O papel dos grupos secretos femininos de cultura pop

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Um estudo realizado pela National Academy os Sciences of the United States of America analisou o contágio de emoções em escala massiva manipulado através das redes sociais. O experimento com o Facebook comprovou que estados de humor podem ser transferidos aos outros via contágio emocional, levando as pessoas a experimentarem as mesmas emoções sem terem consciência disso, evidenciando que o contágio emocional ocorre sem que haja interação direta entre os envolvidos e mesmo diante da completa ausência de marcas verbais.

Isto significa que a onipresença das mediações digitais pode ser responsável tanto pela perpetuação da opressão, como pela mobilização, empoderamento, conscientização, ascensão de movimentos sociais tal como vem acontecendo com o feminismo, com os movimentos negros e com os movimentos de luta por visibilidade e representatividade LGBT. Em seu livro Redes de Indignação e Esperança (2013), Manuel Castells registra o papel decisivo das redes sociais na mobilização popular em acontecimentos de relevância histórica como a “Primavera Árabe”.

Nesse sentido, a preocupação acerca de nossa privacidade tem se tornado pauta frequente em debates, sejam eles acadêmicos ou não. Essa preocupação se justifica na medida em que somos constantemente bombardeados com notícias de escândalos decorrentes de exposição indevida da intimidade de celebridades ou de outros conflitos que surgem a partir de discussões em redes sociais.

Textos explicativos sobre como lidar com “Revenge Porn” (compartilhamento de fotos íntimas – nudes – sem o consentimento das pessoas envolvidas) e infinitos “posts” sobre assédio de pessoas com grande alcance nas redes sociais, como o professor Leandro Karnal, nos indicam que não só não sabemos lidar com as consequências de nossa exposição como também não conseguimos encontrar meios de nos proteger de tais ataques.

Muito embora os ataques virtuais e o assédio não caracterizem agressão física, Bordieu (1989) nos lembra que a violência simbólica também é nociva justamente porque aqueles que detêm o poder, ainda que simbolicamente, não o reconhecem e, portanto, são incapazes de perceber os danos de suas ações.
Ainda que alguns grupos raramente se ofendam, pois podem facilmente ignorar atitudes ofensivas contra si, uma vez que essas atitudes não perturbam a vantagem estrutural que gozam, existem outros que se sentem ofendidos, mas não desejam abrir mão de estar online por meio das redes sociais, grupos secretos e grupos fechados têm se tornado opções cada vez mais recorrentes para que pessoas possam se reunir em torno de preferências em comum e discutir sobre os mais variados temas.

Assédio no meio nerd

Entre as principais pautas do movimento feminista está a luta contra a desigualdade de gêneros em diversos âmbitos, causada principalmente pelo machismo estrutural em nossa sociedade. No meio nerd não é diferente: atitudes machistas que visam diminuir e humilhar as mulheres virtual ou presencialmente fazem parte de nosso dia-a-dia. Essas atitudes vão desde ser ignorada em uma loja especializada em videogames a perseguições e ameaças nas redes sociais ou mesmo em eventos presenciais.

Encontro com Trina Robbins – Agosto de 2015

Quando esteve no Brasil para um evento acadêmico em agosto de 2015, a quadrinista feminista Trina Robbins fez questão de encontrar artistas brasileiras no intuito de saber um pouco mais sobre que tipo de dificuldades elas enfrentavam para publicar seus trabalhos. Infelizmente o que pudemos constatar no evento é que o depoimento de Trina sobre o machismo que ela enfrentou nos Estados Unidos nos anos 70 não era diferente do que as brasileiras enfrentam ainda hoje.

Em junho de 2016, a roteirista da Turma da Mônica Jovem, Petra Leão, teve sua caixa de mensagens invadida por ameaças e insultos após um trecho de uma história sua ter sido compartilhado pelo “filósofo” conservador Olavo de Carvalho em sua página no Facebook onde ele proferia impropérios à artista. Um dado curioso sobre esta edição é que quando foi às bancas, o nome de Marcelo Cassaro aparecia na capa como roteirista da revista, no entanto, nenhuma ameaça ou insulto lhe foi dirigido na época. Um quadrinista conhecido no meio não perdeu a oportunidade de se manifestar ao mencionar que antigamente a esquerda sequestrava embaixadores e hoje sequestra personagens de histórias em quadrinhos. O caso teve repercussão internacional em sites especializados como o The Mary Sue.

No caso de meninas que jogam videogames (gamers) a violência consiste em ofendê-las enquanto jogam ou as impedirem de ascender em certos jogos online. Há inúmeros exemplos facilmente encontrados em sites de busca com palavras-chave como “gamers” e “assédio”. Em um deles o repórter afirma que não é uma questão de “se” a jogadora sofreu assédio, mas “quais” são suas histórias de assédio.

Em outubro de 2016, a escritora Chelsea Cain teve que encerrar sua conta no Twitter após seu perfiol “explodir” de comentários violentos contra ela. O motivo? A personagem Harpia, de sua autoria, apareceu na capa de um título que já havia sido cancelado com uma camiseta que fazia menção ao feminismo: Ask me about my feminist agenda. Embora fãs e artistas tenham se unido no mundo todo por meio da hashtag #standbychelsea, o ódio que lhe foi dirigido a deixou muito abalada e, assim como muitas mulheres têm feito, preferiu encerrar sua conta.

Outras vítimas de assédio e violência como a atriz negra Leslie Jones, da nova versão de Os Caça-Fantasmas, a blogueira de moda Flávia Durante, que estrelou uma campanha com a modelo Plus size Camila Romano para a bebida TNT, a youtuber Jessica Tauane, com seu canal das Bee sobre bissexualidade, indicam que qualquer mulher que não se encaixe em um padrão que a coloque como objeto de apreciação masculina, está fadada a sofrer com agressões virtuais.

Coletivos femininos de cultura pop

Embora o conceito de “coletivo” tenha sido apropriado por grupos que se formam a partir de redes sociais como um meio de unir pessoas para a produção de um tema comum (quadrinhos, por exemplo), a ideia remete à produção artística de uma forma geral ou ao teatro, com o uso mais difundido a partir dos anos 1970 no Brasil. O que se busca com a atuação em coletivos é justamente uma produção conjunta que transcenda a autoria individual e funcione como uma forma de sociedade que divide a coautoria de suas obras de forma colaborativa. Por isso, coletivos não são grupos fechados ou tribos que se reúnem em torno de um objetivo comum, são formados em torno de uma produção comum.

Pensando não só no alcance, mas principalmente na possibilidade de oferecer espaços seguros para que as mulheres possam discutir os mais variados assuntos ligados ao universo da cultura pop sem se sentirem ameaçadas ou assediadas, um dos coletivos que surgiram nos últimos anos é o Minas Nerds.

https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/documentos/ccsai/OqueeCyberbullying.pdf

O Minas Nerds surgiu em março de 2015, após uma represália violenta de um membro, homem, em um grupo que a jornalista Gabriela Franco fazia parte. Gabriela é formada pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, onde se especializou em cultura pop. Escreve sobre quadrinhos há cerca de 15 anos, tendo começado como colunista dos sites Omelete e HQ Maniacs. Atualmente é colaboradora das revistas Mundo dos Super-Heróis, Mundo Nerd e dos sites Judão e Popround. Criou o Minas Nerds como uma iniciativa que visa dar visibilidade e protagonismo para a mulher no mercado geek e nerd.

No primeiro mês o grupo já tinha mais de 300 pessoas. Em 3 meses o número de mulheres havia duplicado. Logo em seguida, foram convidadas para a 27ª FestComix, que foi, o primeiro evento do Brasil a dar espaço exclusivo às mulheres. Em outubro de 2015, surgiu o site falando sobre cultura pop feito por mulheres, para mulheres sobre mulheres e seu pageview mensal ultrapassa o de 70k sendo mantido totalmente pelo Conselho do Minas Nerds. Hoje a fan page no Facebook  tem cerca de 40k orgânicos, sem nunca terem investido em posts e o grupo secreto tem cerca de 5 mil mulheres que discutem assuntos ligados à cultura pop o dia inteiro.

Muito embora grande parte das ações do Minas Nerds esteja concentrada em atividades online, o grupo realiza diversos encontros presenciais e projetos sociais em parcerias com instituições, como foi o caso da cartilha contra o assédio online produzida em conjunto com a secretaria de segurança pública do estado de São Paulo.

Por isso, a desigualdade que permeia não só as relações sociais, como também a produção cultural é responsável por propagar e perpetuar alguns problemas comuns que podem ser combatidos na medida que esses grupos se fortalecem. Entre esses problemas estão:

Machismo e sexismo – Artistas tiveram seus trabalhos recusados por serem mulheres;

Não reconhecimento do trabalho – Falta de interesse de colegas do sexo masculino em conhecer os trabalhos produzidos por artistas femininas, diminuição da importância de seus trabalhos por meio de críticas negativas;

Assédio – Todas relataram terem passado por alguma situação de constrangimento de cunho sexual, inclusive com exposição em jornal de grande circulação[5];

Falta de oportunidades igualitárias – Não são chamadas ou cogitadas para participaram de antologias de Histórias em Quadrinhos mistas;

Boicote – Enfrentam campanhas para que os leitores não consumam seus trabalhos;

Preconceito – Frases do tipo “Quando produzirem um trabalho à altura dos homens serão indicadas aos prêmios” revelam o tipo de preconceito enfrentado pelas artistas presentes.

 

Embora a construção de uma sociedade mais justa deva ser articulada com todos os integrantes de uma sociedade, a menos que o assédio e a violência online diminuam, a tendência dos grupos exclusivos sobre diversos temas é aumentar. Prova disso é o grupo fechado do Minas Nerds que em um ano passou de 300 integrantes para 4.000 com uma média de 15 novas solicitações de entrada por dia.

É a partir dos grupos que as pessoas que se sentem ofendidas ou diminuídas de alguma forma percebem que não estão sozinhas e se fortalecem para enfrentar situações adversas, pois sabem que possuem uma rede de apoio que não as deixará na mão.

Logo, ter em mente o que as artistas enfrentam cotidianamente para conseguir produzir seus trabalhos, certamente nos ajuda a entender a importância dos eventos e dos coletivos femininos de cultura pop. O reconhecimento do seu trabalho, ainda que apenas por pessoas do mesmo gênero não altera o status quo, é verdade. Por isso, até que os números de produções femininas e masculinas sejam equivalentes, a realização de eventos, oficinas e cursos que visem profissionalizar e divulgar os trabalhos das artistas bem como a criação de redes e publicações exclusivas, estão entre as soluções viáveis para a diminuição da desigualdade de gêneros no universo nerd.

 

 

 

 

 

 

 

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

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