Iluminamos: Ano Um

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Uma história de origem que… Bom, não é exatamente uma história de origem.

Entre 1985 e 1986, a DC Comics publicou Crise nas Infinitas Terras, um mega-evento que tinha dois objetivos principais. O segundo foi facilmente alcançado: o conceito de Multiverso foi descartado e todos os personagens que interessavam a editora passaram a coexistir em um único universo. Já o objetivo primeiro, consertar a confusa cronologia decenauta, mostrou-se tão complicado que se optou por reiniciar as coisas do zero. Uma nova cronologia para um novo – e coeso – Universo DC.

A editora aproveitou a deixa para remodelar a maioria dos seus personagens, focando principalmente na sua Trindade. E investiu alto. John Byrne, desenhista e roteirista anglo-canadense em grande parte responsável pelo sucesso estrondoso dos X-Men na virada dos anos 70 pros 80 e pelo retorno às paradas do Quarteto Fantástico, aceitou reescrever a origem do Superman. George Pérez, maior astro entre os desenhistas da DC na época, autor do lápis das duas séries de maior sucesso da editora nos últimos anos – Novos Titãs e a já apontada Crise nas Infinitas Terras -, assumiu a tarefa de atualizar a Mulher-Maravilha. Já a missão de recontar a origem do Batman caiu nas mãos de Frank Miller, quadrinista que, naquela época, parecia deter o toque de Midas, tendo trabalhado em diversos títulos de sucesso como Demolidor, Wolverine e, claro, O Cavaleiro das Trevas.

Frank Miller
Frank Miller

Miller, que alguns anos atrás já tinha tentado vender a ideia de uma nova cronologia para o Batman, assumiu a empreitada, mas, diferente dos dois outros artistas citados, preferiu passar adiante a responsabilidade pelos desenhos, que ficou com David Mazzucchelli, com quem Frank trabalhara no arco A Queda de Murdock, da revista do Demolidor.

A história, dividida em quatro partes e publicada – entre fevereiro e maio de 1987 – nos números 404 a 407 da revista Batman, chamou atenção por deixar claro que o foco não estaria em Bruce Wayne. Miller deu atenção zero ao treinamento deste e mesmo o assassinato de seus pais ocupa uma mera página na história. Fica claro que o roteirista não dissocia Ano Um de O Cavaleiro das Trevas: o que tinha pra ser contado da infância de Bruce foi feito na série anterior.

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O Wayne no início de Ano Um é um homem com um fim, mas ainda indeciso em relação ao caminho a trilhar. Os anos de treinamento e estudo o prepararam, mas também esgotaram a sua paciência. Tentando controlar a sua ansiedade, ele faz uma pequena missão de reconhecimento em uma zona de alta criminalidade, usando um disfarce simplório. Quando a investida quase termina em tragédia, ele percebe que falta algo, algo que provoque receio nas pessoas, que o torne, tanto aos olhos daqueles que pretende combater como àqueles que pensa em proteger, mais do que humano. As três últimas páginas da primeira parte, onde Bruce “dialoga” com seu pai e resolve se tornar um morcego são tão fantásticas que, sinceramente, são suficientes para tornar impossível para mim sequer comparar Ano Um com bobagens como o Batman Terra Um de Geoff Johns ou o Batman Ano Zero de Scott Snyder.

“Sim, pai, eu tenho tudo… Menos paciência. Prefiro morrer… A esperar… Mais outra hora. Já esperei… Dezoito anos… Dezoito anos desde… Desde Zorro… A Marca do Zorro. Desde aquela caminhada à noite. Desde o homem com olhar vazio e assustado… De voz áspera como vidro partindo… Desde que minha vida perdeu o sentido.”    – Bruce Wayne

Na minha opinião, há críticas equivocadas que são tão repetidas por pessoas que tiveram um contato apenas superficial – ou não tiveram nenhum – com algumas obras que, com o tempo, soam como verdade para alguns que ainda não tiveram oportunidade de tecer as suas próprias opiniões. Sempre se fala que Miller fez o Batman infalível que alguns dizem achar insuportável. Bom, nem vou me deter no quanto considero que O Cavaleiro das Trevas retrata a humanidade do personagem. Prefiro salientar o quanto ele está humano aqui, no início da sua carreira.

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Em Ano Um, temos um Batman inexperiente e consciente de suas deficiências. Ao atacar no início a chamada “arraia miúda”, ele comete erros e aprende com eles, enquanto testa seu uniforme, seu arsenal e sua capacidade física, estuda seus inimigos e seleciona seus potenciais aliados. Seu alvo, claro, é o sistema corrupto que controla Gotham.

Tanto quanto uma história do Batman – talvez até mais -, Ano Um é uma história do tenente James Gordon e do seu primeiro ano na cidade de Gotham. Gordon é um herói falho, por demais humano. De saída, é insinuado que há algo de sujo em sua passagem pela polícia de Chicago, algo tão sério que chamou a atenção do corrupto Loeb, comissário de polícia de Gotham. Jim, no entanto, está disposto a ser honesto e não demora a ganhar destaque na imprensa por seu comportamento. No entanto, como uma forma de realçar o caráter… eu não diria falho, mas humano do personagem, Miller exibe sem dó o seu outro lado, um homem obcecado pelo trabalho, ausente de casa e adúltero, mesmo tendo a esposa grávida de seu primeiro filho.  A relação entre o ilegal, mas profundamente moralista, vigilante e o legal, mas com atitudes imorais, policial foi melhor explorada pelo Iluminerd Zé Messias em  Batman – O Anti-herói Universal, parte 1, publicado durante a Semana Batman.

“Neste momento, eu devia estar falando com ela, pedindo perdão… Por causa do bebê em sua barriga e pela maneira como estou pensando em Essen. Sim… Eu devo chamá-la de Essen. Esquecer seu corpo, sua pele… Seus lábios. Bárbara. Eu devia falar com ela. Não podia estar pensando na sargento… Nem no Batman. Ele é um criminoso. Eu sou um policial. Mas… Mas estou numa cidade onde o prefeito e o comissário usam guardas como assassinos contratados. Batman salvou aquela velha. Ele salvou aquele gato. Até pagou o terno. A peça metálica em minha mão está mais pesada do que nunca…” – James Gordon

A dose de polêmica fica por conta da introdução da Mulher-Gato, apresentada como uma prostituta, aparentemente especializada em masoquismo. Também podemos ver um jovem Harvey Dent atuando como o primeiro aliado do Homem-Morcego, ainda antes de Gordon.

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David Mazzucchelli fica à altura do trabalho. Ao contrário do que tinha feito durante a sua passagem pelo Demolidor, ele adota um traço mais simples, sem tanto detalhamento de músculos, roupas ou cenários, optando por um uso mais pronunciado de claro-escuro, realçando o clima noir que já se faz presente com o texto. As referências fotográficas ajudam muito. Não faria feio em uma edição em preto e branco, mas a colorização de Richmond Lewis – esposa de Mazzucchelli – consegue melhorar a arte.

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Em 2011, esta história – tantas vezes cogitada como base para um longa em live action, tendo tido inclusive o próprio Miller e o diretor Darren Aronofsky à frente de um projeto com este título por um curto período – foi adaptada para um longa animado. A falta da narração em off e a arte muito “clara” causam um estranhamento, mas não tiram a essência, sendo um bom projeto.

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Enfim, uma história de origem que “esquece” detalhes desnecessários e foca em decisão, adaptação e impacto, e tranforma a própria cidade em personagem da história.

Recentemente, a Panini relançou a Edição Definitiva desta história, que nada mais é do que a mesma publicação já feita em capa cartonada pela própria editora – no número 3 da coleção Grandes Clássicos DC – com extras do desenhista. No entanto, o preço está em conta (e pode ser encontrado com descontos convidativos em alguns sites) e vale a pena. Eu, particularmente, comprei (mesmo tendo a última publicação desta história pela Abril e a já citada publicação em capa cartonada).

Ano Um. Roteiro de Frank Miller. Arte de David Mazzuchelli, com cores de Richmond Lewis. Editora original: DC Comics. Editora no Brasil: Panini. Capa dura, 148 páginas, R$ 37,00.
Ano Um. Roteiro de Frank Miller. Arte de David Mazzuchelli, com cores de Richmond Lewis. Editora original: DC Comics. Editora no Brasil: Panini. Capa dura, 148 páginas, R$ 37,00.

JJota

Já foi o espírito vivo dos anos 80 e, como tal, quase pereceu nos anos 90. Salvo - graças, principalmente, ao Selo Vertigo -, descobriu nos últimos anos que a única forma de se manter fã de quadrinhos é desenvolvendo uma cronologia própria, sem heróis superiores ou corporações idiotas.

Este post tem 3 comentários

  1. toddy

    Cara, fui comprar essa revista na Saraiva e esta custando 70 dilmas! AI não dá

    1. JJota

      Que loucura, Toddy. Isso deve ter sido antes do relançamento pela Panini. Eu comprei na Saraiva por R$ 22,00 (preço que, acabei de olhar, se mantém). Se foi por causa do frete, a Saraiva faz frete grátis nas compras a partir de R$ 65,00. Sendo assim, junte mais alguns títulos – e existem muitos títulos com descontos interessantes e bem legais – inclusive alguns bons livros -, e manda ver, porque esta edição vale (embora, reforço, não tenha nada demais sobre a edição de capa cartonada que, com sorte, talvez você encontre em alguns sebos). Outra opção é comprar pelo site e retirar em uma filial da Saraiva que exista perto de você. Neste caso, o frete também não é cobrado.

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