Liberdade de Expressão e Responsabilidade

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Charlie Hebdo - Stromae

A liberdade de expressão não é um direito absoluto, sendo que nas hipóteses onde o exercício da liberdade de pensamento e expressão fere direito constitucionalmente consagrado de outrem, há de existir a devida limitação e punição. Aplica-se essa lógica também na expressão intelectual e artística, de modo que se um livro prega o preconceito contra uma minoria, tal livro deve ser retirado de circulação e os responsáveis por ele devidamente punidos. Vê-se que apesar de ser proibida a censura e dispensada a licença, deve haver a responsabilização daqueles que praticarem abuso no exercício do seu direito de liberdade de expressão. Esse cerceamento do direito à liberdade de expressão devido ao abuso do mesmo, pode ser entendido como uma forma de censura permitida no nosso ordenamento jurídico, que seria a judicial (através da sanção). A forma de abuso do direito de liberdade de expressão que mais nos interessa no momento é quando ele ocorre através do discurso de ódio. O discurso de ódio ocorre quando um indivíduo se utiliza de seu direito à liberdade de expressão para inferiorizar e discriminar outrem baseado em suas características, como sexo, etnia, orientação sexual, religião, entre outras. Ante o exposto, já percebemos duas características necessárias para o discurso de ódio acontecer: discriminação e exteriorização de pensamento. Quando essa discriminação ocorre, e muitas vezes vemos a incitação à violência contra as minorias, a dignidade humana é ferida, ou seja, um dos fundamentos principais da Constituição Federal é infringido. O discurso de ódio visa objetificar uma pessoa ou grupo de pessoas, sendo que a vitimização é difusa. Quando um homossexual é ofendido por sua orientação sexual, todos os homossexuais são ofendidos, assim como quando um negro é ofendido pelo simples motivo de ser negro, todos os negros são ofendidos. (Trecho extraído do site jusbrasil)

Diante da polarização em que se encontra o país e dos últimos acontecimentos relacionados aos números da violência contra a mulher no Brasil, o aumento da tensão entre pessoas que participam das redes sociais aumentou. Essa divisão do discurso é algo recorrente em países em que há um monopólio dos meios de comunicação de massa, precariedade da comunicação pública e baixo investimento em educação.

Essa fórmula é ideal para que certos grupos se manifestem de forma tão incisiva que leva os integrantes de outros grupos a acreditarem que alguns posicionamentos são corretos dentro de uma convenção social vigente. Ou seja, aceitamos certos discursos sem procurar saber se existe fundamento para que sejam proferidos. Nas redes sociais a prática é mais comum: xingamos, brigamos e discutimos por eventos que sequer ocorreram, pois, se está na internet, deve ser verdade.

O fato é que esta tensão entre grupos tem revelado algo interessante sobre suas manifestações: de repente, todos sabem recorrer à liberdade de expressão no intuito de proferir qualquer tipo de impropérios, como se este fosse um direito absoluto. Surpresa!!! Não é! Nem mesmo dentro das concepções mais liberais de especialistas como Stuart Mill e Ronald Dworkin a ideia de liberdade irrestrita é possível.kiddiscipline

Existe uma passagem no livro de Lilian Robson sobre a Mulher Maravilha que ilustra o ponto ao qual quero chegar depois de percorrer uma trilha de considerações de alguns teóricos no assunto. Nesta passagem, Diana  vai à escola das amazonas buscar a pequena Gerta e encontra todas as crianças ajoelhadas, de castigo por terem se comportado mal. Elas terão que estudar por uma hora a mais. Apesar da alusão à tortura, a princesa não se choca com o comportamento da professora, pois disciplina sempre fez parte da vida das amazonas. Mais tarde, quando retorna para buscar Gerta, encontra a menina revoltada por ter tido que estudar por mais uma hora, a ponto de jogar o piano em cima da professora. Preocupada com o comportamento da criança, Diana promete olhar em sua esfera mágica para saber mais sobre o futuro de Gerta e descobre que, a menos que ela aprenda a obedecer aos mais velhos, seu futuro seria terrível. Por isso, Diana apela ao amor de Gerta pela mãe para ensiná-la a necessidade de respeitar certos limites.

Embora haja certo exagero na passagem, adultos, com ou sem filhos, são alertados constantemente sobre os perigos de se criar uma criança sem freios: uma pessoa que cresce acreditando que o mundo gira em seu redor sofrerá muito mais com as frustrações ao longo da vida e não será capaz de desenvolver empatia pelos outros.

 

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O mesmo pode ocorrer com qualquer ser humano: acostumado a ter suas convicções sempre validadas por uma cultura hegemônica, um integrante de um grupo dominante ignora completamente as consequências de suas atitudes e seus discursos, porque sabe que pode contar com a impunidade e com seu direito inalienável de se expressar livremente.

No entanto, dado o alcance das redes sociais, apelar à liberdade de expressão para propagar discurso de ódio mostrou-se uma atitude infantil, típica de crianças mimadas que não se importam com os outros e querem suas vontades atendidas imediatamente: eu quero me expressar e não me importo como isso atinge outras pessoas, pois o meu direito de ofender mais importante que o direito delas de não serem ofendidas.

Recentemente tivemos o caso do desenhista Allan Goldman, que teve seu contrato cancelado com os representantes da Chiaroscuro por ter se manifestado de forma jocosa em relação a um caso de estupro coletivo. Várias pessoas em seguida acusaram a agência de fascismo, alegando uma censura à liberdade de expressão do artista, quando na verdade ele estava propagando um discurso de ódio (assim entendido, de forma genérica, qualquer forma de comunicação que que inferiorize uma pessoa tendo por base características como raça, gênero, etnia, nacionalidade, religião, orientação sexual, etc.) . Não à toa, o Facebook, juntamente com o Google, noticiou que está trabalhando em maneiras de conter este tipo de discurso.

Precisamos entender que a liberdade de expressão, assegurada nas Constituições de diversos países e na Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê a garantia do direito de um indivíduo de comunicar ou informar seu pensamento sem interferência do estado, DESDE QUE não interfira no direito de outros à garantia de integridade física ou moral.

Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. (STF,2004)

Sendo assim, a Constituição Federal prevê a possibilidade de minorar o conteúdo material de um direito fundamental para salvaguardar outro. Alguns dos instrumentos utilizados pelos países signatários dos acordos internacionais preveem a normatização da proibição da propaganda em favor da guerra e da apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência – ou, olha ele aí de novo, o discurso de ódio (INTERVOZES).

Outra coisa de que as pessoas se esquecem é que, com a popularização da internet e das redes sociais, qualquer um é hoje um comunicador de amplo alcance ao se manifestar em um veículo que, embora não seja regulado pelas leis de comunicação social da mesma forma que outros, tem abarcamento internacional e atuação massiva. Assim sendo, poderíamos inferir que a mesma lógica aplicada à liberdade de imprensa seja adotada pelos usuários das redes sociais.

Embora estes usuários não busquem necessariamente fins lucrativos com suas mensagens, o Facebook é uma empresa com fins lucrativos. Independentemente dessa discussão, a verdade é que os principais conceitos ligados à liberdade de expressão foram definidos muito antes do surgimento das redes sociais. Por isso, vale lembrar que, apesar do direito de se expressar, ninguém está livre de ter que lidar com as consequências da exteriorização de suas opiniões. Ora, “com grandes poderes, vem grandes responsabilidades!”, não?

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Neste sentido, o autor Anshuman Mondal, em seu livro Islam and Controversy, elenca uma série de pensadores e filósofos que chamam atenção para o fato de que os conceitos de liberdade variam entre culturas do Ocidente e do Oriente, lembrando que a ideia de autocontrole pode ser a base para a liberdade (no sentido de autodisciplina mais do que de autonomia), sendo encontrada nas tradições islâmicas e nas védicas, como hinduísmo, jainismo e budismo. O que significa que concepções alternativas de liberdade podem oferecer um valioso corretivo que amenizaria os efeitos corrosivos da liberdade irrestrita para uma pessoa, para suas relações com os outros e para a confiança e solidariedade sociais. Em outras palavras, ofereceriam meios de se promover um pensamento que vá além do próprio interesse.

O valor e a significância da liberdade de expressão, portanto, dependem do que alguns liberais absolutistas entendem ser uma quimera: responsabilidade. Eles fazem pouco da ideia de que direitos deveriam vir acompanhados de responsabilidades, alegando que estas são apenas maneiras de mascarar as restrições e deturpações da própria ideia de liberdade.

Longe de encerrar as questões sobre o assunto, Mondal aponta que há falhas em várias perspectivas sobre o mesmo, mas que a visão liberal, ao defender a não restrição a nenhum tipo de discurso, é potencialmente muito mais nociva ao bem-estar comum. Ainda assim, nenhuma teoria parece abranger todos os questionamentos que surgem no que tange à liberdade de expressão, principalmente quando envolvem aspectos religiosos e morais oriundos de culturas diferentes. Por isso, ao citar Derek Attridge, o autor  faz uma distinção entre responsabilidade com o outro e responsabilidade pelo outro. Este implica aceitar as necessidades do outro, afirmando-as, sustentando-as e sendo capaz de abrir mão de sua própria vontade e satisfação em nome do bem-estar alheio.

A ética nessas relações depende do autor e do leitor observarem certas convenções que surgem da obrigação recíproca de cada um, a responsabilidade que cada um carrega em relação às necessidades do outro. Essas convenções são determinadas por códigos morais, culturais e políticos que tanto o emissor como o receptor estão sujeitos, e que governam e delimitam o horizonte de expectativas onde essas transações acontecem. Essas expectativas podem ser alcançadas ou frustradas, mas estão sempre presentes.

Tendo em mente o senso comum de que artistas seriam pessoas dotados de maior sensibilidade em comparação ao restante das pessoas, é possível acreditar que sejam capazes de refletir além dos próprios interesses e entender que suas obras, seja concebidas no intuito de ficarem expostas em uma galeria intimista, seja serem publicadas em meios de comunicação de massa, poderão ter um alcance inesperado, com consequências potencialmente nocivas a determinados grupos.

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Ainda que muitos teóricos justifiquem o “direito de ofender” como algo inerente à liberdade de expressão, alegando muitas vezes que existe uma tendência ao autoritarismo quando se fala em “politicamente correto”, esses não são reconhecidos pelos grupos historicamente oprimidos, uma vez que sua perspectiva é carregada de um discurso que se pretende neutro, mas que, como apontam Sausurre e Judith Butler, é impregnado com a má intenção de manutenção do sistema vigente, nocivo e excludente para as minorias.

Portanto, ainda que as ideias não sejam capazes de alterar o status quo, certamente sem uma reflexão acerca dos problemas mencionados também não haverá mudança. Por isso, apelar à sensibilidade dos artistas e comunicadores para que reflitam sobre seu papel em um mundo globalizado, digitalmente conectado e cujas fronteiras têm sido cada vez mais questionadas, pode ser o início de um processo que possibilitará a conscientização sobre nossas responsabilidades enquanto seres sociais.

* Este texto é fruto de uma pesquisa realizada para a disciplina de Direito à Comunicação e Liberdade de Expressão que curso no Mestrado da Escola de Comunicação e Artes da USP. Longe de querer encerrar o tema ou propor conclusões, o objetivo é compartilhar algumas considerações a partir da revisão bibliográfica dos autores citados no intuito de promover o debate e gerar reflexões acerca de um assunto que é de interesse geral.

Artigo completo apresentado no Congresso Nacional de Comunicação Intercom 2016 

Livros citados:

BLOTTA, Vitor S. L.O direito da comunicação: uma nova teoria crítica do direito a partir da esfera pública política. São Paulo: Fiuza, 2013. (Coleção Estudos acadêmicos de direito digital e de direito da sociedade da informação; v. 3 / coordenador Celso Antonio Pacheco Fiorillo)

MONDAL, Anshuman A. Islam and Controversy: The Politics of Free Speech after Rushdie. Londres: Palgrave Macmillan, 2014.

ROBSON, Lillian. Wonder Woman. Feminisms and superheroes. Londres: Routledge, 2004

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

Este post tem 9 comentários

  1. Stay Puft

    nota-se o mau caratismo da autora quando:
    1- ela diz q allan fez ironia com o estupro, quando na verdade foi com a ideologia de genero.
    2- ela mesma atesta q discordar da ideologia de genero é iquestionavelmente um “discurso de odio”.

    1. Daniela

      Nota-se seu problema de interpretação de texto ao não compreender a ironia feita por Allan ao se referir ao estupro coletivo usando ideologia de gênero e problemas cognitvos ao entender que eu falei sobre ideologia de gênero. Você é livre para discordar dela tanto quanto Allan foi. Inoportuno, porém é usar um fato delicado como um estupro coletivo para se referir à ideologia de maneira jocosa.
      O texto não é sobre ele, aliás, ele é um exemplo de como nossos discursos têm um alcance inesperado, não de que não se deve discutir ideologia de gênero.
      Outra coisa, porque eu discordar do que você pensa é mau-caratismo? Você então é a medida de caráter a ser seguida? Quer propagar discurso de ódio, página errada, amigo! Meu caráter não se mede pela minha adequação aos seus valores. 😉
      Aliás, o que esperar de alguém que se esconde atrás de uma figura de Marshmallow gigante? Piada pronta!

        1. Daniela

          Afe, rs.. processar? Deixa eles gritarem. Algum dia terão que sair dos anos 90 e entender que a lógica de recepção cultural mudou. Os dinossauros acabam sendo extintos anyways.

      1. Stay Puft

        só o fato de vc se achar no direito de monopolizar o que seria um “discurso de ódio” ja demonstra tamanha má fé. Algumas pessoas são conservadoras (eu não), algumas pessoas são religiosas (eu não), e vc vai ter q aturar todas elas, se é que vc realmente é uma democrata… Não vamos mais aceitar este discurso maniqueista de que todos que nao abraçam as 263 pautas progressistas são os vilões da historia. Nós existimos, nós temos nossas proprias opiniões, e não é uma patotinha de metidos a intelectuais graduados q irá nos calar

          1. Stay Puft

            ??

          2. Dr. Housyemberg Amorim

            Aff… Esses incrédulos… Eu preciso acreditar nas teorias conspiratórias para ter “boa fé” e “caráter”? Hum…

  2. JJota

    Só pra não passar em branco, já que falei longamente sobre o assunto no tempo dos atentados ao pessoal do Charlie Hebdo:

    Os direitos de uma pessoa ou grupo são limitados pelos de outras pessoas e grupos.

    É pra isso que existe Ordenamento Jurídico. Nos países democráticos, como o nosso, ele tem como principal função social justamente a regulamentação da liberdade, a fim de que todos possam viver harmonicamente. O Direito democrático não existe para nos tornar todos iguais, mas fazer com que possamos conviver com nossas diferenças, sejam elas de gênero, crença, orientação sexual, opinião, etc.

    “Direito absoluto” é uma ideia que sequer faz sentido, pois tudo que se deseja absoluto, inevitavelmente, entra em confronto com alguma coisa e deve subjugá-lo. Em outras palavras, tornar a liberdade de expressão absoluta é, inevitavelmente, atingir outros direitos tão importantes quanto. Não demoraria para alcançarmos o “objeto irremovível encontra força irresistível”, o que levaria a extinção de todo direito para que todos mais uma vez pudessem se sentir iguais. Igualmente subjugados, é claro.

    Agora, é importante salientar que TODOS tem direitos. Infelizmente, muita gente confunde as coisas e acha que por fazer parte ou se sentir um defensor ou mesmo um porta-voz de um grupo que se encontra ofendido, agredido ou oprimido por outro grupo, está liberado para responder com agressões do mesmo tipo, usando o argumento de que está apenas revidando ás agressões do opressor. Este pensamento, que tenta justificar uma espécie de “lei do mais fraco”, é um dos caminhos que tem nos levado a uma sociedade intolerante, desunida e cada dia mais próxima do caos social.

    E, claro, apenas para que as pessoas não confundam: não estou aqui escrevendo as “tábuas da lei”, apenas dando minha interpretação do assunto e expondo uma opinião. Ambas, tanto a minha interpretação como minha opinião, são pessoais e mutáveis (afinal, continuo estudando e interagindo com as pessoas, o que, inevitavelmente, leva a questionamentos que podem, ou não, alterar ou reforçar minha forma de ver o mundo que me cerca).

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