Mil vezes boa noite e o dilema das nossas escolhas

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Um dia desses me deparei com alguns comentários em um post do Facebook questionando a razão pela qual o fotógrafo de um evento trágico não se prontificou a ajudar a vítima de um acidente em vez de fotografá-la.
A situação me remeteu automaticamente ao filme Mil Vezes Boa Noite (2014), de Erik Poppe. Juliette Binoche interpreta Rebecca, uma fotógrafa de zonas de conflito que se vê diante de um grande dilema após ter sido atingida por uma bomba enquanto documentava um atentado terrorista: deveria ficar mais próxima do marido (Nikolaj Coster-Waldau) e das duas filhas em sua casa idílica no interior da França ou deveria voltar ao trabalho, apesar dos apelos aflitos de sua família para que não fizesse isso?
Embora a ideia central do filme gire em torno do conflito vivido pela personagem, as cenas e o envolvimento de Rebecca com seu trabalho nos deixam bem claro a razão pela qual ela tem tanta dificuldade em decidir. Não só porque se trata de sua grande paixão, mas principalmente porque ela acredita que só por meio da denúncia feita por meio dos seus registros é que o mundo pode tomar conhecimento das atrocidades que ocorrem nas zonas de guerra, na África, na faixa de Gaza…

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A fotografia, a direção e a atuação de Binoche são tão incríveis que por vários momentos é difícil perceber que se trata de uma ficção, pois os eventos retratados se baseiam em fatos que estamos tão acostumados a ignorar nos jornais. Uma coisa é receber a notícia de um atentado com vítimas fatais, outra coisa é presenciar os rituais envolvidos na preparação de uma mulher-bomba, que na verdade é apenas uma menina, a partir da perspectiva de uma fotógrafa que nada pode fazer para impedir o evento, pois qualquer atitude implicaria risco à sua própria vida.
No filme entendemos que existe um acordo de cumplicidade e confiança entre o fotógrafo e a comunidade e este acordo não deve ser quebrado, do contrário, mais vidas poderiam ser colocadas em jogo. Portanto, por mais terrível e dolorosa que seja uma situação, como a mutilação de crianças nas tribos africanas, as guerrilhas na Colômbia, sem o distânciamento desses profissionais, o resto do mundo nem saberia o que acontece nesses lugares.
Mil vezes boa noite é um filme belíssimo e muito triste sobre escolhas: nos coloca diante de problemas tão graves que não é impossível pensar que a família de Rebecca esteja agindo de forma egoísta ao pedir que ela não se envolva mais em trabalhos perigosos. No entanto, saber que a cada viagem a família se prepara para lidar com sua morte é muito massacrante.
Ao mesmo tempo que Rebecca também é egoísta em pensar apenas na satisfação que obtém de seu trabalho, sabemos que é um trabalho essencial e por isso é muito difícil chegar a uma conclusão sobre qual seria a escolha ideal para ela. O que você faria no lugar dela?
Sabemos que no caso dos fotógrafos amadores instantâneos se trata muito mais de um ato de vaidade e egoísmo em capturar um momento antes e com melhor ângulo do que as outras pessoas, por isso, a crítica é válida quando pessoas abusam de animais feridos, por exemplo, apenas para tirarem uma foto.
De qualquer forma, quando se trata dos fotógrafos profissionais, a crítica deve ser ainda mais embasada, pois muitas vezes, o resultado de seu trabalho, por mais incômodo que possa nos parecer, é extremamente necessário.
Nesse sentido, Mil vezes boa noite oferece uma oportunidade para refletirmos questões ligadas às nossas escolhas, ao terrorismo, ao medo, aos valores que temos em nossa sociedade, entre outras coisas que certamente não permitem que fiquemos indiferentes ao filme.

https://www.youtube.com/watch?v=uxMqNcZiomE

 

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

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