Humor contra o terrorismo

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Em 2016 fui convidada a palestrar no XVII Congresso Internacional de Humor Luso-Hispânico, na UNESP/Araraquara, quando falei sobre crítica política, liberdade de expressão e os limites do humor a partir de uma exposição virtual organizada pela Gibiteca de Santos. Por algum motivo que eu não me recordo, não cheguei a publicar nada sobre essa exposição no Iluminerds, mas já havia falado sobre esses assuntos em alguns posts, como aqui e aqui.

O riso como arma de contestação política

Apesar da vocação dos quadrinhos para o entretenimento, não podemos negar sua importância no que se refere à crítica social e política através da História de diversos países. Muitas delas desempenharam um papel significativo na articulação de ideias durante regimes ditatoriais em países como Brasil e Argentina. Hoje, embora o Brasil viva um regime democrático, problemas como corrupção, escândalos políticos, desigualdade social, falta de investimento em programas de saúde e educação são temas recorrentes em tiras e charges de todo país.

Sabemos que nem todos os cartuns e tiras utilizam humor em sua linguagem, porém, é através do riso que grande parte dos artistas cria uma conexão com seu público. Tendo isso em mente, vale lembrar que não faltam estudos filosóficos, psicológicos e antropológicos acerca do poder do riso e suas funções, entre as quais podemos ressaltar a de atuar como arma de contestação política, como afirma Da Costa em sua pesquisa:

A linguagem do humor – arma política contra regimes repressivos – é também considerada subversiva e de contracultura – pode ser narrada por meio do teatro, da música, da literatura, da imprensa, do cinema e do desenho de humor. Tem como finalidade provocar o riso ou o sorriso. O risível nas piadas e paródias, como imitação burlesca, era um dos recursos mais populares entres os bufões na Antiguidade. Rir de si mesmo e do seu semelhante, seja em tom jocoso ou de escárnio, é um traço marcante da natureza humana desde os tempos mais remotos. (DA COSTA, 2012, p.18).

A História das tiras no Brasil data da época do Império, já que antes disso a entrada de impressos no Brasil era vetada sob o argumento de que propiciariam a circulação de ideias.

Primeiramente, a realidade político-social brasileira era retratada em forma de charge durante o carnaval e era tida como uma manifestação popular pontual, porém, com o crescimento dos movimentos a favor da independência, alguns veículos de imprensa alternativa surgiram, abrindo espaço para que as charges se tornassem uma forma de expressão que, acima de tudo, contestava o sistema vigente.

Já em relação à caricatura, uma das primeiras publicações a trazer este tipo de desenho cômico foi o periódico O Marimbondo, de 1822, seguido de “O Carcundão” em 1831.

Em 1860 o primeiro periódico de humor ilustrado é lançado: A Semana Illustrada contava com escritores, jornalistas e desenhistas que registraram fatos e sátiras políticas durante os 16 anos que foi publicada, porém, essa tendência de registrar fatos históricos e políticos através de charges cômicas e cartuns perdurou até início dos anos 80, quando os jornais passaram a dar espaço às tiras cômicas.

Por volta dos anos 60, com o golpe militar no Brasil, a imprensa alternativa atingiu seu auge e entre os veículos de maior expressão na época, estava o periódico Ovelha Negra, editado pelo cartunista Geandré. Sua relevância é tamanha que o pesquisador e professor Osvaldo da Silva Costa decidiu registrá-la em sua dissertação de Mestrado, onde entendemos porque o humor gráfico teve um papel tão importante na propagação de ideais de oposição à Ditadura, fazendo com que muitos artistas que contribuíram com o jornal fossem perseguidos pelos militares.

Nos anos 70, desenhistas e jornalistas que colaboravam com edições como O Pasquim, entre eles Ziraldo e Henfil, foram presos e várias publicações passaram a sofrer censura. Esta censura resultou na proibição de publicação de caricaturas durante o período de dez anos: “A censura proibia a publicação de caricaturas de autoridades nacionais e estrangeiras. Havia a censura prévia, que consistia na presença de um censor junto às redações até 1977”. (DA COSTA, 2012, p.73).

 Je suis Charlie… Ou não.

  “ pode fazer piada de qualquer coisa, o que importa é saber de que lado da piada você está. A criação pode tudo, claro.”Laerte Coutinho

Uma rápida busca em sites especializados de pesquisa com a frase “atentado ao Charlie Hebdo” trará uma infinidade de matérias cobrindo o massacre realizado na sede do jornal francês no dia 7 de janeiro de 2015. Detalhes que vão desde as roupas às armas usadas pelos Saïd e Chérif Kouachi no dia em que mataram doze pessoas e deixaram mais cinco gravemente feridas na redação do jornal, a maioria delas ligadas à produção das polêmicas charges sobre Maomé, como os cartunistas abaixo:

Periódico sabidamente satírico e extremamente crítico, foi publicado entre os anos de 1969 e 1981, ressurgindo em 1992. Alvo de protestos constantes e processos judiciais por parte de entidades islâmicas, nunca deixou de publicar suas caricaturas e charges, nem mesmo diante de ameaças.

Como não poderia deixar de ser, após o atentado a comoção mundial tomou lugar nos veículos de imprensa de forma massiva por várias semanas, polarizando a discussão em dois pontos que podiam ser traduzidos nas frases: “Je suis Charlie” e “Je ne suis pas Charlie”. Independente de já ter ouvido falar no jornal francês, pessoas no mundo inteiro se posicionaram em suas redes sociais, gerando discussões acaloradas e polêmicas através de comentários e compartilhamentos de imagens, matérias, links… Artistas de todas as partes do globo expressaram sua indignação através de charges e cartuns se solidarizando com os familiares ou repudiando a posição de quem se colocava a favor dos cartunistas mortos.

A comoção causada pela exploração do assunto pela mídia gerou várias discussões em diversos meios sobre os limites do humor. A mesma busca em sites como Google mostrará que não só no Brasil, como em diversos países, artistas defenderam o direito à liberdade de expressão artística enquanto outros diziam que Charlie Hebdo havia ido longe demais. As questões que ficam são: será que há limite para o humor e para a expressão artística? Será que as charges podem tocar seus leitores de forma que estes levantem questionamentos acerca da situação política e social da região em que vivem, tornando-se assim cidadãos mais críticos?

Citando Laerte mais uma vez, em entrevista à revista Berro cujo título já diz “Não há limiar para o humor”, a cartunista afirma: “O que tem é que ouvir, depois. O que não pode é censurar, antes”, ao se referir à censura e ao atentado ao Charlie e defendendo que para as partes que se sentem prejudicadas por determinada manifestação artística, deveria haver um judiciário adequado, pois de nada adianta a regulamentação da linguagem ou a censura. Tendo vivido e produzido durante a Ditadura, Laerte fala com convicção sobre o assunto. Por isso, também sabe que o tipo de humor produzido pelo Charlie Hebdo não caberia no Brasil. Quem estuda a história do humor gráfico, bem como qualquer manifestação cultural, entende que essas produções são reflexos de seus contextos históricos, sociais, políticos, religiosos, culturais…. Portanto, qualquer análise que não considere estes fatores tende a se tornar polarizada e superficial.

Ainda assim, a produção de trabalhos de artistas se posicionando sobre o atentado reflete não só esta polarização e superficialidade com que muitos temas são tratados atualmente, mas também chama a atenção para o ocorrido de forma que algumas pessoas ao observarem estes trabalhos se sintam impelidas a tomar um lado e decidam se são ou não Charlie e, quem sabe, procurem saber mais a respeito da situação política que envolveu o episódio, podendo então refletir de forma crítica sobre o assunto.

Na baixada Santista, onde há uma Gibiteca bastante ativa como divulgadora de artistas regionais, muitos desenhistas enviaram suas artes para que fossem apreciadas através do Facebook. Estes e outros artistas costumam participar de bate-papos no local e eventualmente a questão sobre o limite do humor vem à tona.

No dia 26 de julho de 2015 a Gibiteca[1] reuniu alguns artistas para um encontro de lançamentos, entre eles estavam Seri, que é ilustrador e chargista do jornal Diário do grande ABC e lançou uma coletânea de tiras chamada Bichos, Homens e Deuses; Paulo Maffia responsável pela seleção editorial das histórias Disney para a Abril e Lucila Saindenberg, filha do desenhista Ivan Saidenberg e roteirista de quadrinhos.

Perguntados sobre os limites do humor e como lidar com as questões do “politicamente correto”, cada um falou um pouco sobre suas experiências na época da Ditadura e todos concordaram que delimitar o que é possível ou não dentro do atual contexto brasileiro é complicado, uma vez que o “politicamente correto” é muito abrangente, diferente do que acontecia nos anos 60 e 70 que o inimigo era um só: a Ditadura e seus apoiadores. Lucila disse algo que ilustra bem a situação do humor gráfico atual: “Ideias não possuem donos, portanto, não podem ser censuradas”. Afirmou ainda que artistas devem tomar cuidado para não ofender uma pessoa ou reforçar ideias preconceituosas ou racistas, porém, quando se trata de religião ou política, por exemplo, ninguém deveria se ofender, pois piadas feitas sobre ideias não são pessoais e não deveriam ser tomadas como tais.

As charges abaixo foram extraídas da página do Facebook da Gibiteca de Santos e retratam a posição de seus autores em relação ao atentado de janeiro. Além das imagens, também conversei com os artistas, alguns pessoalmente e outros através do Facebook, o que colaborou para melhor apreensão de seus pontos de vista, tanto como cidadãos como produtores de humor gráfico cujo intuito principal é justamente provocar o leitor a refletir sobre uma determinada situação, contribuído assim para o aprofundamento de seu senso crítico.

EdCarlos Santana é santista  e  hoje ilustra o Diário de Iguaçú. Tendo trabalhado para o Diário Oficial de Santos, acredita no poder das charges de fazer seus leitores refletirem acerca de temas cotidianos. Na imagem abaixo, a França, representada em uma figura feminina, chora a morte de seus artistas com uma edição do Charlie com capa preta, simbolizando o luto, enquanto em outra mão segura a bandeira que representa os princípios fundamentais da cultura francesa: Igualdade, Liberdade e Fraternidade.

 

Douglas Vieira, o Dodô, nasceu em Santos-SP, em 1981. Começou a trabalhar com caricaturas em 2003, desenhando ao vivo em festas e eventos. Em 2005 e 2006, fez charges para vários jornais de sindicatos da Baixada Santista, com destaque para O Rodoviário. Também foi chargista do extinto jornal esportivo A Bola (São Caetano do Sul). Trabalhou como humorista no programa de TV Radar Esportivo, da TV COM, desenhado caricaturas e fazendo entrevistas.  Atualmente trabalha com caricaturas e charges ao vivo e pela internet, com destaque para as exposições que realiza com frequência para várias unidades do Sesc do estado de SP. Foi premiado oito vezes em salões de humor nacionais e internacionais.

Dodô, assim como grande parte das pessoas com quem conversei, acredita que o tipo de humor praticado pelo Charlie não seria publicado no Brasil. Embora nunca tenha sofrido ameaças com seus trabalhos, reconhece que nem todos costumam gostar de suas caricaturas e charges. Sobre sua ilustração, afirma que o episódio o deixou muito incomodado e pensou em desenhar como uma forma de desabafo, pois não consegue ficar indiferente a certas situações, por isso, diz que os cartunistas não podem impedir ninguém de seguir uma determinada religião, mas devem sim contestar a realidade quando acharem necessário. Nesse sentido, as charges serviriam justamente para “cutucar” algumas feridas da sociedade, fazendo com que os leitores reflitam sobre elas.

Fábio Coala não é chargista: ficou mais conhecido por sua HQ ganhadora do 26º troféu HQ Mix, O Monstro. Também produz tiras para seu blog, Mentirinhas[2] e em sua ilustração do Charlie, Coala retrata um dos desenhistas assassinados em uma poça de sangue originária do tiro na cabeça do artista que forma a imagem do profeta Maomé, revelando o motivo da intolerância dos atiradores.

 

 

 

 

Osvaldo da Costa é ilustrador de diversos jornais, entre eles A Tribuna, de Santos e o Estado de São Paulo. Também ilustrou inúmeros outros veículos, como o Pasquim e a Folha de São Paulo, tendo recebido incontáveis prêmios e menções honrosas em salões de humor no Brasil e no exterior. Por trabalhar principalmente com charges, DaCosta sabe o que é ter lidar com a censura, mesmo entendendo que o trabalho do cartunista não deve atingir uma pessoa diretamente, mas o que ela representa no cenário político. Lembra que já teve problemas em publicar certas charges porque políticos chegavam a ligar para os jornais para que não fossem publicadas. Esteve com Georges Wolinski em 2014 e por isso sua ilustração faz uma homenagem ao colega como se sobrevivesse aos tiros dos assassinos: “Wolinski morreu, mas seu humor é eterno”.

O papel do cartunista é levantar o véu e deixar claro que todo ser humano é um idiota construído à semelhança da sociedade. Leva uma vida medíocre, só de aparências para socialmente ser reconhecido. A mecânica do humor gráfico, seu raciocínio na construção, é cutucar o bicho homem, despertar outros sentidos d’alma que a sociedade desconstruiu em benefício da moral.[3]

Seri é ilustrador com formação em Jornalismo. Trabalhou para A Tribuna de Santos e atualmente ilustra as páginas do jornal Diário do Grande ABC. Frequentador dos debates e lançamentos da Gibiteca de Santos, Seri sente uma diferença no nível de aprofundamento e conhecimento sobre determinados assuntos por parte dos chargistas brasileiros comparados com os europeus. Também considera o humor europeu mais ácido que o nosso e diz já ter lidado com censura prévia em seus trabalhos por parte dos editores. Em sua ilustração, uma bala de fuzil contra uma ponta de lápis, tentou retratar o que sentiu (e sente) em relação ao terrorismo no mundo: “Acho que os terroristas estão nos vencendo enquanto sociedade civil. Estão espalhando o terror por todo o planeta e nós todos estamos entrando na deles sem revidar”.

Em entrevista para o programa Roda Viva da TV Cultura no dia 27 de julho de 2016, o atual diretor editorial do Charlie e sobrevivente ao atentado, Laurent Sourriseau (Riss), falou um pouco sobre o episódio e o futuro da publicação. O Charlie Hebdo saiu de uma situação de quase falência para 12 milhões de dólares de lucro após o atentado, o que já deixa claro o alcance da publicação após a morte de seus artistas. Porém, a preocupação de sua direção, não é em relação ao dinheiro, que obviamente é necessário para pagar a equipe e as contas, mas com o rumo do jornal que pretende continuar independente mesmo com os grandes grupos editoriais no mercado. Charlie não possui nenhum tipo de propaganda para não ter que ceder a nenhum tipo de censura, dessa forma, os cartunistas têm total liberdade para que possam se expressar.

No entanto, por maior que tenha sido a comoção resultante do ataque, passadas algumas semanas, muitas pessoas que a princípio haviam se manifestado pró-Charlie, passaram a criticar a postura adotada pelo jornal e justificaram suas posições com a frase “Je ne suis pas Charlie” (Não sou Charlie). Riss diz que independente das pessoas concordarem com o tipo de humor praticado pelo jornal, ao menos na França, as pessoas foram às ruas para exprimir sua indignação diante do atentado, pois entendem que além do jornal não tentar impor sua opinião a ninguém (já que ninguém é obrigado a compra-lo), o tipo de humor se justificaria diante da cultura e política que amparam sua publicação no país.

“Calma! Nunca nenhum cartunista irá atirar para matar.”

Millôr Fernandes

Em um bate-papo no 23º Salão Universitário de Humor promovido pela Unimep[4], o professor de Filosofia José Lima Jr afirma que o humor, enquanto expressão artística, não deve ter limites, porém, enquanto forma de comunicação está sujeito a vários limites como: limite de público, de suporte, de contexto cultural (linguagem, códigos legais e morais)… Uma vez que a cultura é uma construção social que se altera o tempo todo. “A arte não tem compromisso com a moral, não tem compromisso com a verdade e o humor, sendo arte, mais ainda. Então, não existe de antemão um limite.”

Antigamente se produzia uma charge para um público restrito que sabia o que iria encontrar em determinada publicação. Hoje, mesmo que se publique em jornal impresso, a charge irá parar na internet onde pessoas de todo o mundo podem ter acesso e consequentemente, se sentirem ofendidas.[5]

Muito tem se discutido em relação aos limites do humor após o atentado, em uma busca de entender o episódio, o que me parece é que estamos tentando encontrar justificativas para o injustificável. Apelamos ao humor porque é certamente algo mais próximo e tangível para se discutir do que tentar entender as motivações terroristas, mas procurar entender o atentado a partir das ilustrações do Charlie é o mesmo que procurar justificar um estupro a partir da discussão das roupas e comportamento das vítimas. Não conhecendo o agressor, é lógico procurarmos respostas nas ações de sua vítima, porém, esta é uma saída que, além de não esclarecer nada, se mostra equivocada em sua busca.

Em relação ao terrorismo na Europa, é preciso buscar entender porque o discurso terrorista tem atraído jovens cuja situação social nem sempre é ruim. Porque a opção à violência é mais atraente que as perspectivas oferecidas por uma boa educação?

A Jornalista Adriana Carranca, do jornal Estado de São Paulo, cita a Nobel da paz Malala Yousafzai ao dizer ser possível matar vários terroristas, mas é impossível matar o terrorismo a menos que se invista em uma política de educação que seja de fato mais atraente aos jovens que a opção de se matarem por uma causa fundamentalista.

Em discussões com cartunistas, historiadores e filósofos, embora todos concordem que o ato sofrido pelo jornal francês seja injustificável, muitas vezes os discursos vêm seguidos de um “mas”. “Não concordo com os terroristas, MAS os cartunistas não deveriam pegar tão pesado”. “Não concordo com os terroristas, MAS também nunca faria uma charge no estilo do Charlie”. De acordo com Paulo Maffia (Editora Abril), o “mas” é o que anula a boa intenção de qualquer discurso.

O fato é que, a menos que tenhamos um bom conhecimento da cultura francesa, de sua história, sua política, não é possível avaliar qualquer coisa sem tornar nosso discurso superficial e polarizado. Limitar uma discussão sobre terrorismo às questões sobre o limite do humor, por exemplo, é exatamente isso: rodar em círculos. Chamar a atenção para as práticas do humor gráfico é válido no sentido de lembrar que as charges e cartuns têm um papel fundamental na formação do senso crítico de seus leitores, mas tentar determinar o que pode ou o que não pode dentro do processo criativo e artístico sem considerar as peculiaridades de onde seus meios de divulgação estão inseridos, não encerra o problema.

É fácil achar que o tipo de humor praticado pelo Charlie Hebdo seja inviável, agressivo, descabido… É fácil dizermos que os artistas estavam errados ao mexer com algo que sabiam que poderia lhes custar a vida, mas ao pensarmos assim, estamos enxergando apenas o ponto de vista de quem vive em uma cultura totalmente diferente.

Não se trata de concordar com as charges do jornal, mas de entender que, no contexto em que foram criadas, elas são totalmente possíveis e amparadas pelo sistema político vigente. Como o próprio Riss explica em sua entrevista ao programa Roda Viva, o humor praticado pelo Charlie não é algo novo. Sua fórmula é a mesma desde sua criação e está amparada pela lei criada em 1905 que separa totalmente a Igreja do Estado. Se entendermos que dentro da perspectiva mais radical do islamismo se você representa Maomé da forma como ele foi representado nas charges você deve morrer, podemos até acreditar que os cartunistas sabiam do risco que corriam, porém, dentro do país onde estas charges circulam, esta prática é totalmente amparada por lei. Portanto, ao exercer seu direito democrático de expressar sua opinião com liberdade, os cartunistas estavam seguindo o bê-á-bá básico dos princípios franceses que lhes garantia tal liberdade. De acordo com Riss, em nenhum momento eles impuseram o jornal a todos, ou seja, sua tiragem até o atentado era relativamente pequena se comparada a outros jornais e ninguém é obrigado a comprá-lo.

Antes de mais nada, há os limites da lei. Na França há regras para a liberdade de expressão. Tradicionalmente os tribunais são bem tolerantes com os desenhos humorísticos e satíricos. Não por acaso, mas porque consideram que está na tradição francesa; porque consideram que é uma produção artística e que se deve ser um pouco mais tolerante com essa forma de expressão do que com outras. Se deixarmos de exercer essa liberdade, ela vai desaparecer.[6]

Talvez não seja algo tão difícil de praticar: não concorda com algo, não consuma, não pratique, não divulgue… Acha agressivo e ofensivo? Não olhe! No entanto, sabemos que o alcance que os meios conseguem hoje em dia graças à internet pode funcionar como uma “faca de dois gumes”: se por um lado você pode tocar mais pessoas e ajudá-las a aprimorar seu senso crítico, por outro também consegue atingir mais pessoas que matariam pra defender seus ideais de forma silenciar qualquer um que se oponha a eles.

Assim, embora os artistas santistas, assim como diversos outros ao redor do mundo, tenham procurado chamar a atenção para o atentado e tenham se sentido impelidos a se posicionar diante do episódio, levantando assim não só a questão dos limites do humor, mas principalmente sobre a proporção que as ações terroristas têm tomado, esta discussão está longe de acabar e a menos que busquemos conhecer mais sobre a história francesa e a história do humor na França, nossas discussões continuarão a tender para a superficialidade e polarização do assunto.

Como lembra o historiador e editor Jaime Pinsky no programa Roda Viva, o jornal exerce uma função imprescindível na manutenção da democracia ao fazer o papel da consciência crítica da sociedade e afirma que o Charlie é extremamente relevante em termos históricos. Dessa forma, é importante que consigamos manter o senso crítico independente da posição política.

Por isso, se as charges também exercem o papel de reveladoras da realidade social, entenderemos que é preciso rir da realidade, ainda mais quando ela se apresenta de forma dramática, ou seja, acreditaremos na capacidade transformadora do humor ou jornalismo satírico, como definiu Riss.

Referências

 

 

DA COSTA, Osvaldo. Uma Ovelha Negra na Cultura Midiática: Inovações do Humor Gráfico na imprensa alternativa brasileira. Santos, Ateliê de Palavras. 2015.

 

 

 

 

 

[1] Entrevista à revista Berro reiterando o que Hugo Possolo havia dito em outra ocasião em 22 de julho de 2015- http://revistaberro.com/entrevista/laerte/

 

[2] http://quadro-a-quadro.blog.br/programacao-da-gibiteca-de-santos-25-e-26-de-julho/

[3] http://mentirinhas.com.br/

[4] Osvaldo Da Costa em entrevista concedida à autora do artigo.

[5] https://www.youtube.com/watch?v=_PwGr0Vbc1Y&feature=youtu.be

[6] Riss para Roda Viva – https://www.youtube.com/watch?v=_PwGr0Vbc1Y&feature=youtu.be

[7] Riss para Roda viva aos 22:12 min .

 

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

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