Iluminamos: A Queda de Murdock

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Grande parte do sucesso de Frank Miller nos anos 80 deveu-se ao fato dele ser um dos artistas que melhor desenvolveu a ideia de humanização dos super-heróis dentro da concepção de Stan Lee.

Se Lee mostrou, principalmente com o Homem-Aranha, que ter poderes não necessariamente afasta os pequenos problemas do dia-a-dia, Miller foi além e mostrou que ter poderes, às vezes, traz problemas ainda maiores.

Frank Miller começou sua caminhada rumo ao estrelato desenhando e, posteriormente, também roteirizando o título Daredevil. Depois disso foi pra DC e criou obras extraordinárias como Ronin, O Cavaleiro das Trevas e Batman Ano Um

Em sua primeira passagem pelo título Daredevil, ele não hesitou em colocar o personagem principal em diversas enrascadas. Ser o Demolidor era uma tarefa que custava muito caro ao advogado Matt Murdock, causando-lhe danos profissionais, físicos, psicológicos e sentimentais.

Além disso, Frank trazia seus leitores para um mundo mais próximo do real. Enquanto o Quarteto Fantástico desbravava dimensões desconhecidas, Thor lutava com Surtur e os Vingadores debelavam mais um plano de Ultron para destruir a humanidade, o Demônio Ousado chafurdava na lama fétida da guerra urbana de New York, combatendo a escória miúda demais para chamar a atenção dos medalhões do Universo Marvel: traficantes, exploradores de jogos de azar, sequestradores, cafetões, assassinos…

Esta abordagem transformou um título bimestral à beira do cancelamento em uma das maiores vendagens da Marvel na época, rivalizando com os X-Men da dupla Claremont – Byrne.

Em fins de 1985, Frank Miller retornou ao título (depois de ter escrito uma história fechada no número 219 – desenhos de John Conan Buscema – e ter colaborado com Denny O’Neill no roteiro da edição 226) para provar que não só ainda tinha uma história pra contar com o Demolidor como havia guardado o melhor para aquele momento. E exigiu que o desenhista David Mazzuchelli, que vinha desenvolvendo seu traço a cada edição, fosse mantido no título.

David Mazzuchelli teve em Daredevil seu primeiro trabalho regular na Marvel, tendo estreado com uma história escrita simplesmente por Harlan Ellison (autor de terror e ficção científica que trabalhou também como roteirista na Marvel e em séries de TV – Star Trek, Babylon V – e é citado em uma determinada passagem da HQ O Cavaleiro das Trevas). Com o tempo, foi simplificando seu traço e tornando-se ainda mais talentoso. Frank Miller não só exigiu que David desenhasse as histórias que ele iria escrever como estendeu esta parceria quando reescreveu a origem do Batman para o novo e coeso Universo DC (Multiverso é o caralho!) em Ano Um.

A história, publicada nos números 227-233 de Daredevil, era Born Again, conhecida em nosso amado Brasil-sil-sil como A Queda de Murdock.

Tudo começa com Karen Page – ex-secretária da Nelson & Murdock Advogados, ex-namorada de Matt, ex-estrela de Hollywood e, naquele momento, uma atriz de filmes pornográficos viciada em heroína – vendendo a identidade secreta do herói em troca de um pico. Tal informação chega ao conhecimento de Wilson Fisk, o Rei do Crime e, seis meses depois, Matt, que havia acabado de ver sua sociedade com Foggy Nelson ruir, descobre que suas contas não foram pagas, seu dinheiro está bloqueado, seus cartões de crédito foram cancelados e sua licença para advogar foi suspensa. Além disso, seu namoro com Glori O’Breen foi pro buraco. Tudo isso nas oito primeiras páginas! E só ao fim da primeira parte ele, ao ter seu lar destruído, percebe finalmente quem o está perseguindo.

“Eu jamais teria feito a relação com a palavra ‘gângster’ … até agora. Foi uma verdadeira obra-prima, Rei. Não deveria ter assinado.”

Durante três edições inteiras acompanhamos a derrocada dele, sendo ela material, moral e psicológica. O rápido combate direto entre ele e o Rei é um deleite para este, que se contém ao máximo para não “desmembrar Murdock”. Em vez disso, ordena que ele seja executado de forma que tudo pareça um acidente e, além disso, ele seja acusado de assassinato.

“Talvez eu o contrate… o que restar dele… depois que ele aprender o quanto é impotente. Seus talentos seriam valiosos… e sua honra, um resíduo inútil.”

Murdock escapa. E vagueia atordoado pelas ruas, perdido, louco, desconfiando de tudo e todos. Até que, às portas da morte, um autêntico milagre o salva e ele desaparece.

“N-Não me rendo… Nunca!”

Incomodado, Fisk procura-o ansiosamente – chega ao ponto de tentar eliminar Foggy Nelson e Glori O’Breen – e dá uma cartada desesperada: cobrando favores junto às Forças Armadas americanas, solta na Cozinha do Inferno o Bazuca, uma tentativa frustrada de criar um novo super-soldado. Isso não só traz o Demolidor de volta à cena – último quadro da sexta parte – como dá a deixa para a participação do Capitão América.

“Agora eu sou só um cego… Um cego que perdeu o emprego, o sustento, o lar, a namorada… A quem o destino deu o dom de ouvir, cheirar e tatear melhor do que ninguém… O que me permite apreciar melhor o horror de estar vivo.”

Ao mesmo tempo somos agraciados com algumas tramas paralelas, onde é mostrado o poder do crime, organizado ou não, sobre a cidade. Karen Page, marcada para morrer, tentando encontrar Murdock para que este a salve (as cenas que o mostram cuidando de Page enquanto sofre de terríveis crises de abstinência é simples e emocionante). Foggy se envolvendo relutantemente com Glori, enquanto esta começa uma nova carreira como fotojornalista. Ben Urich, repórter do Clarim Diário, investigando, sob ameaça, a verdade por trás das desventuras que estavam acontecendo com seu amigo mascarado. Tramas que se desenvolvem bem e se cruzam no momento oportuno, em uma verdadeira aula de narrativa.

“O senhor treinou aqui. Treinou e me fez prometer que eu ficaria longe. Mas eu menti e vim pra cá desobedecendo duas ordens. Eu me tornei um lutador como o senhor. Infindáveis horas perdidas nas cordas. No saco. No saco. Ante o túmulo da mamãe o senhor me fez jurar. A única alegria que tive, não partilhei com ninguém. Agora tudo mais em mim está morto. Apenas o lutador sobrevive. Apenas o lutador…”

Os autores pretendiam retratar o preço de ser um herói. Miller é claro ao apontar que, antes mesmo da investida do Rei, Matt já se encontrava à beira de um colapso devido ao stress provocado tanto pela sua vida dupla como pela dificuldade de viver com sentidos ampliados. É sintomática a cena em que ele fala com um telefone mudo como se estivesse dialogando com Foggy e este o incentivasse a ir até o escritório de Fisk. Os recordatórios brilhantes do roteirista passam toda a perturbação mental que o personagem sofre, vendo inimigos por toda parte e raciocinando de maneira estúpida, quebrada.

“Não há cadáver.”

Mazzuchelli (hoje, infelizmente, mais voltado para o mercado de ilustrações) criou quadros espetaculares. Uma das coisas que chama a atenção são as primeiras páginas inteiras de cada edição, em seqüência: Matt deitado na cama de sua casa, Matt deitado na cama de um hotel de quinta categoria, Matt deitado no chão de um beco imundo, Matt deitado na cama de um hospital, Matt, finalmente de pé e recuperando suas forças, Matt ajoelhado na cama do seu esconderijo ajudando Karen Page a superar uma crise provocada por falta de drogas e, por fim, naquela que deveria ser a cena inicial da última edição, mas saiu na última página da sexta parte, o Demolidor surgindo entre as chamas de um incêndio, forte, poderoso, destemido.

“Não é como ter você ao lado, Matt. Não mesmo. Saber que você está vivo… ajudaria muito.”

Também temos diversas outras cenas que se tornaram clássicas, como Murdock segurando os restos de seu uniforme entre os escombros de sua casa, o olhar de determinação dele ao acordar em sua armadilha aquática, a reação do Rei ao descobrir que seu corpo não foi encontrado, a reação de Urich ao ouvir pelo telefone, em plena redação do Clarim Diário, um homem sendo sufocado até a morte… Destaco a cena em que, com quadros escuros e praticamente apenas com diálogos, Miller descreve as primeiras reações do jovem Matt ao tomar contato com sua situação depois do acidente que lhe conferiu habilidades sobre-humanas e o deixou cego para o resto da vida.

“Meu patrão gostaria que ouvisse isto, Sr. Urich.”

Apesar do título em português, esta é uma história de superação e renascimento. Despojado de tudo, Matt redescobre os valores de sua missão, assume suas dificuldades e sai de tudo fortalecido. O Rei, que nunca vira no Demolidor mais do que um mero incômodo, vai aos poucos mudando de opinião, ao ponto de cometer o desatino de trazer a guerra para um bairro de New York. Mais uma vez calmo e ponderado, Murdock aguarda, provoca e, finalmente, consegue expor Fisk de uma forma antes apenas sonhada.

O Herói ressurge!

Nos dias de hoje, em que heróis são infantilizados ou idiotizados, conceitos importantes são tratados com desdém (você não tinha a sensação de que, antes do pacto com Mefisto, a metade dos personagens do Universo Marvel já sabia a identidade secreta do Peter Parker?), esta história resgata o respeito, a dignidade e a inspiração que os super-heróis deveriam ter sempre como a forma de expressão madura que ela demorou décadas para se tornar.

DEMOLIDOR: A QUEDA DE MURDOCK – Roteiro de Frank Miller – Arte de David Mazzuchelli – Editora original: Marvel Comics – Editora nacional: Panini (última publicação no Brasil) – 2010 – 220 páginas – R$ 59,00 –

JJota

Já foi o espírito vivo dos anos 80 e, como tal, quase pereceu nos anos 90. Salvo - graças, principalmente, ao Selo Vertigo -, descobriu nos últimos anos que a única forma de se manter fã de quadrinhos é desenvolvendo uma cronologia própria, sem heróis superiores ou corporações idiotas.

Este post tem 35 comentários

  1. Rosinha

    Um post feito com esmero, dedicação e, principalmente, com carinho pelo assunto.

    É possível observar através do texto toda a paixão do JJota por esta história e a sua admiração pelo antigo Frank Miller.

    Parabéns.

    1. JJota

      Obrigado, Rosinha.

      E é verdade, tenho verdadeira adoração por esta HQ, até por ela representar duas coisas: um tempo em que as edições mensais continham grandes arcos (hoje qualquer história mais ou menos vira logo edição especial ou minissérie) e um momento em que os herói amadureciam e suas HQs se tornavam um meio respeitável de se contar boas histórias.

      E Miller, com certeza, foi o cara que me fez ser leito de HQs.

      1. Estaríamos presenciando a Queda de Miller?

        Ele renascerá para grandes histórias no futuro?

        Quem é o Rei do Crime que está tramando tal queda a esse (uma vez) tão grande escritor?

  2. Renver

    Essa HQ é um clássico absoluto!!!

    A cena que abre o post é muito comovente!!!!

    1. JJota

      Essa é uma das coisas mais incríveis que a história aborda, na minha opinião. Quando Karen encontra Matt, ele não a recrimina, não a agride, não reclama… Ele estende a mão e oferece apoio e amor a ela, incondicional, ajudando-a nas difíceis crises de abstinência. Quando ela chora e pede perdão por ter feito ele perder tudo, ele simplesmente responde, rindo: “Não perdi nada!”

  3. Churrumino

    Essa HQ tá na minha lista de compras junto com Os Supremos e Watchmen, mas no momento estou pRobe. Tenho que aguardar um pouco pra comprar. Bom post JJota!

    1. JJota

      Valeu, Churrumino. E não a tire nunca da sua lista! Esta história, tanto pelo texto como pela arte vale, sim, muito a pena!

  4. Inacreditavel_Neo

    Legal você lembrar que a história trata justamente de renascimento, como o título original propõe. O Demolidor sempre foi um homem que, apesar de todas as perdas que já sofreu, sempre conseguiu seguir em frente.

    Outra coisa: acho fantástica a forma como Miller apresentou o Capitão América, talvez uma das melhores aparições do personagem.

    “Um SOLDADO cuja voz poderia comandar um Deus… e COMANDA.”

    1. JJota

      Cara, eu acho muito foda também a forma como o Capitão América atua.

  5. Renato Domingues

    Confesso que nunca tive um grande contato com o cegueta e nunca tive a oportunidade de ler este título, ainda que todos falem muito bem do mesmo. Sim, sou um verme.

    Mas depois de ler este post, vou ver se consigo cofrar ou importar.

  6. Bigby Wolf

    Demolidor tá na minha lista pessoal de melhores super-heróis, e essa história diz o porque.

    Quantas pessoas seriam capazes de todo esse auto-sacrifício para poder ajudar a quem precisa, e ainda por cima é capaz de seguir em frente com a vida? E é em tempos de reboots e de “Vingadores vs. X-Men” que nós podemos ver o quão fantástica é essa história.

    Ótimo texto, JJota.

    1. JJota

      Era outra coisa foda neste tempo: heróis enfrentavam vilões. Ponto.

  7. Vintersorg

    Muito foda.
    Tenho essa hq em formatinho pela abril. Marquei bobeira quando a panini republicou em encadernado de luxo e não comprei. Agora é quase impossível encontrar.
    Ótimo poste, double J.

    1. JJota

      Valeu, Sorg.

      A Abril também lançou essa mini em quatro edições, acho que em 2000. Deve ser até fácil de encontrar (nas bancas de Fortaleza, quase certo de ter). Difícil, por aqui, é encontrar O Homem Sem Medo. Apesar de não ser mesmo uma boa história, tem a arte do Romitinha no auge.

      1. Vintersorg

        Homem sem medo eu tenho a mini série da abril em 5 edições com a capa da 1º com um efeito metalizado vermelho. Aliás, foi essa mini que me fez ser fã do DD e do Romitinha.
        Não acho a Queda de jeito nenhum por aqui.
        Se achar por ai, me avisa que te mando a grana pra tu comprar pra mim.

        Em 14 de novembro de 2012 13:49, Disqus escreveu:

        1. JJota

          Beleza. Vou contatar o Inacreditável, que está sempre nos sebos de Fortaleza.

          1. Vintersorg

            valeu brother!!

            Em 14 de novembro de 2012 16:34, Disqus escreveu:

  8. André Ripper

    Excelente post….muito bom, pena q o personagem ainda é tratado como herói de segundoescalão pela Marvel

  9. Pastor Luc Luc

    essa hq é foda mesmo e parece que o demolidor é o único personagem que a marvel se esforça em tratar bem , foram pequenos e raros momentos que o demolidor teve uma fase ruim. parabens jota jota !

    1. JJota

      Mas, Luc, você não acha que cada roteirista que pega o personagem está sempre mais interessado em detonar o alter-ego do cara?

      1. Pastor Luc Luc

        sim , acho que é mais facil escrever sobre a queda de algum de um personagem do que um momento feliz ou que ele se deu bem

  10. Excelente mesmo Jota! Show de bola… As reviravoltas, subtramas… Essa HQ é sem palavras, vacilei tmb quando não comprei o encadernado de luxo pela Panini… Espero que sai novamente como estavam especulando…

  11. Felipe Garcia

    Alguém sabe aonde eu tem a venda o encadernado dessa história?

    Eu só tenho a mini que a Abril lançou nos anos 90, com as capas do Roger Cruz…

        1. JJota

          Putz, cara. Pior que tenho procurado uma edição nas lojas daqui pro Sorg e, até agora, nada.

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