Literatos: Canhões de Agosto, de Barbara Tuchman

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"Tão perto os alemães estiveram da vitória, tão perto os franceses da derrota, tão grande, nos dias anteriores, era o perplexo desânimo do mundo ao observar o avanço implacável dos alemães e a retirada dos franceses para Paris, que a batalha que reverteu a situação veio a ser conhecida como O Milagre do Marne. Henri Bergson, que certa vez formulara pra França a mística da 'vontade', viu nisso algo de milagroso que já acontecera uma vez antes: 'Joana d'Arc venceu a batalha do Marne' foi o seu veredito."

Um dos mais bem escritos livros sobre a Primeira Guerra Mundial.

Quando eu era estudante, tive um professor de História cujas aulas eram aguardadas ansiosamente até pelos alunos que não eram chegados em sua matéria. Sua aula não era participativa, de modo algum. Acho até que o incomodava quando algum aluno fazia uma pergunta. Gostava de falar, tanto que se percebia a pressa com que ele fazia a chamada no início, ávido para começar a sua “palestra”. E, por cinquenta minutos, falava sem parar, com pausas apenas para tomar fôlego ou para rabiscar uma ou outra palavra ou data no quadro. Seu diferencial? Não parecia aula, era quase como se um comediante fazendo stand up. Sem deixar de fora um único dado interessante sobre o assunto da aula, recheava esta com diversos “causos” e curiosidades sobre a época e as pessoas relacionadas ao assunto. Sua descrição de como era Lisboa em 1500 – principalmente na questão higiênica – e seus diversos causos sobre a família real portuguesa em 1808 até hoje são lembrados por ex-colegas de turma quando os encontro.

Barbara Tuchman (1912 - 1989), historiadora autodidata, venceu dois Prêmios Pulitzer, um com Canhões de Agosto e outro com Stilwell and the American Experience in China, 1911-45, de 1972.
Barbara Tuchman (1912 – 1989), historiadora autodidata, venceu dois Prêmios Pulitzer, um com Canhões de Agosto e outro com Stilwell and the American Experience in China, 1911-45, de 1972.

Assim faz Barbara Tuchman em Canhões de Agosto (The Guns of August), sua obra de 1962 acerca da Primeira Guerra Mundial. Fruto de extensa e cuidadosa pesquisa, a obra traz os antecedentes, os planos e o primeiro mês de combate no conflito europeu. Acima de tudo, é um livro sobre os homens que tiveram papel atuante neste período. Mais do que uma simples análise dos seus atos, ela investiga suas opiniões, vontades e personalidades, colocando essas informações de forma tão hábil que, em algumas passagens, precisamos nos lembrar de que não estamos diante de um romance.

"Embora as deficiências do Exército Russo fossem notórias, embora o inverno russo, e não o exército russo, tivesse afastado Napoleão de Moscou, embora os russos tivessem sido derrotados em seu próprio solo pelos franceses e ingleses na Criméia, embora em 1877 os turcos os tivessem vencido no cerco de Plevna, só sumcumbindo, mais tarde, ante uma maioria esmagadora de russos, embora os japoneses os tivessem derrotado na Manchúria, o mito de sua invencibilidade perdurava."
“Embora as deficiências do Exército Russo fossem notórias, embora o inverno russo, e não o exército russo, tivesse afastado Napoleão de Moscou, embora os russos tivessem sido derrotados em seu próprio solo pelos franceses e ingleses na Criméia, embora em 1877 os turcos os tivessem vencido no cerco de Plevna, só sumcumbindo, mais tarde, ante uma maioria esmagadora de russos, embora os japoneses os tivessem derrotado na Manchúria, o mito de sua invencibilidade perdurava.”

Barbara investiga não apenas os antecedentes próximos como os mais distantes, indo até a Guerra Franco-Prussiana para mostrar como a mentalidade revanchista francesa tornou certo um novo conflito com a Alemanha. Ela vai aos poucos mostrando como os gauleses, então, fizeram seus movimentos no sentido de não apenas preparar seu povo para o acontecimento mas também para atrair o maior número de aliados possível para o seu lado. Entre eles, principalmente a Inglaterra, maior potência militar naval do globo até aquele momento, e a Rússia, não apenas dona de um exército colossal em número de soldados como estrategicamente posicionada para forçar a Alemanha a uma guerra em duas frentes.

"Face a face com a realidade, e não mais com o fantasma, de uma guerra em duas frentes, o Kaiser estava tão perto do estado de espírito de 'um gato doente' quanto ele achava que os russos estavam. Mais cosmopolita e mais tímido que o prussiano títpico, ele na realidade nunca quisera uma guerra generalizada. Queria mais poder, mais prestígio, e acima de tudo mais autoridade para a Alemanha nas questões mundiais, mas preferia obtê-las intimidando, e não combatendo, os outros países. Queria as recompensas do gladiador mas não a luta, e, sempre que a perspectiva de guerra chegava perto demais, como em Algeciras e Agadir, ele recuava."
“Face a face com a realidade, e não mais com o fantasma, de uma guerra em duas frentes, o Kaiser estava tão perto do estado de espírito de ‘um gato doente’ quanto ele achava que os russos estavam. Mais cosmopolita e mais tímido que o prussiano títpico, ele na realidade nunca quisera uma guerra generalizada. Queria mais poder, mais prestígio, e acima de tudo mais autoridade para a Alemanha nas questões mundiais, mas preferia obtê-las intimidando, e não combatendo, os outros países. Queria as recompensas do gladiador mas não a luta, e, sempre que a perspectiva de guerra chegava perto demais, como em Algeciras e Agadir, ele recuava.”

 Ela gasta páginas e mais páginas não apenas expondo, mas analisando os planos de ação que cada país tinha desenvolvido (ou não), apontando suas falhas e o quanto desvios de personalidade idiotas – como arrogância – se sobrepuseram sobre o bom senso e a inteligência. Suas descrições de personagens são sempre precisas e cheias de complementos interessantes: o desejo de reconhecimento descabido do Kaiser Guilherme I (“Queria a aclamação dos parisienses e ganhar o Grand Cordon da Legião de Honra, e por duas vezes fez com que os franceses soubessem desse desejo imperial; jamais recebeu um convite”); o mau humor de Clemenceau (“Não, não contem comigo – declarou. – Em 15 dias vocês estarão feitos em pedaços, e não quero ter nada a ver com isso.”); o desacordo da aparência com as atitudes do comandante das Forças da Tríplice Entente, Joseph Joffre (“…parecia com Papai Noel e dava a impressão de benevolência e ingenuidade – duas qualidades que não se percebiam em sua personalidade”); a covardia de Sir John French, comandante de campo das forças britânicas no continente (“Usando como justificativa a ordem de Kitchener de não arriscar o Exército, ele não pensou mais no propósito que o levara à França, mas apenas em retirar suas forças da zona de perigo”) e o completo despreparo do Czar,  Nicolau II (“O regime era governado do topo por um soberano que tinha uma única ideia de governo – preservar intacta a monarquia absoluta herdada do pai – e que, carecendo de intelecto, energia ou preparação para seu trabalho, recorria a favoritismos pessoais, caprichos, simples teimosia e outros artifícios de um autocrata de cabeça vazia.”).

"Quando um oficial alemão, prevendo a mudança para uma longa guerra de atrito, apresentou a Moltke um memorando sobre a necessidade de um Estado-maior Econômico, Moltke respondeu: - Não me perturbe com economia, estou muito ocupado dirigindo uma guerra."
“Quando um oficial alemão, prevendo a mudança para uma longa guerra de atrito, apresentou a Moltke um memorando sobre a necessidade de um Estado-maior Econômico, Moltke respondeu:
– Não me perturbe com economia, estou muito ocupado dirigindo uma guerra.”

Não raro vemos o pouco caso com que autoridades tratavam a possibilidade de uma guerra para depois se comportarem assustadamente quando a mesma fica eminente. A leviandade desmedida dos Estados Maiores, completamente desconectados das necessidades e da vontade do povo. O despreparo absurdo de algumas nações cheias de vontade, porém carentes de organização. O impacto terrível quando tropas treinadas nas táticas antigas são lançadas ao combate contra os modernos armamentos desenvolvidos no começo do século.

"A Inglaterra fora o único entre os países beligerantes a entrar na guerra sem uma estrutura preestabelecida de esforço nacional, sem ordens de mobilização em todos os bolsos. À exceção do Exército Regular, tudo era improvisado e, durante as primeiras semanas - antes do despacho de Amiens - o ambiente era quase festivo. Até então, a verdade do avanço alemão fora oculta pela 'reticência patriótica', para usar a esplêndida expressão do Sr. Asquith. A luta fora apresentada ao público inglês - assim como ao francês - como uma série de derrotas alemãs nas quais o inimigo inexplicavelmente passou da Bélgica para a França e cada dia aparecia no mapa em posições mais avançadas."
“A Inglaterra fora o único entre os países beligerantes a entrar na guerra sem uma estrutura preestabelecida de esforço nacional, sem ordens de mobilização em todos os bolsos. À exceção do Exército Regular, tudo era improvisado e, durante as primeiras semanas – antes do despacho de Amiens – o ambiente era quase festivo. Até então, a verdade do avanço alemão fora oculta pela ‘reticência patriótica’, para usar a esplêndida expressão do Sr. Asquith. A luta fora apresentada ao público inglês – assim como ao francês – como uma série de derrotas alemãs nas quais o inimigo inexplicavelmente passou da Bélgica para a França e cada dia aparecia no mapa em posições mais avançadas.”

Barbara tem um texto crítico, mas nunca ácido. Apesar de sempre manifestar sua opinião com bom humor, é implacável e não deixa passar absolutamente nada, sempre calcando sua opinião em uma farta citação de documentos oficiais e livros da época, de maneira agradável. Ela se concentra nos primeiros trinta dias de combate porque crê que estes foram os decisivos no tocante a falência de todos os planos – e sonhos? – militares, que levaram a guerra que deveria ser decidida em uma única batalha decisiva a se tornar um conflito longo e terrivelmente sangrento, consumindo vidas a uma taxa jamais imaginada antes.

"Tão perto os alemães estiveram da vitória, tão perto os franceses da derrota, tão grande, nos dias anteriores, era o perplexo desânimo do mundo ao observar o avanço implacável dos alemães e a retirada dos franceses para Paris, que a batalha que reverteu a situação veio a ser conhecida como O Milagre do Marne. Henri Bergson, que certa vez formulara pra França a mística da 'vontade', viu nisso algo de milagroso que já acontecera uma vez antes: 'Joana d'Arc venceu a batalha do Marne' foi o seu veredito."
“Tão perto os alemães estiveram da vitória, tão perto os franceses da derrota, tão grande, nos dias anteriores, era o perplexo desânimo do mundo ao observar o avanço implacável dos alemães e a retirada dos franceses para Paris, que a batalha que reverteu a situação veio a ser conhecida como O Milagre do Marne. Henri Bergson, que certa vez formulara pra França a mística da ‘vontade’, viu nisso algo de milagroso que já acontecera uma vez antes: ‘Joana d’Arc venceu a batalha do Marne’ foi o seu veredito.”

De longe, o melhor livro sobre a Primeira Guerra Mundial que já li. Não por acaso, ganhou o Prêmio Pulitzer de 1963. Altamente recomendado.

Canhões de Agosto. Autora: Barbara W. Tuchman. tradução: Eliana Sabino. Editora Objetiva, 2ª Edição, 1994, 512 páginas. Pode ser encontrada em sebos, com preços variando entre R$ 10,00 e R$ 20,00.
Canhões de Agosto. Autora: Barbara W. Tuchman. tradução: Eliana Sabino. Editora Objetiva, 2ª Edição, 1994, 512 páginas. Pode ser encontrada em sebos, com preços variando entre R$ 10,00 e R$ 20,00.

 

JJota

Já foi o espírito vivo dos anos 80 e, como tal, quase pereceu nos anos 90. Salvo - graças, principalmente, ao Selo Vertigo -, descobriu nos últimos anos que a única forma de se manter fã de quadrinhos é desenvolvendo uma cronologia própria, sem heróis superiores ou corporações idiotas.

Este post tem 4 comentários

  1. Jair Taylor

    Belíssimo livro. Da mesma autora, recomendo a Torre de Orgulho, editorial Íbis, que se concentra nos anos imediatamente anteriores à guerra.

  2. Hamilton Carvalho

    O melhor classico sobre o tema. Vital para minha tese de doutorado em história, que ver sou sobre a I Guerra Mundial.

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