Homem-Formiga: Assalto x Invasão x Furto. – By James Daily

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O Iluminerds iniciou uma parceria com o site www.lawandthemultiverse.com e, a partir de hoje, estaremos traduzindo e publicando alguns artigos escritos por seu criador, o advogado e autor James Daily. O texto original está aqui. Boa leitura!

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Assisti ao filme do Homem-Formiga no fim de semana passada e gostei bastante dele, de maneira geral. Convenientemente coerente com o protagonista, é um filme que lida com coisas aparentemente pequenas que vão resultar em consequências bem maiores. Como é um filme bem desconectado do enredo principal do Universo Cinemático Marvel, acaba sendo uma pausa agradável ao tema “Crise Dramática/Cósmica Global”, recorrente nos Vingadores e nos demais filmes individuais. Mas você, meu caro leitor, não veio aqui pra ler resenha de filme. Então, vamos olhar mais de perto algumas distinções legais que o protagonista, Scott Lang, faz algumas vezes ao longo da película: assalto versus furto. Aviso: pra quem ainda não viu o filme, alguns spoilers adiante.

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Deu ruim! O filme do cara é muito mais legal que o nosso!

Lang se considera um ladrão; um “mão-leve”, mais especificamente. Fica ressentido quando se referem a ele como sendo “assaltante”, e explica que “assalto envolve ameaça”, portanto violência, coisa que ele abomina. Como podemos ver, até aí, ele não está errado, mas sua explicação é incompleta. As distinções entre assalto, invasão e furto são bem mais complexas. O filme se passa em São Francisco, portanto, vou me referir às leis da Califórnia:

     1. Assalto

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Perdeu, Preibói!

O Código Penal da Califórnia, § 211, define assalto como sendo:

(…)a posse ilícita de propriedade particular de terceiro, de seus pertences ou mediante sua presença, contrária à sua vontade, através de coerção ou medo.

Há muito o que se interpretar aqui, mas, destrinchando o parágrafo, podemos ver que assalto envolve:

. a propriedade particular de outra pessoa

. sob sua posse direta

. abduzida de seus pertences ou da própria

. contra a vontade

. através de coerção ou medo

Um exemplo clássico é o do batedor de carteiras/bolsas. Um batedor pega a bolsa (propriedade particular) de outra pessoa, enquanto esta ainda a possui, subtraindo a mesma de seus pertences particulares, contra sua vontade, à força. Um assaltante faz coisa similar, exceto pelo fato de que usa o medo, ou possibilidade de agressão.

Mas notem que furto não é assim. Apanhar uma carteira de alguém, casualmente, de uma mesa, enquanto todos estão distraídos, não é roubar. A propriedade é subtraída de sua presença imediata, mas não através de coerção ou medo. Da mesma forma, subtrair algo da residência de alguém, enquanto a mesma se encontra vazia, não é roubo. A propriedade pode estar sob posse da vítima, por estar em sua residência, mas não foi tirada de maneira direta da própria pessoa em si, ou em sua presença imediata.

Por que a distinção? Porque roubo é, inerentemente, um crime violento. Envolve força ou a ameaça do uso desta, e traz consigo tanto o trauma psicológico da agressão quanto o risco do dano físico à vítima. Portanto, há séculos que é consensualmente tido como sendo pior que simplesmente subtrair os pertences de alguém, enquanto não há ninguém perto, ou fazê-lo sem coerção ou medo.

Então, está bem claro que Lang realmente não é um assaltante. E que tal invasão e furto?

     2. Invasão de Domicílio

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Essa é minha humilde residência… Eu só me esqueci da chave. Ô, doutor… sou trabalhador!

Novamente, o Código Penal da Califórnia, § 459, define invasão de domicílio como:

                        Todo o indivíduo que entra em casa; apartamento; galpão; loja; depósito; armazém; moinho; estábulo ou qualquer outro tipo de construção; tenda; embarcação, conforme definido na Seção 21 do Código de Portos e Navegações; Flutuante, conforme definido na subdivisão (d) da Seção 18075-55 do Código de Saúde e Segurança; vagão de trem; container lacrado ou selado, seja solto ou preso a um veículo; trailer, conforme definido na Seção 632 do Código de Veículos; qualquer Motor Home, conforme definido na Seção 362 do Código de Veículos; veículo comum definido pelo Código de Veículos, sempre que suas portas estiverem fechadas; aeronave, conforme definido na Seção 21012 do Código de Utilidade Pública, mina ou qualquer construção subterrânea; com o objetivo de cometer ilicitude ou ilegalidade, ou de subtrair posses alheias ou qualquer outro crime similar será acusado de invasão de domicílio. Conforme já posto neste capítulo, “inabitado” significa usado correntemente para fins de domicílio, esteja ou não ocupado. Uma casa, trailer, embarcação ou similar (ou mesmo que apenas uma parte de tal embarcação ou construção qualquer seja utilizada com o propósito de habitação) não está sendo usada normalmente para fins de domicílio se, ao tempo da ilegalidade, não estiver ocupada por conta de desastre natural ou de outra sorte, que teria motivado a saída dos habitantes, somente.

Esta definição é bem mais complicada que a de roubo, mas é essencialmente técnica. Se apararmos as arestas, ficando só com o essencial, teremos o seguinte:

Toda a pessoa que entrar em qualquer (…) construção (…) com o objetivo de cometer ilicitude ou ilegalidade(…) qualquer outro crime similar será acusado de invasão de domicílio.

Bem mais simples! Vamos levar alguns detalhes em conta:

. A Invasão não requer arrombamento, apenas o ingresso.

. O crime não precisa ser cometido (ou mesmo possível), apenas intencionado.

. O mais importante, talvez, de nossos propósitos: a invasão de domicílio não requer sequer a subtração de qualquer propriedade. Qualquer ilegalidade (intencionada) já serve.

Portanto, Lang pode ser um invasor (ele certamente já invadiu residências com intenções criminosas), mas ele também, como disse no filme, “rouba umas merdas”. E é aí que temos o furto.

     3. Furto

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Ninguém viu nada… Devagarinho… Ninguém tá vendo nada…

Como em diversos outros estados, a Califórnia adotou o estatuto geral de furto, eliminando os crimes distintos de “roubo de miudezas”, “desfalque” e “obtenção de propriedade mediante falsos pretextos”. A definição de furto no § 484 (a) é ainda mais complicada que a de invasão:

Todo indivíduo que criminosamente subtrair, apreender, carregar consigo ou afastar a propriedade particular de terceiro, ou que se apropriar de propriedade que foi confiada a outrem de maneira fraudulenta; ou aquele que intencionalmente, por qualquer pretensão, desfalcar qualquer outra pessoa de pecúnia, trabalho ou propriedade particular ou real; ainda, quem influenciar outros a emitir declarações enganosas em benefício próprio ou de terceiros, obtendo crédito ou fraudulentamente alcançando valor pecuniário é acusado de furto. Para os propósitos desta Seção, o critério para se determinar o valor da propriedade alcançada será o da análise razoável e justa do valor de mercado; e, para se determinar o valor de serviços, será aplicado o critério do valor de contrato. Se não houver valor de contrato, o valor razoável e usualmente cobrado no mercado será o auferido. Para os propósitos desta seção, qualquer representação falsa ou fraudulenta será tratada como continuada, assim como qualquer valor pecuniário, propriedade ou serviço como resultado disso. A informação, queixa ou acusação indicarão que o crime foi cometido em tempo incerto, durante o período em questão. A contratação de qualquer empregado(s) adicional(is) sem o devido aviso, por parte do empregador, de pendências trabalhistas decorrentes de inadimplência ou de qualquer outra situação sob júdice será considerado, prima facie, evidência de intenção de fraude.

Podemos destrinchar este trecho e simplificá-lo um pouco pra nossos objetivos:

Todo indivíduo que (…) subtrair (…) propriedade particular de terceiro, ou que se apropriar de propriedade que foi confiada a outrem de maneira fraudulenta, ou aquele que intencionalmente, por qualquer pretensão, desfalcar qualquer outra pessoa (…) ainda, quem influenciar outros a emitir declarações enganosas em benefício próprio ou de terceiros (…) e, portanto (…)obtendo crédito ou fraudulentamente alcançando valor pecuniário (…) e de propriedade (…) é acusado de furto.

Portanto, vemos que Lang não é só um simples “mão-leve”. Ele é um ladrão, mesmo. Invadir um prédio de propriedade alheia com a intenção de subtrair pertences é invasão de domicílio, e cometer o ato, em si, é furto.

 

     4. Os crimes de Lang

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Vamos partir do pressuposto de que Lang cometeu invasão a domicílio, além de outros crimes, quando invadiu o prédio da Vista Corp. E quanto à invasão na casa de Hank Pym? Por um lado, este parece ser mais um caso bem clássico de invasão (entrou no domicílio com a intenção de furtar o conteúdo do cofre de Hank) e furto (pegar o uniforme do Homem-Formiga).

Por outro lado, Lang devolve o uniforme no dia seguinte (e é então preso, enquanto fugia da cena do crime), e acaba descobrindo, mais tarde, que Pym no fim das contas queria que ele roubasse o uniforme, um tipo de teste para dar-lhe um outro trabalho. Será que estes dois fatos fazem alguma diferença na tipificação do crime?

               I. Devolvendo Propriedade Roubada

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Esta atitude certamente não vai ajudar a amenizar a acusação. Lang entrou na casa de Pym com a intenção de cometer um delito. Tenha ele ou não, em última instância, cometido o crime, a invasão de domicílio aconteceu assim que ele colocou qualquer parte de seu corpo dentro da casa. E o furto? Será que se arrepender de furtar algo e devolvê-lo ajuda na defesa?

A resposta óbvia é não.

o fato de um ladrão (…) mudar de ideia e devolver os pertences para fugir do processo e consequente julgamento do crime não exime o infrator das consequências do furto.

O Povo v. Post. 76 Cal.Ap.2d511, 514 (1946).

O fato pode até servir como circunstância atenuante da pena, mas não afetará a questão subjacente da culpa.

 

                II. Permissão do Proprietário para o ato, não sabida pelo delinquente

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Esta questão é mais complicada. Ter a permissão do proprietário para invadir a casa e cometer o que de outra forma seria um crime é um ponto a favor do delinquente:

O indivíduo que entra em uma das estruturas enumeradas na seção 459 com a intenção de cometer o crime é acusado de invasão de domicílio, exceto quando ele(a): (1) tem um direito possessório incondicional de ali ingressar enquanto ocupante; (2) é convidado a ingressar no domicílio pelo ocupante que conhece e aprova a intenção criminosa.

“O Povo v. Salemme”, 2 Cal.App.4th 775, 781 (1992).

No nosso caso, Pym sabia e aprovava a intenção criminosa de Lang, mas isso não é suficiente; Lang deveria ter sido explicitamente convidado:

Deve haver evidência do consentimento para entrar, acompanhado do conhecimento do “visitante” de que o ocupante está ciente de todo o ato criminoso e não se propõe a impedi-lo.

“O Povo v. Sherow, 196 Cal.App.4th 1296, 1302 (2011)

Tal obstáculo, assim como a necessidade de Pym em manter o segredo, pode ter sido o motivo pelo qual o cientista simplesmente não revelou à polícia de que ele desejava que Lang invadisse sua casa e pegasse o uniforme.

Portanto, Lang é um tremendo azarado. Cometeu o crime de invasão seguida de furto, mesmo havendo a vontade de Pym, concorrendo para tal.

(Além disso, não sei se já ocorreu a alguém, mas a afirmação de Pym, proclamando-se advogado de Lang faz com que ele possa ser acusado de falsidade ideológica – Cal. Bus. & Prof. Code § 6126(a).  Afirmar à polícia que não só é advogado (quando não é) como também representa uma pessoa específica talvez não tenha sido a decisão mais sábia de Pym…)

Colossus de Cyttorak

Detentor dos segredos da Mãe-Rússia, fã incondicional de jogos da antiga SNK (antes de virar esse arremedo, chamado SNK Playmore), e da Konami, Piotr Nikolaievitch Rasputin Campello parte em busca daquilo que nenhum membro da antiga URSS poderia ter - conhecimento do mundo ocidental. Nessa nova vida, que já conta com três décadas de aventuras, Colossus de Cyttorak já aprendeu uma coisa - não se deve misturar Sucrilhos com vodka, nunca!!!!

Este post tem 7 comentários

  1. JJota

    Muito bom. E, putz, esse Direito Consuetudinário norte-americano é foda. Além dessa maior capacidade legislativa dos Estados de lá.

    1. Legal que gostou, Jota! Ainda tem mais uns 3 textos do cara pra serem publicados aqui. Um deles é sobre o Capitas 2, tu vai gostar, acho.

      Aliás, a liberdade legislativa dos Estados Norte-Americanos é uma coisa de louco. Além de interessante, é bastante conveniente, pois se adapta aos locais, o que é muito importante pra um país tão grande.

      1. JJota

        É o que ocorre quando se usa o bom senso e se percebe que grandes países possuem profundas diferenças regionais e problemas localizados que deveriam ser alvo de legislação mais específica.

        1. Harvey_o_Adevogado

          o Brasil vive uma “pseudofederação”. Mas imagina se cada Estado do Brasil tivesse seus próprios códigos? Se para passar na OAB com as mesmas leis está difícil, imagina com diversos código regionais….hahahahaah

          1. Dr. Housyemberg Amorim

            Mas o pessoal não passa na prova da OAB porque não sabem… PORTUGUÊS!!!! Bwahahahahahahahhahahahahaha!!!!!

          2. JJota

            É fato!

    2. Harvey_o_Adevogado

      common law! A gente vive no civil law, assim como na europa continental. Só treta, sangue nos óios.

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