O original é sempre melhor que a adaptação. Será?

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Com as recentes polêmicas sobre as adaptações cinematográficas dos quadrinhos da Marvel e da DC, debates sobre o valor dessas versões sempre acabam vindo à tona.

A velha discussão sobre como as versões seriam inferiores às obras originais sempre deixa os fãs revoltadíssimos, levando-os a debater calorosamente por dias, discutindo questões acerca dos valores desses trabalhos.

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Bom, a primeira coisa que precisamos ter em mente é que, do ponto de vista mercadológico, as empresas não estão preocupadas em agradar aos fãs das obras originais, sejam elas livros, quadrinhos…. Afinal, os fãs irão consumir as versões mesmo que seja para criticar. A indústria cultural visa nada mais que expandir seu público e atingir pessoas que não consomem as “obras-fonte” normalmente.

Em relação aos quadrinhos, há aquela visão de que uma obra literária quadrinizada seria inferior comparada à obra original. O mesmo ocorre em relação aos filmes adaptados de HQs ou livros.

Pensando nisso, eu gostaria de trazer algumas considerações sobre uma autora que, embora acadêmica da área de literatura comparada, pode oferecer alguns pontos de vista interessantes sobre o tema. Linda Hutcheon escreveu o livro Uma Teoria da Adaptação no intuito de mostrar que este tipo de atribuição de juízo de valor às obras, desvalorizando a versão diante do seu original, pode ser um equívoco.

Os primeiros exemplos que me lembro são dois clássicos que se tornaram blockbusters no cinema, mas cujas obras literárias originais deixam muito a desejar: O Mágico de Oz, de L. Frank Baum, é bem sem graça em comparação ao filme e Drácula, de Bram Stocker, é um romance epistolar (narrado através de cartas) chatíssimo. Mas isso é uma opinião pessoal.

Voltemos à Hutcheon: a primeira vez que ouvi esse nome foi em uma apresentação de comunicação acadêmica em 2013, nas 2ªs Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, quando a pesquisadora Maiara Alvim apresentou sua pesquisa sobre a adaptação de Neil Gaiman de Sonhos de uma Noite de Verão, de Shakespeare, feita nas páginas de Sandman. No ano seguinte, nas Jornadas Temáticas de Histórias em Quadrinhos, cujo tema foi a adaptação literária para quadrinhos, Linda Hutcheon parecia uma autora homenageada, já que a maior parte dos trabalhos apresentados usava-a como referência.

Antes de expor as considerações de Hutcheon sobre o tema, é preciso lembrar que essa tendência de classificar a produção artística e assim lhe atribuir valor, bem como essa determinação em considerar toda e qualquer versão como algo inferior em relação a uma obra original, tem origem no pensamento dos filósofos gregos como Aristóteles e Platão. O primeiro criou sistemas de classificação que são usados até hoje, enquanto o outro dedicou obras inteiras, como O Sofista, à discussão sobre o assunto, tratando as obras derivadas como cópias malfeitas da realidade, simulacros. Sobre isso, o filósofo Gilles Deleuze desenvolveu um pensamento que é conhecido hoje como Reversão do Platonismo, um conceito complexo que basicamente atesta que as ideias de Platão sobre simulacros e versões não caberiam mais hoje em dia: “Todo o platonismo, ao contrário, é dominado pela ideia de uma distinção a ser feita entre ‘a coisa mesma’ e os simulacros.” Reverter o pensamento platônico implicaria em reconhecer o valor destas obras, ainda que não guardem semelhança com o modelo original. Aliás, o próprio Platão teria indicado a inconsistência de seu pensamento ao tentar estabelecer os conceitos de realidade, modelo, cópia…

“Reverter o platonismo significa então: fazer subir os simulacros, afirmar seus direitos entre os ícones ou as cópias. O problema não concerne mais à distinção Essência-Aparência, ou Modelo-cópia. Esta distinção opera no mundo da representação; trata-se de introduzir a subversão neste mundo, ‘crepúsculo dos ídolos’. O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução.” – Deleuze –

Hutcheon afirma que nenhuma adaptação pode preencher um espaço que é representado nos romances literários, o espaço da mente. Ainda assim, por que desmerecer a capacidade das imagens de nos fornecer uma ideia que talvez não sejamos capazes de imaginar somente com o auxílio do texto? Alguns exemplos usados por ela são os orcs de O Senhor dos Anéis, trilogia literária de J. R. R. Tolkien, e o jogo de quadribol dos livros de Harry Potter, criação de J. K. Rowling:embora talvez não possa recuperar as imagens que tinha antes de conhecer as versões cinematográficas, ao menos ela sabe com o que devem parecer. ”

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A autora procura redimir as adaptações da ideia de que elas seriam obras secundárias ou sem valor e as “eleva” à mesma categoria dos trabalhos originais com o argumento de que toda nova obra é, na verdade, uma obra original. Por isso, embora uma adaptação seja de fato derivativa de outra pré-existente, seu valor não pode ser medido através das concepções platônicas notadas nos discursos acadêmicos ou em resenhas jornalísticas. Do contrário, não justificariam sua popularidade e o fato de serem responsáveis, por exemplo, por cerca de 90% das premiações da academia de cinema.

Linda Hutcheon não apenas defende que toda adaptação é uma tradução, mas que o processo é tão importante quanto o resultado, envolvendo não só a interpretação de quem o lê, como também criatividade, sofisticação… Entre as palavras que definem as adaptações, ela se deparou com termos pejorativos como “traição”, “deformação”, “perversidade” e “profanação”.

“E então? E o que dá a impressão de belo, por ser visto de posição desfavorável, mas que, para quem sabe contemplar essas criações monumentais em nada se assemelha com o modelo que presume imitar, por que nome designaremos? Não merecerá o de simulacro, por apenas parecer, sem ser realmente parecido?” – Platão –

As organizadoras do livro Pescando Imagens com Rede Textual – HQ como Tradução, Andreia Guerini e Tereza Virgínia Barbosa, compartilham da mesma convicção de Hutcheon sobre o processo de adaptação como uma tradução.

“Ora, se ao tradutor cabe compor um poema análogo ao original em outra linguagem e com signos diferentes, isso é factível com a transposição da linguagem literária para HQ. Todavia, essa tradução é fruto de um exercício sofisticado, que propõe recuperar os grandes clássicos e deles gerar imagens, e não somente uma tarefa que se limite a reproduzir sentidos e enredos de forma linear e descritiva, relatando-os de maneira direta e sem obstáculos. Não, nesse nosso processo de transpor a literatura para a HQ, a norma é nunca narrar conteúdos de forma reduzida e ilustrada para facilitar a tarefa do receptor, pois isso é ofendê-lo em sua inteligência.” – Guerini e Barbosa –

No que tange às adaptações literárias para quadrinhos, existem estudos que apontam para o fato de que a leitura de HQ não é um processo mais fácil em relação à leitura de um livro, uma vez que o cérebro tem mais códigos diferentes para processar: o texto, a imagem e a relação contextual entre as duas linguagens. Uma provável falta de qualidade da adaptação não se deve ao fato de ela ser quadrinizada, mas talvez a equívocos que independem do meio em que uma obra é reproduzida. Um dos exemplos que não canso de citar é a adaptação de Dom Casmurro, de Machado de Assis,  com roteiro de Felipe Greco e desenho de Mario Cau, que além de não dever nada à obra original, ainda nos presenteia com a interpretação do que seriam os olhos de ressaca de Capitu.

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Portanto, o que sugiro aqui é que ao assistir ou ler uma obra adaptada, tentemos deixar o preconceito de lado e aproveitar cada uma como se fosse mesmo uma obra original, uma releitura. Do contrário, seremos fãs eternamente infelizes em vez de apreciadores de um trabalho que pode oferecer entretenimento, prazer e reflexão independentemente da obra que o originou.

 

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

Este post tem 5 comentários

  1. Adalton Silva

    Muito bacana o texto, Dani. Pois é, os processos e os entornos acabam dizendo muito mais do que o produto em si. Borges tem uma frase muito bacana pra refletir sobre isso: “O original não é fiel à tradução”. 😀

    1. Daniela

      Eu nunca vou me esquecer de vc me falando do Deleuze! Rs
      E adorei essa frase do Borges.

  2. Rafael Senra

    Ótimo texto, Dani! Apesar do espaço de uma coluna do blog demandar uma concisão no tamanho do artigo, você aprofundou com consistência diversos aspectos importantes no processo de adaptação. Tudo isso sem deixar de explicar os pontos básicos da questão. Muito bom!
    Aproveito para deixar aqui o link da minha tese de doutorado, onde faço uma adaptação de trechos do romance Hilda Furacão para os quadrinhos, discutindo a adaptação de maneira semelhante à que você trata aqui.
    Abraços
    http://rafaelsenra.com/tese/

  3. Quiof Thrul

    Existem casos onde os autores gostam tanto da adaptação que pegam elementos dela, o que o Tv Tropes chama de Ret Canon, o primeiro que me lembro é o Zorro, vários elementos que viraram icônicos do herói como o uniforme, a marca do Z e o esconderijo, o segundo uma Cilada para Roger Rabbit, o autor fez um segundo livro onde dizia que os eventos do primeiro (onde o personagem era de uma tira de jornal) eram na verdade um sonho e fez uma sequência dos eventos do filme.

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