O Conto da Aia não é uma distopia!

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[COM SPOILERS, PERO NO MUCHO]

Eu tenho reservas quanto ao uso de frases como “essa série é obrigatória!”, que indicam que todos deveriam fazer isso ou aquilo, ainda assim, diante de tudo que havia lido sobre a série The Handsmaid’s Tale (O Conto da Aia), resolvi dar uma chance à produção que todos dizem ser uma “distopia feminista”. Exibida pela plataforma de streaming Hulu, não disponível no Brasil, sua primeira temporada tem 10 episódios que podem ser encontrados em sites “alternativos”.

Caso você não saiba do que se trata, o resumo da Wikipedia está bem fiel à série, então não irei me estender muito nesse ponto. O que você precisa saber é que os episódios, baseados no livro homônimo de Margaret Atwood, de 1985, se passam em um futuro que não é muito distante, quando o mundo está assolado em problemas causados pela poluição, sendo um deles, a infertilidade humana.

Com cada vez menos crianças nascendo e o risco de uma crise mundial de fome e falta de recursos, a espécie humana pode entrar em extinção rapidamente e um grupo religioso de extrema-direita (alt-right), conhecido como the sons of Jacob (Filhos de Jacó) propõe medidas autoritárias e nada ortodoxas para que o cenário possa ser revertido nos Estados Unidos.

Até aqui, nada de muito surpreendente que já não tenha sido visto em outras FICÇÕES distópicas, como já havíamos falado anteriormente. O problema é que, na medida que fui assistindo ao Conto da Aia, foi ficando mais claro que as situações retratadas não têm nada de ficcionais, portanto, The Handsmaid’s Tale não poderia ser uma distopia. “Porque, no fundo, distopias são contos de alerta, não contra um determinado governo ou tecnologia, mas contra a ideia de que a humanidade pode ser modelada de uma forma ideal”. Nesse sentido, seria uma narrativa que se difere da realidade por oferecer uma perspectiva pessimista e distorcida em relação ao futuro, como um alerta do que poderia acontecer em contextos de muita opressão e totalitarismo, quando determinados grupos acreditam em um mundo ideal e impõem meios para que todos colaborem, ainda que isso signifique a insatisfação da maioria.

Como reconhecer uma distopia? https://www.youtube.com/watch?v=6a6kbU88wu0

Porém, a dor e o desespero que me levaram a chorar copiosamente, principalmente depois de ter assistido aos três primeiros episódios de uma só vez, indicaram que havia algo ali que era real demais. Mesmo que eu não tenha vivido nada parecido com o que a protagonista June narra na série, mesmo que o cenário pareça surreal, mesmo que tudo tenha sido vendido como uma ficção, eu sabia que havia algo de muito próximo ali. De fato, não estava errada:

“Eu não coloquei nada que ainda tenhamos feito, estejamos fazendo, estamos tentando seriamente fazer, juntamente com as tendências que já estão em andamento … Então, todas essas coisas são reais e, portanto, a quantidade de invenção pura é quase nula”. (Margaret Atwood em uma entrevista para um fórum sobre gênero em 2004)

Um espectador desavisado pode até ter a sensação de que a história está muito longe da realidade, o que justificaria a insistência da imprensa especializada em dizer que se trata de uma distopia, mas, como apontado por Atwood, exemplos de manchetes e dados de organizações mundiais demonstram facilmente que a realidade é tão ou mais assustadora que a “ficção”. Começando pelo fortalecimento da bancada evangélica no Brasil, cujas pautas não têm nada de laicas, e cujo discurso de seus maiores representantes se assemelha demais ao dos “comandantes” da série, não é difícil de imaginar que seus seguidores defendessem que o destino dado às mulheres de Gilead (nome do estado totalitário criado pelos Filhos de Jacó) fosse também dado a nós.

Como reconhecer uma distopia? https://www.youtube.com/watch?v=6a6kbU88wu0

Em Gilead as mulheres são divididas em castas, conforme o seu “propósito divino”, que de divino não tem nada, já que quem estipula tais critérios são homens poderosos (mulher para casar x mulher para transar). Diante da impossibilidade de gerar filhos e com a ganância de impor seu pensamento ao resto do mundo, o grupo de comandantes “cristãos” consegue aprovar suas medidas, com o apoio do exército para implementá-las, de forma que as crianças que nasçam sejam geradas dentro do seu círculo.

Para isso, decidem  cercear a liberdade de todas as mulheres do país e literalmente sequestram as que são férteis, a fim de que sejam usadas como suas escravas sexuais – as Aias –  “no intuito” de gerar filhos para os “abençoados” comandantes. Tudo isso sob o argumento religioso, realizado com uma “cerimônia” que conta com a participação das esposas.

As mulheres que não viram aias, são Marthas – empregadas domésticas, tias – torturadoras e responsáveis pelas aias, são enviadas para colônias, que não sabemos exatamente o que são ou são mandadas para prostíbulos – Casas de Jezebels.

June, que enquanto serve ao comandante Fred Waterford tem seu nome alterado para Offred (Do Fred), é quem conta toda a história e sabemos que o motivo dela se esforçar ao máximo para não sucumbir se deve ao fato de ela ter uma filha, por isso, é a esperança de reencontrá-la que a mantém de pé. De outra maneira, o sofrimento retratado por ela seria insuportável, comprovado pelo suicídio de várias aias.

Gilead é cercada por homens armados e, diariamente, qualquer tentativa de fuga ou traição ao novo sistema é punida com morte em praça pública, por enforcamento. São vários corpos espalhados pela cidade, como se fizessem parte da arquitetura urbana. Além da morte, que é literalmente o menor dos castigos, a aplicação de diversas torturas também marca a série.

Então, alguns pensamentos foram ficando mais aparentes no decorrer da narrativa. Um deles se refere à frase de Simone de Beauvoir que diz que  “o  opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”. Isso porque além de grande parte das medidas terem sido sugeridas pela esposa de Fred Waterford, são as “tias” as responsáveis em infligir as punições às aias. Da mesma forma, a inércia da população diante de certos eventos que acontencem no país, possibilitou que um grupo extremista tomasse o poder. Agora troque a palavra país por Brasil e voilá! Será que continuar se omitindo diante de tudo que está acontecendo hoje é a solução? Afinal, citando novamente Simone de Beauvoir, “basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados“.

O discurso machista que culpabiliza a mulher que sofre algum tipo de violência também é recorrente. Como são os homens que ditam as regras (isso sempre foi assim!), é seu discurso que é legitimado, portanto, quando um comandante demonstra algum interesse por sua aia, a culpa é da aia e por isso ela é penalizada.

Os chapéus que elas usam impossibilitam qualquer interação com outras aias, de forma que elas passam grande parte do tempo sozinhas, proibidas de ler ou ouvir música, apenas esperando os dias férteis do mês para que sejam estupradas. Portanto, é uma série que tem cenas gráficas de violência contra a mulher, estupros, torturas e humilhações diversas e ainda assim, todas completamente justificadas e magistralmente encenadas, o que não acontece na maioria das produções com as mesmas cenas. Tendo grande parte dos episódios dirigidos por mulheres, é nítida a diferença do tratamento que é dada à toda narrativa, que aborda temas complexos e delicados, se comparada ao que costuma ser feito por diretores do sexo masculino.

https://www.youtube.com/watch?v=NaPft-MFj38

 

Elizabeth Moss, atriz que interpreta Offred, assim como todo o elenco, é de uma entrega tão incrível que é impossível não se identificar com ela. Sua expressão nos momentos de estupro poderia muito bem ser a de várias mulheres que se veem obrigadas a se prostituírem ou mesmo de tantas esposas que mantém relações sexuais com seus maridos sem vontade.

O corpo feminino é visto como um receptáculo de sémen cujo único propósito é a geração de filhos. Essa visão, compartilhada ainda por muitos homens do mundo todo, fica bem clara em um diálogo entre Wateford e June, quando ele a oferece uma revista feminina e comenta que de acordo com as revistas, as mulheres nunca eram bonitas o suficiente, ricas o suficiente, jovens o suficiente… E June diz que ao menos elas tinham escolha. Waterford conclui que agora elas tinham proteção e respeito, que podiam finalmente cumprir seu papel biológico em paz, como se essas mulheres, sequestradas para servir de escravas sexuais, ainda tivessem que agradecer aos homens pela “benção divina” de serem obrigadas a engravidar de desconhecidos.

O pensamento dos homens da série não difere em absolutamente nada do que já vemos em discursos religiosos fundamentalistas, inclusive quanto à patologização da homofobia, punida com morte ou mutilação genital, como sempre aconteceu à milhares de meninas africanas. Não à toa, uma das inspirações para o romance de Atwood foi justamente a revolução iraniana de 1979, que colocou o aiatolá Khomeini no poder, causando um retrocesso na vida das mulheres iranianas que é sentido até hoje. Esse retrocesso é bem narrado na premiada HQ Persépolis, de Marjani Satrapi, que conta como foi perder a liberdade e uma série de outros direitos, quando a população acreditava que a revolução traria melhorias para o país e o resultado acabou sendo desastroso.

Mais uma vez, um tipo de retrocesso bem familiar se levarmos em conta o contexto atual, não só no Brasil, mas no mundo todo (“Agarrem elas pelas bocetas!” – frase célebre de Donald Trump), com o crescimento de uma onda conservadora que, entre outras coisas, prega os tais “valores tradicionais” que na prática, significam apenas manutenção do poder de uma minoria que não quer abrir mão de certos privilégios, entre eles, o controle sobre os corpos femininos.

Melhor nunca significa melhor para todos. Sempre significa pior para alguns

A hipocrisia do discurso fundamentalista cristão é bem retratada no episódio onde somos apresentados à casa das Jezebels. O próprio comandante Waterford, que se nega a ter relações sexuais com sua esposa, com o argumento de que “Deus” os castigaria se levassem a luxúria e o pecado para dentro de casa (o estupro de uma mulher é justificado com uma passagem bíblica, então não é pecado), leva sua aia para um passeio em um bordel. Ao chegar lá, ela descobre que o lugar é frequentado por todos aqueles que pregam a moral e os bons costumes, mas desde que eles não estejam incluídos. Hum, sabe quando você prega que as pessoas ajam de forma correta, mas você trafica cocaína no helicóptero da família, bate em mulher, xinga negros em praça pública? Bingo! Mais uma vez é a realidade marcando presença nas falas dos personagens.

Ou seja, para que o mundo se torne um lugar “melhor”, algumas pessoas precisam se sacrificar, mas só as mulheres, ok? Afinal, como apontado por um dos políticos envolvidos “no esquema”, “nós fomos longe demais em deixá-las acreditarem que podiam estudar e se tornar executivas”.

Joseph Fiennes, que interpreta o comandante Fred, consegue conferir tanta veracidade ao seu personagem que sentir nojo de seu comportamento é uma consequência lógica. O homem que aparenta ser poderoso, mas que é um fraco diante de uma mulher, só consegue se sentir seguro na medida que consegue se impor a partir de sua posição hierárquica na história. Um homem padrão, clichê, que todas nós conhecemos muito bem.

Enquanto June é uma escrava passiva na relação sexual, Waterford não sente tesão, afinal, não houve o jogo de poder, que é, no fim das contas, o elemento principal de um estupro. Por isso, ele precisa que sua “presa” seja conquistada, que ela se entregue porque entende quem é que manda, é preciso que ela demonstre que entende e que aprecia seu poder. Então, ele lhe compra um vestido caro, a leva como amante para fora da cidade, para um passeio no bordel. Ele mostra como é bem atendido e admirado no local, gosta de ouvir dela que ela o admira, mesmo que no fundo ele saiba que é tudo uma encenação, uma vez que sua aia não tem escolha.

Não só isso, antes do passeio, ele a depila! Sim! Esta cena é muito significativa, porque as aias não têm acesso a lâminas (se não se matam, lógico!). Elas podem se depilar sob a supervisão das Marthas no dia da “cerimônia” apenas. Assim, conforme ele a depila, lhe pergunta se não se sente bem, afinal, que mulher mantida em cativeiro não almeja uma depilação mais que tudo nessa vida? Esse momento ilustra perfeitamente a obsessão masculina com a feminilidade, como se fosse algo natural e inerente às mulheres, como se não fosse uma imposição social e machista. A expressão de June é sensacional, porque embora ela não diga com palavras, podemos ler seus pensamentos julgando a atitude de Fred como algo bizarro.

No entanto, o que realmente me incomoda em relação a esta obra é que todo o desconforto que ela é capaz de causar nas mulheres, não será jamais compreendido por um homem. Não porque homens não sofram por diversos motivos, apenas porque o terror que vivenciamos ao assistir a série não possui analogia possível para que os homens sejam capazes de compreender porque também precisam lutar contra o machismo.

Tudo que é retratado na série É real. Como a própria Atwood diz, já aconteceu, acontece ou está em vias de. Portanto, nossos algozes é que deveriam assistir a série e refletir sobre o que poderiam fazer para que esse terror não se perpetue. Logo, ao acreditarmos que O Conto da Aia não passa de mais uma ficção distópica, a tomada de atitudes em relação aos problemas que já nos afligem é comprometida, pois um alerta sobre algo que pode acontecer no futuro não necessariamente resulta em ações práticas a curto prazo.

Por mais que muitos tenham a sensação de que já alcançamos muitas coisas e isso é verdade, ainda falta muito a ser alcançado e isso porque somos silenciadas, apagadas, assassinadas, preteridas, não porque não tenhamos tentado. É importante que os homens assistam a série e conversem com as mulheres que também assistiram, mas é ainda mais importante que conversem com os amigos e pensem de que maneira podemos mudar nossa forma de agir para que Gilead não seja uma realidade, mas uma distopia, como deveria ser.

 

 Confira o trailer da segunda temporada com estreia prevista para abril de 2018

https://youtu.be/xxQhWrAcQnE

 

 

 

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

Este post tem 8 comentários

  1. Thales Machado

    Que série foda, cara. Um must watch pra todo mundo! Concordo com tudo em gênero, número e grau!

  2. Jennifer

    Sensacional. A sua análise e suas referências são, realmente, instigantes. Muito obrigada por dedicar um espaço aqui para esse livro e série, e ainda mais importante, por trazer reflexões que me deixaram inquieta.

    1. Dada the Luç

      Achei o texto interessante tb. Mas por que cargas dagua, vc usa esse avatar?

  3. JN

    vê um video no youtube, Como reconhecer uma distopia?, e acha que por isso e apenas por isso a série não é distopia. Que piada. Não sabe como funcionam e são criadas distopias e vem com achismos

  4. Simone

    Gostei muito da sua análise… só uma coisa que achei um pouco exagerado foi falar dos cristãos como se eles fosse aquele tipo de cristão…pq na série,aquilo não é o evangelho de verdade,portanto eles não podem ser chamados de “cristão” como se realmente fossem….mas tirando isso,gostei muito, bom vê outros pontos de vista.

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