Iluminamos: Primeira temporada de American Gods

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(Contém Spoilers)
Contando com oito episódios, chegou ao fim a primeira temporada de American Gods. A série realmente surpreendeu por conseguir manter um bom nível em todos os episódios: apesar de alguns soarem mais lentos, trata-se de uma obra um tanto confusa e foi necessário dar uma pausa para explicações. A temporada estabeleceu a história e seu ritmo e deu oportunidade para várias análises e apreciações. American Gods não é apenas uma série de ficção, é uma série sobre a história dos Estados Unidos, apresentando uma visão sempre dual sobre política, religião, crenças, tecnologia, preconceitos, sobre a origem daquilo que constitui a existência humana.

Devido às guerras e tensões internacionais, estamos constantemente sob a discussão acerca das migrações. E a série trabalhou muito bem essa questão. Ao contrário do que se diz, que os Estados Unidos foram criados por aqueles que queriam um lugar de liberdade e esperança, o país – em seus primórdios – era o lugar para onde se mandavam os indesejados pela sociedade, da mesma forma como o Brasil foi. Criminosos, fugitivos, prostitutas, e toda a chamada “escória social” eram mandados para cumprir penas na América, em regime de escravidão. Alguns, após cumprirem suas penas, tentavam reconstruir a vida. Foram essas pessoas os pilares dos Estados Unidos, e elas levaram consigo seus deuses e sua fé.

“Deuses são reais se você acredita neles.”. A frase que estampou a propaganda, e que é dita por Mr. Wednesday, coloca o homem como ponto central da criação. Não foram os deuses que criaram os homens, foi o inverso; e são os homens que continuadamente alimentam seus deuses. Wednesday é um deus da velha guarda, da época em que os sacrifícios eram feitos para obtenção de graças, época em que se faziam sacrifícios conscientes, e por isso, ele não aceita os novos deuses e suas as novas formas de adoração. Os novos deuses não querem entrar em guerra com os velhos deuses, eles pregam que há lugar para todos, só é necessário um remanejamento, mas desde que eles estejam acima de todos, é claro.

E é no meio desse clima de tensão que Shadow Moon cai. Ex-presidiário, recém-viúvo, desempregado e sem expectativas, ele se vê sem alternativas, a não ser aceitar ser o capanga do misterioso Wednesday. Mesmo não acreditando no sobrenatural, ou místico, é visível a atração que Shadow tem pelo novo chefe, e quando o impossível começa a acontecer ao seu redor, Shadow começa a acreditar. A crença é o alimento que nutre o divino. Wednesday consegue sua declaração de guerra no último episódio, onde revela sua real identidade para Shadow.

Durante a primeira temporada, somos apresentados a vários deuses, e conhecemos a história de como chegaram aos Estados Unidos, levados por fiéis. Apesar de ser uma rápida apresentação, a chegada dos deuses foi sempre o ponto forte dos episódios, mas devo destacar o episódio dois, que nos apresenta Mr. Nancy, Anansí, um deus africano brincalhão, contador de histórias e conhecido por suas malandragens. Ao ser invocado por um homem que estava sendo levado como escravo, o deus relata a vida dos povos africanos na América, a partir da época dos navios negreiros, e incentiva uma rebelião no navio. O que fica implícito é que a liberdade nem sempre vem da forma que desejamos, e que os deuses nunca respondem às preces do jeito que queremos. Aplausos para a atuação de Orlando Jones nesse papel, pois está excelente!

Outra aparição interessante é a de Jesus, ou melhor, “dos Jesuses”. Cada povo, cada crença em Jesus é diferente. Jesus tem muitas faces, muitas aparições. Nem todos os Jesus morreram na cruz, mas ele sempre está ligado ao dar a vida para salvar os seus. Wednesday não gosta deles, pois a crença em Jesus se tornou forte demais, e prejudicou a crença em outros deuses antigos, incluindo a deusa Ostara, ou Eostre, deusa da primavera, a qual perdeu o foco do equinócio de primavera por conta da ressureição de Cristo. Essa representação de Ostara e Jesus é marcante, pois retrata a repressão à figura feminina, sempre substituída pelo masculino.

Também aparecem Anúbis e Toth, como donos de uma funerária. Gostei muito da representação desses dois deuses, a elegância, serenidade e sabedoria são uma ótima representação dos deuses egípcios, que por vezes são ridicularizados a partir da visão europeia. O Sr. Ibis – Toth – é o narrador das chegadas dos deuses.

Dos eslavos, temos Czernobog, o deus do “mal”, das trevas e da morte. E as Zoryas.

A aparição de Vulcano, que foi criado exclusivamente para a série, mostra os efeitos do patriotismo, do porte de armas e da intolerância. Vulcano, o deus romano do Fogo e da Forja, se adapta, com a ajuda dos novos deuses, e se torna o deus das armas de fogo, assim, cada bala disparada é uma oração para esse deus que se torna muito influente. A ambientação da cidade onde ele vive é de uma população branca, conservadora, e ele tem atitudes racistas com Shadow.

Sem dúvida, a série não teve medo de ousar. Mostrando uma cena de sexo homoafetivo, entre um Jinn e um humano. Muçulmanos. A homossexualidade é um tabu, assim como é para os cristãos no ocidente, é para os muçulmanos no oriente. Em muitos lugares, é considerado crime passível de morte. Mas na série esse lado não é abordado, não há culpa, não há medo, há entrega e paixão. “Você ama o seu deus, ou está apaixonado por ele?”. É necessário dividir os sentimentos, categorizá-los dessa forma? Para eles não.

E também tivemos Bilquis, ligada à fertilidade. Ainda não foi mostrado muito sobre ela, mas suas cenas sempre são marcantes. Uma deusa que devora pessoas por sua vagina. Certamente é a que mais causa estranheza. Mas Bilquis representa a força feminina, é a Rainha de Sabá, a irresistível, a quem todos as pessoas se curvavam. Uma deusa invejada e perseguida pelos homens, que não aceitavam o seu poder. Bilquis é destronada e derrotada pelo machismo, que a fazem esquecer de sua força. Espero que seu desenvolvimento seja tão bom quanto sua apresentação foi.

O Leprachaun Mad Sweeney não é um deus, é um “elemental”. A história de sua chegada à América foi muito bem trabalhada na temporada, e o personagem ganhou espaço entre os preferidos do público, até agora. Grande parte disso é graças à atuação empolgante de Pablo Schreiber. Mad Sweeney acaba se tornando o improvável parceiro de Laura Moon, a esposa morta de Shadow.

Dos deuses da nova guarda, conhecemos Media, interpretada brilhantemente por Gillian Anderson. Media é a deusa da Mídia em todas as suas formas. Dos novos deuses é uma das mais “antigas” e poderosas, além de ser muito inteligente.

Conhecemos também o Technical Boy, deus da tecnologia e internet. Este foi apresentado bem diferente do livro, onde era um garoto gordo e com o rosto cheio de espinhas; na série ele é um “geek”. Gaiman justificou a mudança, dizendo que o novo nerd é assim, e não é mais o do início dos anos 2000, época em que o livro foi lançado.

E, ainda, o Mr. World, dos novos deuses o único cuja origem foi contada, ainda que brevemente. Mr. World era o Mr. Wood, que percebendo as mudanças decorrentes da Revolução Industrial, trocou suas árvores por fábricas. Não fica totalmente claro o que ele representa, mas podemos incluir a globalização e o capitalismo entre as suas aptidões.

Após o fim da primeira temporada, fica mais do que explícito que é extremamente difícil adaptar Neil Gaiman, mas é possível. Muitas críticas negativas em torno da série são resultado da limitação que é lançar em temporadas. Ficaram muitas questões em aberto, muitos assuntos não respondidos. O que vimos até agora é apenas a abertura dos panos. Outros já acharam a série arrastada demais, que se perdeu explicando detalhes bobos. Eu penso que os produtores fizeram o que podiam de melhor, pois precisavam que o público entendesse o mínimo para não desistir, mas não podiam revelar tudo por falta de tempo e pela complexibilidade da obra.

Esperemos agora pelas próximas temporadas, que, creio eu, devem sanar as dúvidas e trazer muitas surpresas. Como o objetivo da obra é inspirar a fé, cabe a mim dar esse passo de fé e confiança, e acreditar que a série manterá um bom nível, assim como manteve na primeira. E você, já assistiu? Se sim, comenta o que achou, e torce pelos novos ou pelos velhos deuses?

“Raiva faz as merdas acontecerem”

Se ainda não assistiu, ofereça já o seu sacrifício para a deusa Media e ao Technical Boy, e maratona! Vale a pena assinar o serviço da Amazon Prime Videos, assistir com qualidade, e ainda contar com a opção de dublado.

 

Tem um texto só sobre a Laura Moon, aqui. Gostando ou não dela, vale a pena ler.

Hypolita Prince

"Nerd" por acaso, e ainda não satisfeita com a denominação. Escrevo sobre feminismo, e outros assuntos que me interessem. Não os desenvolvo tanto quanto gostaria, mas é por preguiça de organizar as ideias nos textos.

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