O Festival do Rio 2017 e a paciência de Schrödinger (ou Senhora Fang e Jeannette: a infância de Joana D’Arc)

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Todo ano, meados de outubro, você sabe: Aquela maratona marota, uns duzentos e tantos filmes rolando, matemáticos quebrando a cabeça para sessões caberem nos horários e orçamentos dos cinéfilos de carteirinha.

É.

O Festival do Rio não é pros fracos. E em todos os anos sempre há um dia em que sua programação tão eclética quanto desafiadora cobra o preço dessa coragem. Comigo aconteceu na terça, 11 de outubro.

18h parecia um excelente horário pra começar a noite. Senhora Fang no Estação Net Rio 3, recomendado pelo Bonequinho como sendo um documentário de Wang Bing, vencedor do Leopardo de Ouro no Festival de Locarno… Imperdível!

Com 86 minutos, seria moleza pular dali de Botafogo pra sessão no Catete às 20h: Jeannette: a infância de Joana D’Arc, o novo filme do diretor Bruno Dumont, da pequena pérola do último festival, O Mistério na Costa Chanel.

Bom, tudo houvesse saído às mil maravilhas, talvez eu não estivesse lutando contra o cansaço nessa silenciosa meia-noite, digitando ou dirigindo essas palavras a vossas mercês. A verdade é que justo a sessão de Senhora Fang atrasou. Vinte minutos! Quando a projeção começou, os diletantes organizadores ainda fizeram questão de passar toda a propaganda institucional dos patrocinadores e parceiros do evento, religiosamente.

Tudo bem! O que importa é o filme, não é mesmo? Um documentário sobre um assunto tão atual e preocupante como a provação de uma senhora atingida pelo Alzheimer não poderia ser nada menos que denso. E foi mesmo. Duro, voltou-se ao retrato do sofrimento da Sra. Fang em seu leito de morte, e a às reações da família em torno dela. Creio que o diretor Wang Bing conseguiu exatamente o que desejava: fazer os espectadores se sentirem na pele da velha senhora, em toda a sua imobilidade e sensação de impotência. Nisso reside a força da película. Mas o preço que pagamos é enorme.

É possível sintetizar o filme pelas três cenas que se sucedem e repetem: as claustrofóbicas no pequeno quarto onde a Sra. Fang padece; os closes nos rosto e braços dela, e; as externas acompanhando pescarias (e caminhadas para as pescarias) de seus parentes.

O problema (para o meu gosto, claro) foi a duração dessas cenas. Muito, muito longas. Cinco minutos mostrando apenas o rosto da Sra. Fang, quase imóvel, ou o mesmo número de minutos de uma modorrenta caminhada de parentes dela, sem ao menos diálogos inteligíveis para passar o tempo são, no mínimo, difíceis de aguentar sem bocejar ou torcer pelo fim do filme.

E, falando no fim, eu quis muito ficar (mentira), mas saí faltando uns minutos, dada a hora avançada e a certeza de que Jeannette seria a salvação da noite. E foi. Ou quase.

Num Palácio do Catete louco para fechar, consegui chegar na sala do Espaço Museu da República a tempo. A sessão estava tão cheia quanto a anterior, mas não precisou de cinco minutos para que os abandonos de espectadores superassem toda a projeção de Senhora Fang.

O que causou isso? A própria plateia, participante e divertida como só ela, poderia explicar. Afinal de contas, a saída simultânea de três velhinhos durante um dos números musicais pareceu ter amplificado o riso dessa turma. Na tela, freiras rolavam na areia da praia enquanto cantavam para a pequena Joana D’Arc, seríssimas, uma canção extremamente religiosa e teatral. A cantoria singela, pura e religiosa de Joana no comecinho sugeria um filme bem comportado e convencional. Mas isso apenas para os que não conheciam o diretor Bruno Dumont, de rompantes surrealistas e senso de humor nonsense.

Deu pra perceber que as cenas que se seguiram, com números musicais evocando movimentos típicos do Rock’n roll, como a bateção de cabeças e cabelões, e sonoridade semelhante ao Heavy Metal e ao eletrônico experimental, afastaram as senhorinhas que lá foram esperando uma versão feminina do Pequeno Príncipe.

O filme, portanto, foi quase um deleite para a alma, com sua coreografia e interpretações espirituosas inspiradas nas apresentações teatrais que as crianças encenam para os pais na escola, e principalmente pela participação do personagem do Tio de Jeannette, cujos movimentos absurdos e falta de traquejo explícita para entoar seus raps medievais tornaram o filme digno de nota.

Seria tudo perfeito, não contássemos com a verborragia giratória do longa, com suas milhões de páginas de texto da história de Joana D’Arc da forma mais romântica, rebuscada e tortuosa e religiosa possível, todas faladas de forma monocórdia, e algumas cantadas em tom único também, com instrumental que parecia, às vezes, feito para irritar. Em alguns momentos me lembrou um disco que tenho da Bjork, com seus climas viajantes e densos (e chatos eloquentes), e vocais de sirene.

Depois de tudo, a noite acabou. E eu só sobrevivi porque os filmes do dia seguinte prometiam mais. Como sempre, claro ; )

Rodrigo Sava

Arqueólogo do Impossível em alguma Terra paralela

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