No Superhero Allowed: considerações sobre o herói contemporâneo de mangá

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Esse texto é mais uma versão resumida de um artigo acadêmico que apresentei durante o meu mestrado. O mesmo ainda não pode ser lido na integra, mas, assim que conseguir publicá-lo em algum lugar, atualizarei o post. Os fãs de One Piece vão perceber que ele não leva em consideração alguns dos desdobramentos mais recentes do mangá (especificamente o arco do irmão do Luffy), mas isso se deve ao ano de produção desse texto, 2011/2012. Ainda assim, decidi postá-lo, pois creio que a maioria dos questionamentos levantados no texto ainda seja válido. Mesmo assim, podem criticar, comentar, xingar a vontade, estamos aqui pra isso.

As histórias em quadrinhos (HQ) podem ser utilizadas para compreender a cultura na qual estão inseridas. Por meio de seus mecanismos de produção de sentido, é possível identificar diversas formas de representação e construção de imaginário. Nesse sentido, nos debruçamos sobre o estudo do herói na cultura japonesa contemporânea por meio de uma análise sobre alguns dos principais mangás lançados entre o final da década de 1980 e a o início da década de 2000 no Japão. Ao menos em termos de sucesso comercial, títulos como Cavaleiros do Zodíaco (Saint Seiya), Dragon Ball, Naruto e One Piece provavelmente são os maiores de todos os tempos.

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Segundo Edward Hall, “as pessoas de culturas diferentes vivem em mundos sensoriais diferentes. Não somente estruturam o espaço diferentemente, mas também o experimentam diferentemente porque seu sensorium está ‘programado’ diferentemente” (1998, p. 195). Levando essa questão para os meios de comunicação de massa que propagam um volume exponencial de informações, nota-se que o volume e a intensidade desses conteúdos serviriam para propagar contrastes, uma vez que acentuariam as características inerentes de uma determinada cultura.

Obviamente, a chamada “cultura de massa” não é estanque, porém, mesmo sendo produzida a partir de diversas fontes culturais e tendendo para certa planificação de seu discurso, ela possui elementos que constroem representações de acordo com a cultura na qual estão inseridas. Essas construções simbólicas midiáticas, por sua vez, constituem em si uma forma de representação do imaginário cultural de uma sociedade, as quais, posteriormente, vêm a ressignificar esse mesmo referencial do qual a mídia se alimentou. Por esses motivos, identificar e analisar traços culturais presentes nos meios de comunicação de massa se torna uma tarefa árdua que requer bastante diligência, ainda mais se tratando do Oriente, mais especificamente o Japão.

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À primeira vista, nenhuma dessas séries foge do modelo ocidental do mito do herói proposto por Campbell (2007) sobre o “chamado da aventura”, “mergulho na fonte de poder”, a figura que fornece “amuletos protetores” e a presença de algum tipo de morte (ou perda) e do triunfo posterior sobre a mesma. A começar pelo chamado, cada um dos heróis inicia sua caminhada por um motivo pessoal (e não “por acaso”, como em muitos quadrinhos americanos), que são: se tornar o rei dos piratas, o ninja mais forte, reunir as esferas do dragão e reencontrar a irmã (no caso especifico do suposto protagonista Seiya). Nesse caso, no Oriente, o chamado da aventura seria mais uma “vontade de aventura”. Enquanto o herói ocidental (de quadrinhos) seria levado pela inevitabilidade das circunstâncias, respondendo a um chamado, o oriental começa seu percurso saindo à procura de ação.

Involuntária nessas séries é a forma como esses heróis obtêm suas habilidades especiais, aquelas que os qualificam como seres diferenciados, os escolhidos com potencial para se tornarem verdadeiros heróis. Essas habilidades são adquiridas com o início da trama e geralmente estão ligadas ao chamado da aventura, simbolicamente elas remetem ao mote da trama.

Os Cavaleiros do Zodíaco (CDZ), ou Saint Seiya no original, escrito e desenhado por Masami Kurumada de 1986 a 1991, narra a história de cinco guerreiros com habilidades sobre-humanas que defendem a reencarnação da deusa grega Atena. Seiya de Pégaso, o protagonista do título, Shiryu de Dragão, Hyoga de Cisne, Shun de Andrômeda e Ikki de Fênix possuem armaduras de bronze que representam suas respectivas constelações. A princípio inimigos, eles se tornam cavaleiros por motivos pessoais que vão de fama à vingança. No entanto, no decorrer da chamada Saga do Santuário, acontece uma espécie de “conversão” que os faz tornarem-se finalmente guerreiros (ou santos) de Atena.

Numa passagem emblemática (e bastante representativa da proposição de Campbell), os heróis estão lutando contra Ikki de Fênix, que, no início, era um inimigo, e seus subordinados, os Cavaleiros Negros – versões negativas dos heróis. Durante o embate, eles foram derrotados e, ao mesmo tempo, se tornavam amigos dos Cavaleiros de Bronze até que o mesmo acontece com Ikki. No entanto, ocorre o primeiro ataque dos Cavaleiros de Prata e os Cavaleiros Negros morrem no lugar dos protagonistas. Ou seja, outros pagam por seu egocentrismo e é através dessa perda que ocorre o direcionamento para o que é “correto”. Também está presente nessa passagem um simbolismo duplo. Primeiro o herói faz as pazes com seu lado negro e logo depois ele é eliminado.

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Assim, os santos aceitam ir até a Grécia enfrentar o falso líder do Santuário, contudo eles ainda o fazem por seu senso de justiça e não por causa de Atena. Essa é uma mudança gradativa que acontece ao longo dessa saga na qual o personagem se encontra com uma flecha cravada no peito, prestes a morrer.

Em Dragon Ball, após a morte de seu avô de criação, o menino Son Goku parte com a adolescente Bulma em busca das lendárias Esferas do Dragão que podem conceder um desejo a quem reunir todas as sete. Posteriormente, ele se torna discípulo de Mestre Kame, um amigo de seu avô, que completa seu treinamento em artes marciais. Uma espécie de adaptação da lenda chinesa da “Jornada ao Oeste”, o mangá foi criado por Akira Toriyama em 1984 e durou até 1995. A série foi dividida em duas partes, sendo a primeira com Goku criança e a segunda fase, Dragon Ball Z, com ele adulto, casado e com filhos.

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Na primeira fase, quando Goku muda seu direcionamento das Esferas do Dragão para se tornar o lutador mais forte, obtendo sucesso, aparece Piccolo Daimao – o primeiro vilão por excelência do mangá. Derrotá-lo não significa apenas se tornar mais forte, mas proteger a humanidade. Essa consciência vem ao protagonista com a morte de seu amigo Kulilin, assassinado por um dos capangas do vilão. Com o fim da saga de Piccolo, o mangá entra na fase Z. Nela, Goku desempenha continua e efetivamente o papel de defensor da Terra.

Já em Naruto, desenvolvido por Musashi Kishimoto desde 1999, o protagonista homônimo é um ninja adolescente que sonha se tornar um Hokage – o líder da Vila Oculta da Folha, uma espécie de cidade-estado nos moldes espartanos (embora obedeça ao governo central do fictício país do Fogo). Acontece que, dentro do menino foi selada a Raposa de Nove Caldas – uma entidade clássica do folclore japonês -, o que lhe confere poderes extraordinários, mas também atrai o ódio dos outros moradores da vila que lembram com pesar a destruição e as mortes causadas pelo demônio antes de ser lacrado. Por esse motivo, Naruto busca se tornar o melhor ninja de sua vila para poder finalmente conseguir o reconhecimento de seus pares. O mangá também está dividido em duas partes, a primeira contando a infância do herói, e a segunda com ele três anos mais velho.

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Paralelamente a sua busca por se tornar mais forte, o vilão Orochimaru tenta se vingar da Vila Oculta da Folha e parte do seu plano é tomar o corpo de um jovem ninja para poder viver mais. O jovem escolhido é justamente o melhor amigo de Naruto (e também principal rival), Sasuke. Ele não morre, mas se torna “mal” por causa da influência de Orochimaru e, posteriormente, parte de forma voluntária como aprendiz nas artes das trevas. A perda do amigo aliada a morte do antigo Hokage, um ancião que detinha o posto que ele almejava, leva o protagonista a conscientização do seu papel de defensor.

One_Piece-v26-003colorPor sua vez, One Piece é o título mais popular do Japão atualmente tendo alcançado mais de três milhões de cópias em seus últimos encadernados. Nele, o protagonista Monkey D. Luffy deseja se tornar o Rei dos Piratas e aos poucos vai reunindo uma tripulação de notáveis companheiros: um espadachim, uma ladra, um cozinheiro kickboxer, um atirador e um médico metade homem metade rena. No quesito habilidades especiais, Luffy também não fica atrás. Ao comer uma fruta do demônio, ele se torna um homem de borracha, praticamente invulnerável e com apenas uma fraqueza, não poder nadar. Mesmo se passando numa realidade alternativa, os piratas em One Piece também são considerados criminosos e são caçados pelo governo e sua força policial, no caso, a marinha. Talvez seja esse um dos grandes diferenciais da série, pois Luffy se torna uma espécie de Robin Hood dos mares.

Na cidade natal de Luffy, residiam o pirata Shanks e sua tripulação. Conhecido como um “pirata bom”, ele servia como uma espécie de mentor para Luffy. Quando bandidos invadem a cidade, os piratas evitam o conflito, mas o temperamento intempestivo do menino o faz ser jogado ao mar pelos bandidos. Esse fato faz com que os piratas reajam e facilmente derrotem os bandidos (inclusive matando muitos deles). Para salvar o menino, o próprio Shanks mergulha no mar e tem seu braço devorado por um monstro marinho. Após esse episódio o menino que tinha pressa em se tornar um pirata, segue o conselho de Shanks e espera mais, saindo para suas próprias aventuras aos 17 anos. Mesmo neste período ele nunca muda seu objetivo se tornar o rei dos piratas, o que ele aprende com o ocorrido são lições de humildade e de não confrontamento (só agindo quando extremamente necessário). Dessa forma, reforça-se a metáfora do Robin Hood dos mares, pois ele entra nas aventuras e realiza atos heroicos dentro de seu próprio objetivo de se tornar o rei dos piratas, mesmo sendo um fora da lei.

É possível observar que nos quatro casos o chamado da aventura começa como uma espécie de jornada de “autodescobrimento”, daí seu caráter voluntário (diferente de ter seus pais assassinados ou seu planeta natal destruído). O desconhecido que o postulante a herói precisa enfrentar é interno, geralmente representando pelo limite da própria força. Dominar o próprio poder para poder assim empregá-lo da melhor forma e atingir seus objetivos. E quanto a suas habilidades especiais, com exceção de One Piece (até o momento em que lemos o mangá), o protagonista obrigatoriamente precisa das artes marciais para se tornar um verdadeiro herói, somente suas habilidades inatas não bastam para que ele atinja esse status. É a ideia de que poder sem disciplina ou sem uma técnica que a respalde não vale de nada, um tema muito importante dentro da cultura oriental.

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Cabe ressaltar que nos mangás os termos rivais, inimigos e vilões ganham significados completamente diferentes, reforçando o emprego diferenciado da ideia de maldade pelos japoneses. Nos mangás, um rival é uma pessoa contra quem um indivíduo compete “em igualdade” ou “amistosamente”. Em muitos casos, é através dessa rivalidade sadia que nasce a amizade (Goku-Kulilin, Naruto-Rock Lee, Luffy-Zoro, entre outros). O inimigo é aquele que faz de tudo para vencer/destruir o herói, geralmente empregando métodos escusos. Essa inimizade, no entanto, pode se transformar em amizade, uma vez que o herói japonês ao derrotar (ou até matar) um inimigo faz também com que ele se solidarize a sua causa (cavaleiros negros e Ikki, Vegeta, Nico Robin em One Piece etc.). Por fim, o vilão é aquele que põe em risco a coletividade. O vilão de um mangá na maioria das vezes não está interessado especificamente no herói, ele quer destruir ou controlar o mundo. E aí o herói precisa intervir para “salvar o dia” (Orochimaru, Piccolo Daimao, Freeza, Cell, Crocodile em One Piece etc.). Ele raramente muda de lado e só é vencido com a morte.

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Tratando do herói em si foi possível identificar um traço bem característico nas representações desses personagens: a comicidade. A partir de Dragon Ball, os protagonistas são arduamente retratados de forma esdrúxula, até ridícula. Em CDZ há apenas pequenos indícios dessa tendência para o caricato, pois quase não existem momentos de alivio cômico, então, essa faceta dos heróis não é explorada, sendo apenas perceptível em Seiya somente em três ou quatro quadros de toda a história. Já nas outras três obras analisadas a caricatura faz parte da forma de expressão dos personagens, um contraste com a austeridade dos samurais de outrora. Ainda há o sacrifício beirando a morte, mas os heróis de Dragon Ball (menos na fase Z), Naruto e One Piece conseguem levar comicidade para esses momentos alternando risos e choro.

Zé Messias

Jornalista não praticante, projeto de professor universitário, fraude e nerd em tempo integral cash advance online.

Este post tem um comentário

  1. Geyson Freitas

    Muito bom texto. Sempre achei mais interessante essa formula do mangá shonen de se criar um herói, onde a maioria começa com motivos bem pessoais, e ao decorrer dos capítulos, devido as circunstâncias são levados a serem os salvadores da pátria, aos comics, que muitos se tornam heróis só por terem poderes especiais ou habilidades de luta, sem um motivo plausível envolvido.

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