Ilumidicas: entrevista com Steve McQueen ou uma resposta a Forastieri

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Para a maioria das pessoas, Steve McQueen é o nome de um cara branco, um bad boy americano, que fazia filmes, pilotava carros e motos em alta velocidade e morreu (feio) das complicações de um câncer, no México, em 1980, ou então a música da Sheryl Crow sobre esse mesmo cara branco, um bad boy americano, que fazia filmes, pilotava carros e motos em alta velocidade e morreu (feio) das complicações de um câncer no México, em 1980. Um nome relativamente comum nos países anglófonos, não é de se espantar que haja alguns homônimos do ator no mundo, mesmo famosos (batizados ou não em homenagem ao ator). Contudo, desde 2011, passamos a conhecer outro Steve, negro, inglês, erudito, mas que também faz filmes, só que do outro lado da câmera (nem sempre).

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Acontece que enquanto o público em geral o conhece a partir do lançamento de Shame – apenas seu segundo filme comercial e também segunda colaboração com o ator Michael Fassbender –, o diretor Steve McQueen figura no mundo das artes, não o do cinema como arte, mas das galerias e museus mesmo, desde a década de 1990, quando ele despontou na cena europeia como videoartista.

Conhecer ou não esse background não necessariamente afeta a apreciação de seus filmes, mas, por outro lado, pode trazer novas cores e texturas a sua obra, iluminando certas características e justificando algumas escolhas enquanto realizador que poderiam, num primeiro momento, parecer despropositadas. Nesta entrevista que ele concedeu ao curador do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA, NY), Stuart Comer, infelizmente toda em inglês e sem legendas, ele fala de sua trajetória pessoal e visão artística e comenta certos aspectos de seus filmes.

Quando a gente fala em “filmes de arte” é difícil definir muito bem do que está se falando. No senso comum, a coisa virou quase que um gênero, uma classificação que separaria “Os Mercenários” (The Expendables, 2010), dirigido por Sylvester Stallone, de “Uma mulher para dois” (Jules et Jim, de 1962), dirigido por François Truffaut. Fala-se ainda em obras reflexivas, autorais, trágicas e/ou poéticas (meio chatinhas) versus produções ditas para fins de “puro entretenimento”. No campo da crítica cultural, no entanto, sabe-se que não existe uma definição pré-pronta, uma linha mestra a se seguir. Por exemplo, se concorreu ao Oscar é filme de arte? “Guerra ao Terror”, O Senhor dos Anéis, Avatar e Toy Story concorreram ao Oscar (nas categorias que importam, não estou falando de prêmios técnicos rs). Se é estrangeiro (europeu) é filme de arte? “Taxi” e “13° Distrito”, escritos e produzidos por Luc Besson, são produções francesas. O cinema tem sim um duplo potencial de meio de comunicação/mídia e forma de arte (da mesma maneira que os quadrinhos e a literatura), essa ambiguidade é explorada o tempo todo, mas cabe a gente, a sociedade, a História, aos intelectuais/acadêmicos/estudiosos, ao público, o papel final de conferir este status.

A menção ao André Forastieri no título também não é simplesmente polemista. O cara é indiscutivelmente uma de nossas maiores referências em termos de crítica cultural no país, e na época do lançamento de “12 Anos de Escravidão”, fez duras críticas a produção – sobretudo ao roteirista John Ridley –, inclusive elencando 16 motivos pelos quais ele não veria o filme e, caso alguém concordasse com ele, também não deveria ver. Pessoalmente fiquei ultrajado com o teor do texto, embora profissionalmente entenda a posição do jornalista e não veja nada de errado em gongar um filme que não se viu. Só não concordo com os motivos que ele deu.

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Para mim, tais motivos são meio tacanhos (mesmo entendendo que em boa parte são irônicos), produto daquele poder que os jornalistas têm, e que também é aquilo que de melhor eles fazem: demonstrar certo cinismo como forma de entender e interagir no mundo. Tal cinismo também reflete certa “ignorância proposital”, o que os torna capazes de reducionismos que se mostram didaticamente oportunos para construção do chamado “texto jornalístico”, mas que, vez ou outra, impedem a ampliação de sua visão de mundo quando lhes é exigido mais do que o clássico trabalho da imprensa.

Para quem não manja de inglês, dois pontos podem ser pinçados da entrevista (na realidade, um bate-papo de quase duas horas): a trajetória pessoal e educação de McQueen; e o teor de seu trabalho, que é, na visão do próprio, fundamentalmente artístico – aquilo que  Forastieri chamou de “filme pra ganhar prêmio”. É fato que a comunidade artística de maneira geral tem pouco apelo ao grande público, servindo mais como um clubinho exclusivo para ricos, intelectuais e/ou esnobes darem tapinhas nas próprias costas do que para produzir algum tipo de reflexão sobre qualquer coisa. O problema é que arte não precisa ser popular ou reflexiva ou acessível ou mesmo inteligível. Ela é da ordem do sensível, um outro modus operandi que geralmente escapa a esse cinismo do fazer jornalístico. Por isso, para mim, muito mais interessante do que apontar a babaquice ou exclusivismo de A ou B, seria explicar motivações, panos de fundo, perspectivas etc., dando possibilidade para que as pessoas entendam e decidam por si só se aquilo é babaca ou não, se cabe ou não, se é viagem de um filhinho de papai ou genialidade. Neste sentido, quando McQueen falou na entrevista sobre alguns de seus trabalhos como videoartista, pude entender melhor sua carreira como diretor de longas “comerciais”. Percebam aqui como, quando mudamos o referencial do circuito de cinema e festivais para as galerias, típicos “filmes de arte” como “Fome” (Hunger), Shame e “12 Anos…” passam a ser entendidos como filmes comerciais. Isso como um contraponto entre o trabalho mais restrito dos museus e a maior distribuição do cinema narrativo tradicional, embora ambos sejam essencialmente trabalhos artísticos.

A representação do corpo, por exemplo, é uma das questões mais relevantes da Arte e que aparece na obra de McQueen como uma temática recorrente nessas duas “etapas” de sua carreira. Em nossa época de padrões de beleza, manipulação digital, filtros, corpos esculturais, cirurgias plásticas e “busca pela perfeição” – ao mesmo tempo com o crescimento de um movimento ainda tímido de volta a certa naturalidade e sem retoques –, a obra de McQueen tenta o tempo todo provocar uma espécie de encontro estético do espectador com imagens que vão lhe chocar.

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Esse vídeo chamado Charlotte se trata, como dá pra ver, de um olho (dessa Charlotte, uma atriz britância renomada) que é cutucado por um dedão (o do McQueen). Segundo a descrição do vídeo, porque eu não conseguei achá-lo na Web, na continuação dessa cena ele fica pressionando o olho da atriz enquanto ela mantém os olhos abertos.

Não se trata de buscar a beleza em tudo, seja artificial ou “natural”, mas mostrar o potencial expressivo daquilo que não te agrada, do que é grotesco, daquilo que te ofende. Em Hunger, há os castigos físicos que os membros do IRA sofriam (ou sofrem) nas mãos da policia britânica quando presos, a mesma relação se dá em “12 Anos…”. Em Shame, mesmo as cenas de sexo do protagonista, que a princípio teriam um tom erótico/sensual inato, são construídas de forma a provocar angústia, tristeza e, em última análise, expressar a dor do vício do protagonista.

Já em seu trabalho como videoartista, McQueen geralmente costumava exibir o próprio corpo como objeto de suas investidas audiovisuais. Num trabalho em particular que ele menciona na entrevista, chamado Five Easy Pieces (Cinco Peças Fáceis), uma situação é montada de forma a parecer que um homem (ele mesmo) está urinando diretamente na lente da câmera e, consequentemente, no público. Essa é uma provocação tanto estética quanto política, e não se trata só de produzir certo desconforto ou espantar a plateia, como num filme de terror. É preciso considerar o contexto em que o trabalho se insere: um jovem artista, negro, classe média, exibindo um trabalho numa galeria para gente rica, provavelmente em sua maioria branca. Ao mesmo tempo não se trata de algo tão literal como um desdém revanchista (até porque o vídeo não é só isso). De novo, trata-se de fugir não só de padrões de beleza, mas da própria ideia de beleza, ou pelo menos do belo como aquilo que é “agradável aos olhos”.

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Cena de Hunger sobre o prisioneiro Bobby Sands (Fassbender), membro do IRA que fez greve de fome na prisão por causa de uma decisão do governo britânco de revogar o status de prisioneiros políticos dos membros do IRA

Infelizmente os trabalhos de videoarte de McQueen são difíceis pra caramba de achar pelas Internetz, até porque eles valem uma nota e estão a venda ou em exibição em galerias pelo mundo. Só consegui achar um documentário sobre as condições de vida de mineiros chamado Western Deep.

Sobre a trajetória pessoal, a gente pode ver que McQueen não é exatamente um europeu esnobe e pseudointelectual. Ele diz que veio de uma família pobre (classe media baixa) e que só ascendeu socialmente, e neste caso artisticamente, através do sistema educacional inglês que lhe permitiu fazer faculdade e mestrado gratuitamente. Contudo, na entrevista o diretor lamenta que esta não seja mais a realidade do Reino Unido, tal qual ainda é possível hoje no Brasil, pois as sucessivas reformas dos governos neoliberais dos anos 1980 acabaram com a educação terciaria gratuita no país. Foi na faculdade e na pós-graduação que ele pode se desenvolver enquanto indivíduo e como artista, podendo aprimorar sua vocação. Ainda mais, ele credita sua entrada no mundo das artes como resultado direto de sua condição financeira. Ele se diz um apaixonado por cinema, e disse que recorreu a videoarte por ela ser uma forma de poder trabalhar com audiovisual e exercer sua visão criativa mesmo “sem nenhum dinheiro”. Ele queria fazer cinema, mas fazer cinema custa caro, então ele foi fazer Arte.

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Zé Messias

Jornalista não praticante, projeto de professor universitário, fraude e nerd em tempo integral cash advance online.

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