Iluminamos – Só Deus Sabe (Festival do Rio 2014)

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heaven knows what

Nova York nunca dorme. As ruas são artérias entupidas, contorcendo-se para encher seu velho coração de sangue. Nova York está febril, mas há de sobreviver. Seu espírito reside nos caminhantes anônimos que cruzam a cidade de norte a sul.

Harley é dessas. O coração despedaçado bate forte por alguém que a despreza. Ambos desvalidos, julgam o céu longe demais, e só possuem a calçada como testemunha. A cidade surge atemporal, cinza e fria como sempre, mas saída de um sonho que se desfaz lentamente. Poderiam ser os anos 1970, ou mesmo os anos 1990, não importa. Para os sem-teto retratados no filme, a cruzada pela sobrevivência, pela identidade, não muda.

Harley ama Ilya profundamente. Por dentro e por fora, ele aparenta ser um gigante do gelo, envolto em panos e casacos escuros, cabelos longos e escorridos da mesma cor. De seu amor por ela, só vemos o desprezo, a indiferença, a violência.

O longa nos insere na trama como observadores próximos, como passantes que normalmente ignorariam os sem-teto. Com uma pegada que mistura a ficção a uma espécie de documentário, acompanhamos um recorte da vida dessas pessoas, suas preocupações e vicissitudes.

A plasticidade das cenas é absurda. Numa delas, num hospital em que Harley se recupera, não há diálogos, mas uma trilha sonora sufocante, que preenche os espaços enquanto a câmera, inquieta, acompanha os desentendimentos e vias de fato de Harley e outros pacientes. Tudo isso durante os créditos iniciais. Poderia ser um filme de Larry Clark, não fosse o enfoque mais sentimental e dramatúrgico.

Harley é vivida por Arielle Holmes, de cujas memórias a trama foi adaptada. A carência e dependência que demonstra é determinante para entender não somente a sua voracidade por drogas injetáveis como a necessidade de se entregar a uma relação autodestrutiva com Ilya. Este, por sua vez, é vivido por Caleb Landry Jones, que materializa uma espécie de bárbaro das ruas, em nada lembrando o Banshee de X-Men: Primeira Classe. Ilya é extremamente instável, não parece capaz de demonstrar seus reais sentimentos ou estabelecer relações saudáveis.

Chamado originalmente de Heaven Knows What, o filme é um achado, um estímulo aos sentidos. Um olhar sobre a esperança transformadora que depositamos no amor, que pode ser, na verdade, um simples pedido de socorro.

Rodrigo Sava

Arqueólogo do Impossível em alguma Terra paralela

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