O Netativismo e a loja de móveis

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Notícia do dia 12 de maio de 2017 dá conta de que o Conar, orgão responsável pela regulação da propaganda no Brasil, teria suspendido a campanha da controversa empresa de móveis Alezzia, por exposição indevida e objetificação da mulher.

No relatório em que defende a sustação da campanha, a relatora do Conar ressalta a falta de ligação entre as imagens e os atributos do produto, e se mostra indignada: “Fiquei chocada com a total falta de tato da anunciante ao lidar com os consumidores e com o público em geral. A divulgação da marca e dos produtos me parece seguir uma estratégia de comunicação equivocada e desrespeitosa. É difícil entender qual o objetivo mercadológico de tamanha agressividade”. (Matéria publicada aqui)

A campanha em questão ganhou visibilidade após uma designer ter questionado o uso excessivo de uma modelo seminua para vender móveis de jardim. A partir da resposta extremamente mal-educada de um dos representantes de marketing da empresa, alegando que mulheres não entendiam de design, a briga ganhou proporções homéricas e polarizadas na fan page da empresa, onde pessoas contra a campanha foram xingadas, ameçadas de estupro, entre outras coisas. A empresa, sem o menor tato, se aproveitou da visibilidade para criar ainda mais polêmica, envolvendo uma doação à AACD caso sua página tivesse um número significativo de avaliações positivas. A briga foi vista como uma oportunidade de ouro por pessoas de má fé, como um “comediante” sabidamente racista, misógino e homofóbico que passou a divulgar a marca, além de outras subcelebridades instantâneas que surgiram em outras polêmicas, indicando que não estavam preocupadas em cometer crimes de racismo e homofobia publicamente.

 

Porém, a decisão do Conar nos lembra que assim como tem acontecido em outros casos igualmente problemáticos, envolvento racismo, estupros, misoginia, homofobia, gordofobia, não só o netativismo tem sido responsável por mudanças significativas na forma como alguns processos se dão, como também têm reforçado a ideia de que vivemos em um novo contexto e que práticas retrógradas não são mais viáveis, ao menos não no Marketing.

Prova disso são campanhas de empresas como Avon e Skol, que, pensando na diversidade que é encontrada em nossa cultura, têm mudado sua abordagem para atender um público cada vez maior. Essas mudanças surgem a partir de consultorias especializadas no assunto, como uma forma de atender uma demanda crescente do mercado que indica que o dinheiro já não está apenas nas mãos das mesmas pessoas que ditavam padrões tão limitantes.

Ah, mas e a Liberdade de Expressão? E o direito da modelo de usar seu corpo como quiser?

Sobre liberdade de expressão é apenas ingênuo apelar a um conceito que garante nossa experessão como indivíduos, uma vez que empresas que têm lucro estão sujeitas à regulação. Já falamos sobre isso aqui. Quanto ao direito da modelo, de fato ela tem o direito de fazer o que quiser, mas o problema nunca foi esse, não é mesmo? O problema foi a perpetuação da imagem da mulher como um objeto de decoração que já não está sendo usado mais nem em comercial de cerveja.

Ah, mas é só uma campanha!

Não, amigos! Já havia falado sobre como a mídia exerce forte influência em nossa formação e mais ainda quando nos referimos às redes sociais.  Manuel Castells também chama a atenção para o alcance que as redes sociais têm e o que isso representa em termos políticos e culturais em seu livro Redes de Indignação e esperança. Já o professor Massimo di Felice, aprofunda essa ideia ao falar da onipresença da mediação digital e como ela afeta nossas relações e interpretação do mundo hoje, além de ser responsável por um núcleo de pesquisas sobre o assunto na maior universidade do país.

Prova de como esse poder das redes tem sido subestimado é o estudo realizado pela National Academy os Sciences of the United States of America sobre o contágio de emoções em escala massiva manipulado através das redes sociais. O experimento com o Facebook comprovou que estados de humor podem ser transferidos aos outros via contágio emocional, levando as pessoas a experimentarem as mesmas emoções sem terem consciência disso, evidenciando que o contágio emocional ocorre sem que haja interação direta entre os envolvidos e mesmo diante da completa ausência de marcas verbais.

Ou seja, uma campanha veiculada por meio das redes sociais, além do alcance imensurável, pode perpetuar estereótipos nocivos ou pode ajudar a naturalizar certos comportamentos considerados tabus sociais. Em uma sociedade cuja cultura naturaliza o estupro, a pedofilia, a violência contra a mulher, reforçar imagens que colaborem com essa cultura é apenas um desserviço.

“Ah, mas as pessoas criticam a campanha e aplaudem o clipe da Clarisse Falcão cheio de pintos e a revista masculina com uma mulher gorda na capa”

Vale lembrar que uma coisa não tem absolutamente nada a ver com a outra. Primeiro que uma mulher falando de pintos quebra justamente o padrão onde a mulher não tem decisão sobre seu corpo e só serve para apreciação masculina, logo, o que ela faz, por mais que eu ache o vídeo de mau gosto, é dizer que ela pode sim falar do que ela quiser e que o padrão “bela, recatada e do lar” não a representa e não representa muitas de nós. Segundo, que a campanha da Alezzia reforça o machismo estrutural que nos coloca como objetos e dizer que a mulher escolheu estar ali é ignorar que na verdade, nossas escolhas são extremamente limitadas em uma sociedade que nos julga pela aparência. Não só isso, o fato de uma ou duas ou várias mulheres aprovarem a tal campanha, não muda o que ela representa para as outras milhares de mulheres. Principalmente, não muda a mensagem passada a adolescentes, meninos e meninas, de que mulheres devem ser objetificadas. Outra coisa, quem compara nossas ações às ações masculinas ignora – convenientemente – o conceito de falsa simetria, que explica porque a mesma ação realizada por atores em diferentes papéis sociais, não gera o mesmo resultado.

Em relação à revista masculina, é preciso entender que nem todas as mulheres aprovam a exposição feminina e sexualizada, afinal, as pessoas são diversas e possuem compreensões diferentes acerca do que é empoderador ou não para mulheres que sempre foram consideradas fora do padrão. Porém, ainda vivemos em uma sociedade extremamente machista, onde o valor de uma mulher é determinado por uma série de aspectos, sendo a aparência o de maior peso. Nesse sentido, mulheres que durante a vida toda foram incentivadas a se esconder ou que foram humilhadas, rejeitadas por serem gordas, viram na capa da Playboy, com a modelo Flúvia Lacerda, uma oportunidade de quebrar o padrão imposto e que dita que mulheres gordas não podem ser sensuais ou desejáveis. Assim, em uma cultura onde o desejo masculino está fortemente associado à ideia de validação feminina, é compreensível que por meio da representação da mulher gorda na capa de revista, as mulheres que se identificam com a modelo pensem que também podem ser desejáveis, pois existe ali um discurso, ainda que implícito, de aceitação e amor ao próprio corpo que contraria a tentativa constante da indústria cosmética e de moda de que nos fazerem sentir sempre em guerra com nossa aparência.

O ideal seria que essas revistas não existissem e que as pessoas pudessem ser aceitas, amadas e admiradas pelo que são, mas como estamos muito longe de alcançar isso, algumas medidas procuram amenizar os problemas causados por um sistema que nos fere diariamente com suas exigências impossíveis.

Tudo isso porque o machismo é um sistema de opressão secular que invisibiliza, fere, diminui, humilha e mata mulheres baseado na crença de que somos inferiores. Qualquer ação nossa no sentido contrário, ainda que realizando as mesmas práticas, é na verdade uma reação, autodefesa e seu peso é completamente diferente, afinal, homens não são historicamente oprimidos por mulheres.  Pensem sobre isso! Pensem no que uma mulher falando de pintos em um vídeo colabora com sua opressão, diminuição e objetificação! Pensem antes de falar! Leiam o que escrevemos há tanto tempo, reflitam sobre conceitos que estão disponíveis ao alcance dos dedos, pois o contexto em que vivemos não aceita práticas e conceitos criados em uma época em que não se sonhava com a internet e com o seu alcance.

Quem não consegue aceitar as mudanças, está fadado a ficar preso ao passado, virar um dinossauro e bom, eles foram extintos, não é mesmo?

 

 

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

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