienígena moribundo que é disputado por governos, facções de todas as partes do universo. A ópera espacial que teria inspirado o filme O Quinto Elemento, também ganhou uma versão em animação com imagens deslumbrantes, marca registrada do francês Moebius.  Metafísica e filosofia se mesclam às aventuras de Diffol, conferindo à HQ camadas que são identificadas de formas diferentes por cada leitor.

Y – O Último Homem –  A HQ de Brian K. Vaughan and Pia Guerra tem sido recorrentemente- e equivocadamente – mencionada em textos sobre possíveis malefícios do feminismo – “Você não viu o que acontece em Y?”. Lançada pela Vettigo em 2002, narra a história de Yorick Brown um homem sobrevivente de um vírus que teria matado todos os outros mamíferos com cromossomo Y (masculinos) do planeta instantaneamente, com exceção dele e de seu cachorro. Ao longo da narrativa, a busca de Yorick o leva a conhecer mulheres que lidam de formas diferente com o caos decorrente da morte dos outros homens e pensamentos divergentes sobre o propósito das mulheres no mundo, as levam a reestruturar todo tecido social e político. Talvez Trump devesse passar longe dessa aqui!

*Vídeo traduzido por Isabelle Simões para o Deliriuma Nerd
http://deliriumnerd.com/2017/01/18/ms-marvel-geracao-y/

 

 

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

Este post tem 7 comentários

  1. Moisés Brignoni

    Infelizmente, o tratado anarquista em quadrinhos do Moore foi pasteurizado e pulverizado até virar um romance democrata. Uma tragédia!

  2. Giorgio Cappelli

    As práticas da Escola de Frankfurt estão sendo tão bem inseridas na cultura das pessoas, que alguém que quer se livrar do verdadeiro Mal é tachado de inimigo. NOM, George Soros, Rockfeller, o metacapital, aliança sino-soviética e Estado Islâmico: ESTES SIM, devem ser combatidos!

    1. Daniela

      ????? oi? Escola de Frankfurt já foi superada faz tempo.Qual a relação desse comentário com o texto? O conceito de distopa é muito anterior ao de indústria cultural.

        1. Daniela

          Giorgio, você precisa embasar seus argumentos melhor. Se estou dizendo que a visão apocalíptica do Adorno e do Horkheimer estão superadas é porque tenho o mínimo de conhecimento do que estou dizendo. A menos que você tenha publicações e estudos que comprovem o contrário, prefiro acreditar no que dizem teóricos da área, como Manuel Castells, José Martin-Barbero e outros estudiodos de cultura da escola de Birmingham. São escolhas téoricas mais condizentes com o contexto atual. A menos que seja pesquisador da área de comunicação e estudos culturais e possa embasar sua opinião, não há nada de conclusivo em seus comentários. Peço que seja mais claro, já que está falando com alguém que estuda o assunto.

    1. Daniela

      Obrigada, Gazy! Achei que a animação existisse. Se vier a ser lançada, será incrível.

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