Iluminamos: Midnight Nation – O Povo da Meia-Noite

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Acordar. Trabalhar. Comer. Dormir. A humanidade na linha de produção.

No horizonte de eventos da civilização, a rotina preenche todos os espaços, para o bem e para o mal. Não raro, seguimos no automático. Sem espaço para pausas, arrependimentos, para revisões e reflexões.

Pode acontecer com todo mundo. Com um operário que dedica décadas de sua força de trabalho a uma fábrica e acaba demitido. Com uma moça que gasta seus melhores anos cuidando da mãe de saúde frágil e egoísta. Com um policial que ignora tudo à sua volta, exceto o dever.

Uma irmandade de anfíbios sempre a um passo da superfície, sem nunca encher os pulmões de ar. Não há espaço para respirar, só o relógio estrangulando os compromissos.

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O detetive David Grey não se permite parar. “O lado bom da Homicídios é que nunca falta serviço”, dizia seu pai. Jovem, sua patente de tenente sinaliza sua dedicação. Um casamento fracassado e a ausência de vida social são parte do preço.

Acaso. Providência. Destino. É fato que o jogo da vida rola seus dados mais cedo ou mais tarde. E rolou para David, fazendo-o parar. Decerto que isso o desestrutura totalmente, mas em troca oferece algo que o policial não sabia mais como encontrar: tempo.

Lançado numa nova realidade, repleta de incertezas, questões e dúvidas, o detetive desperta para si mesmo numa jornada de auto-conhecimento, de memórias duras e de reavaliações. Neste percurso, cada passo o desgastaria, mas também o ajudaria a encontrar uma solução para o que quer que estivesse enterrado em seu coração.

J. Michael Straczynski é o escritor da Graphic Novel Midnight NationO Povo da Meia-Noite, e teoricamente criou David Grey.

Na prática, o detetive é seu alter ego. A criatura é o veículo de inúmeras reflexões de seu criador, e se conecta a um conturbado período de sua vida, no qual buscava uma saída para a dor que sentia.

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Nesse período, realizou longas e solitárias jornadas, através das quais conheceu o que estava por trás da pele da metrópole, toda a população invisível oculta sob a luz do sol, e isso habitou sua mente por longos anos, até transformar-se nas histórias que formam o álbum.

Midnight Nation não é sobre heróis. Não aqueles com poderes, capas e colantes, pelo menos. Não trata apenas da automatização da vida, da falta de espaços, mas de escolhas. De livre-arbítrio, ou da ausência dele. Do que é ou parece irreversível. Do que é possível mudar.

É possível mudar? O livro nos pergunta a todo momento. Somos um trem ingovernável irrefreavelmente correndo na direção de um destino inalterável? A jornada de David Grey é a metáfora de sua existência nesse planeta.

O autor não o põe sozinho nessa estrada. E o faz para que percebamos que isso faz toda a diferença. E assim ensaia uma interessante tese sobre o papel dos relacionamentos presentes e passados na vida de uma pessoa.

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A religião ocupa lugar de destaque nesta obra, seja na apropriação e redesenho de símbolos cristãos, seja na racionalização da origem do universo ou em questionamentos morais e filosóficos envolvendo a condição humana.

Midnight Nation utiliza elementos fantásticos como alegorias para sensações e preocupações bastante humanas, trabalhando os conceitos de forma semelhante ao que fez Neil Gaiman em Sandman, e Grant Morrison em Os Invisíveis, apresentando o real como repleto de elementos mágicos e míticos eventualmente visíveis.

O surgimento da verdadeira e mágica Londres aos olhos iniciados de Jack Frost em Os Invisíveis nos remete ao descortinamento da Nova Iorque infernal a que chega o tenente Grey. E o desespero, motor de Midnight Nation, nos faz sentir a presença dos Perpétuos nas ações e consequências da trama, bem ao estilo de Sandman.

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Além disso, o conceito principal de uma história curta encontrada nos extras do álbum é capaz de nos teletransportar para a biblioteca do Sonhar sem muito esforço, principalmente em razão das ilustrações de Michael Zulli, notável colaborador da saga Despertar, da revista do Mestre dos Sonhos.

E, por falar em ilustrações, não há como passar incólume pelos vistosos traços de Gary Frank, que desenha toda a trama. Dono de um estilo detalhado e realista, o artista preencheu as páginas com rara beleza, mesmo nos momentos em que o foco não era a ação, mas a sutileza de emoções enterradas nos semblantes cansados de sobreviventes reunidos em torno do fogo.

Engaje-se na jornada que a HQ propõe. Pare um instante. Permita-se duas horas numa poltrona, e descubra os mistérios que rondam O Povo da Meia-Noite. Entregue-se à reflexão que a obra apresenta, e decida-se pelo desespero ou esperança. Pela dor e pelo amor. Morrer ou nascer.

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Rodrigo Sava

Arqueólogo do Impossível em alguma Terra paralela

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