Narrativa em Limbo

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Como um apaixonado por histórias, sempre busco jogos que possuam, minimamente, um enredo. No entanto, não sou restritivo quanto a isso e gosto também da ação. No fim, posso até abrir mão de uma história complexa ou da participação direta nas escolhas dramáticas, desde que a ação, o controle do personagem, os gráficos e o som sejam de qualidade. Não precisa ter alta definição, cópia perfeita da realidade, mas pelo menos precisa ser verossímil, convincente ou inovador.

O uso da narrativa não exclui os aspectos lúdicos, pelo contrário, os contextualiza e os fortalece. O jogo, para ser caracterizado como tal, precisa de participação, que, através da narrativa, torna-se verossímil. Além de criar um ambiente atrativo emocionalmente, a história fornece a estrutura lógica para a disposição das regras do jogo (objetivos, poderes, personagens etc).

kratosDesta forma, uma combinação equilibrada entre narrativa e ação será sempre valorizada. Quando uso “equilibrada” não significa meio a meio, mas sim, o uso dosado de todos os elementos de acordo com o que o jogo se propõe. Em God of War, não interferimos na história, apenas avançamos pelos obstáculos e, como recompensa, vemos cutscenes com a narrativa. Isso não difere muito do Mario Bros: o gameplay é linear em ambos os jogos, a diferença é que em Mario, o mundo é um 2D honesto, e em GoW, o jogo simula tridimensionalidade – de fato, Kratos não opta por caminhos a seguir, não há desvios ou atalhos narrativos/físicos. Experimente virar à esquerda de repente para ver se você consegue… O “correto” é seguir o que o sistema lhe apresenta; e nos momentos em que pode haver dúvidas, o sistema faz um tour com a câmera para você aprender o único caminho existente.

De fato, o jogo não precisa de história para ser jogado, como afirma os ludólogos de raiz. Um jogo como GTA 4, apesar de possuir um enredo rebuscado, não obriga ao jogador acompanhá-lo, ele pode seguir as missões e finalizar o jogo sem precisar entender a trama (principalmente se não souber outro idioma). Entretanto, ao acrescentar um enredo que justifica as regras e objetivos, a narrativa passa a ocupar uma posição de destaque. Nos jogos, uma ação só se completa quando envolve a tarefa em si e uma justificativa contextual – faz-se algo baseado no enredo. É possível que um jogador chegue ao final do jogo sem notar o fundo narrativo, no entanto, a completude do evento só será realmente sentida, e justificada, através da narrativa – do contrário, a experiência girará unicamente em torno da dicotomia perder/vencer.

Um excelente exemplo da força da narrativa é Limbo. A jogabilidade é simples (o personagem apenas pula e segura objetos) e os puzzles não exigem muito raciocínio. A narrativa, por sua vez, já se comporta de outra forma. O jogo começa com o personagem deitado em uma floresta; o cenário é preto e branco e usa vários trechos desfocados, criando um clima sombrio. Parece ser um menino, todo preto (uma sombra) e com os olhos brancos e brilhantes. A partir daí, o jogador deve guiar o personagem pela floresta e outros locais, com o mesmo clima enigmático, vencendo obstáculos.

gameplaylimboSe você não jogou o jogo, recomendo que jogue antes de ler este texto. Eu avisei, depois não vai falar que eu estraguei a sua experiência…

O incrível é que, aparentemente, não há narrativa, mas, prestando atenção, há dois elementos claros que viabilizam uma interpretação dramática: o nome do jogo, que remete a um possível lugar pós-morte; e a presença de outra personagem, uma menina ajoelhada de costas para o “herói”. Em um determinado momento, o jogador alcança essa menina, mas um obstáculo aparece e os afasta. O personagem continua movendo-se para a direita (clássica configuração de jogos de aventura em 2D) sem parar, enfrentando novos desafios.

gameplayfimlimbo*spoiler*

O fim do jogo ocorre ao conseguir transpor uma parede de vidro (o personagem é atirado por ela em câmera lenta). Após cair, caminha mais um pouco para a direita e encontra a menina no mesmo local, ainda de costas, olhando para baixo. Ele se aproxima. Ela, sentindo sua presença, treme e levanta a cabeça (como um pequeno susto) e corta para os créditos. Esses dois elementos permitem a criação de uma possível estrutura dramática, uma iniciativa apenas do jogador, pois não há nada explicando do que se trata aquele jogo: o personagem busca, no limbo, a mulher amada após uma experiência fatal (ela morreu antes e ele depois ou os dois juntos e ele tenta encontrá-la). É uma possibilidade dramática criada quase inconscientemente na tentativa de dar um sentido lógico para a ação; atitude condenável para os ludólogos, entretanto, apenas enriquece a obra, pois não diminui a importância do lúdico ao mesmo tempo em que permite aproximação sentimental com o personagem e sua “apaixonada” jornada.

Há inúmeras interpretações possíveis: os dois são irmãos; os dois estão mortos e o menino procura pela irmã; o menino cruza o Inferno para chegar ao Céu; é uma trajetória de um menino se transformando em homem etc. De fato, a falta de uma narrativa direta é o atrativo do jogo, pois estimula o jogador a criar sua própria versão dramática para os eventos. A experiência total do jogo, assim, depende destas especulações, seja através de um ato privado (o jogador sozinho cria a narrativa), seja buscando versões em outras fontes (Wikipédia, amigos, sites de jogos etc.).

Talvez seja a simplicidade de Limbo que instigue o jogador a buscar complexidade onde ela não existe. As “lacunas” são preenchidas independentemente da exposição direta ou, até, de sua própria existência! Diferente do que ocorre em jogos como God of War, em Limbo não há cutscenes, narradores ou textos explicativos, entretanto, se o jogador quiser, é possível criar um ambiente dramático. Não com diálogos ou atuações, mas com a mera ideia de que por trás daquilo há um contexto fluido.

Sei que posso parecer um pouco “etéreo” no discurso, mas Limbo é, ou pode ser, um jogo metafísico, pois envolve conceitos abstratos e dogmáticos como a vida após a morte, o purgatório, o paraíso, o limbo e, se quiserem, até os outros 8 círculos do Inferno de Dante.. Nada mais justo que sua análise também o seja…

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Gustavo Audi

Se fosse uma entrevista de emprego, diria: inteligente, esforçado e cujo maior defeito é cobrar demais de si mesmo... Como não é, digo apenas que sou apaixonado por jogos, histórias e cultura nerd.

Este post tem 10 comentários

  1. Cynthia Franca

    Acho que o seu texto não está ‘etéreo’, Gustavo – Limbo é mesmo um jogo para ser experimentado, mais do que ser descrito. Eu joguei e lembro que em várias passagens ficava com o coração oprimido, com o corpo todo contraído na cadeira… tenso!

    1. Gustavo Audi

      Fico feliz em saber que não fui o único a ter esta impressão do jogo. Obrigado, Cynthia!

  2. Don Vittor

    Sei que posso parecer um pouco “etéreo” no discurso, mas Limbo é, ou pode ser, um jogo metafísico, pois envolve conceitos abstratos e dogmáticos como a vida após a morte, o purgatório, o paraíso, o limbo e, se quiserem, até os outros 8 círculos do Inferno de Dante.. Nada mais justo que sua análise também o seja…

    Trecho maravilhoso meu amigo, e com poucas palavras você resumiu todos os pensamentos que criei ao idealizar esse jogo. Já vi outros jogos assim, uma vez que sempre busco games na temática do terror , e acredito, talvez da mesma maneira que você, que os jogos mais simples, fatalmente se tornam mais assustadores, visto que além do ambiente apresentado, lançamos nossos próprias convicções e temor, criando assim um enredo totalmente íntimo. Não sei se me fiz entender, mas em vários jogos mais simples, boa parte em flash, construí situações desconfortáveis ao extremo rs

    1. Don Vittor

      Perdão, mas entendi que tal jogo não tem uma temática definida, mas em minha cabeça sempre o idealizo como terror.

    2. Gustavo Audi

      Valeu, Vittor! Não sou como a Murray que inventa narrativa até para o Tetris, mas sempre tento inventar alguma coisa para ficar mais interessante.

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