Literatos – O Homem Despedaçado, de Gustavo Melo Czekster

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“Os homens são delírios das moscas. Eu sou o algodão explodido. Seus olhos queimavam como estrelas gêmeas. Viver sem pensar é um suplício. Um tiro é tudo o que peço. A imortalidade mora no espelho do banheiro. A fúria dos que não estão mortos. Falácias não sangram. Como matar o não-vivo? A noite é a maior indecisão. O calor dilata os porcos ” (Contracapa de ” O Homem Despedaçado” ).

Em minhas andanças garimpando livros na FNAC daqui de Campinas, fiquei fascinada por uma obra que hoje tem morada perto da cabeceira de minha cama, junto a Ernest Hemingway, Nabokov e Lygia Fagundes Telles. Foi uma compra ao acaso, algo que vai ficar sempre em memória. Comprei o livro naquelas “baciadas” de livrarias. Sabem? É igual balcão de calcinhas em lojas populares, só que de livros. Muitas pessoas tem certo preconceito de livros em promoção, pois acham que é aquilo que ninguém quer. Gosto de explorar… Leio prólogos e contracapas de livros ruins, bons e excelentes. É comum me ver sentada em poltronas de livrarias, totalmente desligada, num mundinho de desbravamento literário.

Neste livro de contos do escritor de Porto Alegre, Gustavo Melo Czekster, publicado pela editora Dublinense, encontramos esferas filosóficas – de Nietzsche e Schopenhauer -, uma prosa forte, comovente e perturbadora, que se aproxima, e muito, da destreza e poesia de Jorge Luis Borges. O Homem Despedaçado foi o primeiro livro, depois de O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, que eu não precisei ler página alguma para querer levá-lo comigo junto ao peito, alegre e saltitante ao caixa.  Bastou ler a contracapa.

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O livro de Czekster tem três capítulos: “Antes da Batalha”, “O Homem despedaçado” ambos com 10 contos. O último capítulo encerra o livro com apenas um conto, “Depois da Batalha”. Vou comentar alguns, deixar alguns trechos para degustação:

Um mundo de Moscas

Neste conto, o personagem espanhol Anton Lopez sustenta uma teoria que cada mosca carrega um pedaço microscópico do ser humano e remonta outro ser humano. “O quê?! É isso mesmo o que eu estou lendo?!” Pois é, e isso torna o conto, dentro das esferas do absurdo que o permeia, uma narrativa com requintes de loucura altamente digna de reflexão. O leitor ficará pensando sobre as moscas que pousam em cadáveres e reconstroem outro ser. Fica a questão no ar: somos todos delírios das moscas?

 Trecho para lhe convencer a ler:

(…) Lopez afirmou que o maior perigo para a sobrevivência humana seria o fenômeno chamado de diáspora, a separação das moscas que tornam as pessoas coesas. Defendeu ainda a ideia de um rígido controle das moscas que trafegam impunes pelo mundo, pois poderiam estar carregando consigo pessoas já falecidas ou criar novas e esdrúxulas combinações de seres humanos, como a fusão de Napoleão e Dickens.

Lição de Macho

Este conto deixa até os mais ogros estarrecidos. É a história de um menino que tem um coelho chamado Rex e faz de conta que o coelho é um cachorro, passando a maior parte do tempo sozinho. Um conto sobre a opressão entre pai e filho. Perturbador e com cheiro triste de fumaça doce. Não tenho outra expressão para definir.

Trecho para lhe convencer a ler:

Papai me ensina matemática e ciências. É um homem muito inteligente. Quando eu crescer vou ser como ele. Falei isso para o Rex, que piscou os olhos igual mamãe fazia. Fiquei com saudade. Abracei o Rex e chorei sozinho. Depois, fiquei com vergonha. Como posso ser igual ao meu ídolo se choro por qualquer problema?

Pequena Parábola para os homens-rio.

Deveria ser obrigatória a leitura deste conto para todo homem. É a discussão entre dois personagens, “O Jovem Soldado” e  “O General”, sobre o ato de amar uma mulher, misturadas a crônicas de guerra.

 Trecho para lhe convencer a ler:

Certa vez um homem do oeste escreveu que ninguém atravessa o mesmo rio duas vezes: toda vez que se atravessa um rio, as suas águas são diferentes. Com as mulheres ocorre o mesmo fenômeno. Talvez nisso resida o seu encanto.

Buraco Negro

Um homem conhece uma mulher chamada Isabel, em um museu. No conto, ele fala desta mulher em um misto de dor, comoção e loucura.

Trecho para lhe convencer a ler:

Pena que a luz acabe, consumida por palavras, rotina, olhares e gestos, deixando somente corpos vazios espelhando a memória da luz perdida, espectro de sentimento. A transitoriedade chamada amor é abominável. Ainda assim, sou felizardo, pois no meu peito mora a luz de todas as mulheres que amei.

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Uma relação indecorosa

Flávio, o escriturário leu um livro chamado O Tratado da dispersão, escrito por um homem chamado Adolf Hemmer. Não consegue tirar da cabeça a imagem de uma flor de algodão, que o atordoa a ponto de não conseguir pensar em mais nada. Um homem sozinho, imerso em pensamentos de algodão, mas que não são nem um pouco leves. E vale algo que o personagem nos diz no conto: ele alega que as pessoas não tem paciência para discutir literatura. Será verdade?

Trecho para lhe convencer a ler:

Cada livro modifica de forma quase imperceptível a realidade, que sinto mais distante. Se eu sou o observador e a realidade é um espelho que descortina o mundo às minhas costas, já não me percebo mais tão concreto como outrora fui. Sinto-me desvanecer nas profundezas do mundo interior, a psique se partindo com gritos de alegria. Estou em queda livre dentro de mim mesmo.

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À espera do inimigo.

A agonia de um jovem soldado que nunca beijou uma mulher esperando a Morte chegar a galope no campo de guerra.

Trecho para lhe convencer a ler:

Em minutos, estarei morto. Minhas tripas estão escorregando e não consigo mais colocá-la para dentro; o cheiro de merda é insuportável. Ao meu lado, os olhos arregalados de tenente Jones contemplam o céu azul, e o seu sorriso me incomoda. O Cabo Wutz morreu alguns minutos atrás sem colocar as pernas no lugar certo; parece um brinquedo desmembrado.

Variações sobre um tema de Nietzsche

Nelson é um professor que se sente perturbado ao tentar responder aos alunos a pergunta: “O que é o homem?”. E então, começa o fluxo de pensamentos de um homem atormentado por ter enganado os alunos por tanto tempo.

Trecho para lhe convencer a ler:

O homem é a soma de suas experiências, resposta errada, o homem também pode ser a soma de suas inexperiências, o homem então é o resultado de uma combinação de elementos orgânicos, não, como explicar o pensamento de um aglomerado químico? O homem é um anjo montado sobre um porco, não, não é hora de alegorias religiosas. O sinal toca, alguns alunos levantam. Preciso responder…

O Homem Despedaçado

Este é o conto que dá nome ao livro. O personagem Luís acidentalmente quebra o espelho em pedaços, que ficam colados no plástico. Ele começa a questionar os seus outros “eus”, abrindo ao leitor a reflexão sobre o Narciso. Um grupo de amigos de Luís reúnem-se para tentar entender o suicídio do mesmo. Dizem que ele ficou louco ao encontrar todas as suas essências desmembradas no reflexo do espelho. Quando cheguei nesta parte da resenha, eu julguei válido e muito honroso perguntar ao próprio autor o porquê do título do livro. E eis aqui as próprias palavras do criador a respeito da própria obra:

É uma declaração de princípios. Penso que cada homem é formado de vários homens. Os contos são como os pedaços, uns se encontram, outros se repelem, e todos eles possuem uma espécie de despedaçamento.

A leitura deste livro nos faz ver o quanto nós somos tridimensionais. Nossas nuances se fundem em loucura, misturadas na leveza de fios algodão, que explodem quando nos vemos em um espelho quebrado. Somos um delírio de moscas, aturdidos, com fome, na espreita, assim como as moscas fazem pairando numa porta de vidro, espiando as migalhas em nossa mesa de jantar. E então, corremos com nossos inseticidas matando nossas talvez criadoras. Quando nos olhamos no espelho, seja ele quebrado ou não, nos veremos diante de nossa imortalidade, nosso eu tridimensional leve como algodão, mas com pesadas crises bipolares e dúvidas… Algumas sem respostas.

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Partimos com nossos questionamentos com variações de Nietzsche: “Quem somos nós?” Somos o espelho de nossa criação, temos ou vamos ter alguma relação indecorosa na vida, cairemos no buraco negro do amor e desamor. Vivemos a vida no dilema de um rio. Talvez, apenas vamos navegar, mas nunca conseguir chegar ao outro lado, ou diante de nosso medo perante nossas desconstruções, ficaremos apenas nas margens. As águas que nadamos ou observamos todos os dias, nas nossas idas e vindas, é a parábola que nos move. E essa parábola é cheia de pedaços. Cabe a nós montar o quebra-cabeça.

O Homem Despedaçado é, assim, uma leitura intensa, fragmentada. Muitos contos do livro devem ser lidos mais de uma vez. Um livro que não consta nos best-sellers, desconhecido, mas que deve e merece ter toda a atenção.  Se você quer um livro que te faça pensar, este é o livro certo.

Texto enviado por Ana Idris.

Colaborador

Colaborador não é uma pessoa, mas uma ideia. Expandindo essa ideia, expandimos o domínio nerd por todo o cosmos. O Colaborador é a figura máxima dos Iluminerds - é o novo membro (ui) que poderá se juntar nalgum dia... Ou quando os aliens pararem com essa zoeira de decorar plantações ou quando o Obama soltar o vírus zumbi no mundo...

Este post tem 4 comentários

    1. Don Vittor

      Parece-me muito bom, mesmo não tendo lido o post uhaHUAUAUAHUA

  1. Matheus Rodrigues de Moura

    Este livro é excelente, já o li duas vezes e indo para a terceira. Realmente recomendo.

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