Ghost in the Shell – O Homem e a máquina pelo olhar de Sonia Luyten

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No dia 25 de março desse ano, a Associação Japonesa de Santos realizou um evento dedicado ao anime Ghost in the Shell. A exibição da animação de 1996 foi precedida pela palestra da pesquisadora e especialista em mangás, prof.ª Drª Sonia Bibe Luyten.

Sobre Sonia, o que posso dizer é que seu extenso currículo encheria duas páginas facilmente: uma das pioneiras dos estudos acadêmicos de quadrinhos no Brasil, fundou a primeira “mangateca”/gibiteca do Brasil, no prédio da Escola de Comunicação e Artes da USP. Tendo vivido no Japão, sua relação com a cultura do país, tanto a tradicional como a cultura pop, faz dela um dos principais nomes a serem lembrados quando o tema é mangá.

Quanto à animação, inspirada na HQ de mesmo nome e de grande sucesso no fim dos anos 80, resenhas são facilmente encontradas, principalmente depois do anúncio do lançamento do filme estrelado pela Scarlett Johansson este ano. Com a mesma pegada cyberpunk de seu predecessor Akira, a violenta história de Masamune Shirow foca nas implicações de uma tecnologia que permitiria a fusão de seres humanos a computadores conectados a uma rede mundial. A protagonista Motoko Kusanagi, faz parte de uma organização policial antiterrorista e graças à sua porção cyborg, consegue exterminar seus inimigos com precisão e rapidez. Por isso, o objetivo aqui não é discutir se vale a pena ou não assistir ao filme, ler o mangá ou qualquer outra versão existente dessa obra.

Ghost in the Shell, assim como outras inúmeras produções que tratam sobre nossa relação com a tecnologia, moralidade e ética, é uma obra que pode ser apreciada em níveis de recepção diferentes dependendo do repertório de seu leitor/espectador. Portanto, a partir de alguns apontamentos feitos pela pesquisadora Sonia Luyten, quem for assistir ao filme conseguirá experimentar perspectivas que talvez passem despercebidas por aqueles que acreditam se tratar apenas de mais um blockbuster hollywoodiano.

As relações entre essa narrativa e outras mídias remetem a histórias muito anteriores ao surgimento da tecnologia como conhecemos hoje. Como levantado por Sonia, essas ficções devem sua origem a sensações muito reais – nosso medo e curiosidade diante de algo novo. O medo e a curiosidade que geraram obras como Frankstein, de Mary Shelley, em 1818 ou Pinocchio (La storia di um burattino), de Carlo Collodi, em 1881, também foram responsáveis por Blade Runner, Matrix, Eu Robô, o 13º andar, Ex-Machina, Black Mirror A.I. -Inteligência Artificial, Lucy, Robocop, Transcendente, A Origem, e tantas outras obras cujas raízes estão no pensamento de filósofos como Platão, Descartes e Baudrillard, tratado aqui e aqui.

À visão apocalíptica, tão presente em enredos de ficção científica, damos o nome de distopia, ou seja, uma perspectiva geralmente pessimista sobre o futuro, decorrente de erros passados e que poderiam ser evitados a partir da reflexão sobre eles. Porém, o futuro distópico de livros como 1984 e Laranja Mecânica, é mais atual do que gostaríamos de acreditar, como mencionamos aqui.

A pesquisadora também chamou a atenção para o fato de que a cultura pop, onde os quadrinhos estão inseridos, e a cultura tradicional japonesa serem intimamente conectadas quando falamos em Ghost in the Shell, a começar pelo nome da protagonista da série, major Motoko Kusanagi – cujo sobrenome é uma referência a uma lendária espada japonesa pertencente a um deus.

Já o título que poderia ser traduzido como o fantasma na concha e que recebeu, lamentavelmente, o nome de vigilante do amanhã em sua versão fílmica no Brasil, é uma referência ao conto de Arthur Koestler, O Fantasma na Máquina, de 1967. Com leitura fortemente recomendada pela própria Sonia Luyten, o livro de Koestler questiona o conceito de mente e dialoga com Descartes ao tratar do dualismo entre corpo e alma, afirmando haver entre os “desvãos” de nossa estrutura um eco, uma essência que ele chamou de holon. Essa essência, entendida por muitos de nós como alma ou ânima, não tem a ver com um fantasma no sentido em que foi traduzido do japonês para o inglês – ghost. De acordo com a pesquisadora, a relação dos japoneses com esses conceitos é muito diferente da visão ocidental sobre eles.

“O tema de tsukumogami (espíritos dos artefatos) está presente ao longo do filme, reiterando o embate entre bonecos (conchas/ cápsulas) e a possibilidade de seinciência – capacidade dos seres de sentir algo de forma consciente, como sensações e sentimentos – e o transumanismo”.

Tsukumogami é um tipo de espírito japonês presente em qualquer objeto que atinja o seu 100º aniversário, desde espadas a brinquedos. Esta informação é certamente uma das mais importantes para compreender a angústia da major Kusanagi diante de perguntas que permeiam não só a sua existência, como sua busca por significado que costuma ser associada somente a seres humanos.

Embora a questão ética em relação a esses seres, que são parte humanos e parte máquinas, estar no cerne da obra, assim como nos filmes Ex-Machina e Inteligência Artificial, a velocidade da animação talvez não dê essa impressão com a mesma profundidade que é tratada na HQ. A verdade é que toda trama antiterrorista e conspiracionista serve como pano de fundo para questões mais complexas que envolvem nosso julgamento moral sobre o que seria vida, o que seria mente e a partir de que momento podemos afirmar que um ser é vivo e digno de certos direitos. Questões de cunho político, social, moral e filosófico estão na base de toda a obra e ignorá-las seria deixar passar uma ótima oportunidade de discutirmos de que forma podemos lidar com um futuro que é presente.

Sonia também falou de como a música tradicional japonesa e as locações realistas são elementos de conexão entre a cultura pop e as tradições mais antigas do país, de forma que nada em Ghost in the Shell é colocado sem um propósito.

Ainda assim, não é possível esperar que suas adaptações em diversas mídias tenham o mesmo cuidado, a começar pela escolha de uma artista branca e extremamente popular para interpretar um cyborg japonês em sua versão cinematográfica. Mesmo sabendo que Hollywood não produziu um filme com o intuito de agradar os fãs da HQ, pois estes assistiriam de qualquer forma, a expectativa em torno de sua adaptação é grande, já que veremos os efeitos tecnológicos em uma versão live action. Sobre isso, Sonia afirmou que toda versão não deixa de ser uma tradução de uma obra, sendo assim, mídias diferentes requerem recursos narrativos diferentes e isso não deveria ser um critério para determinar o valor de uma produção. Essa mesma ideia é compartilhada pela professora de teoria literária Linda Huntcheon, ao defender que cada versão é um trabalho inteiramente novo e original, como também já havíamos tratado aqui.

Portanto, é sempre válido lembrar que produções artísticas não estão desprendidas de seu contexto e que além do entretenimento, podem oferecer possibilidades ilimitadas de diálogos e reflexões que só nos engrandecem. De qualquer forma, só pelos efeitos especiais, Ghost in The Shell certamente já vale a pipoca!

Para saber mais:

 

http://escoladeredes.net/profiles/blogs/o-fantasma-da-maquina

http://www.iluminerds.com.br/acorde-voce-esta-em-uma-simulacao/

http://www.iluminerds.com.br/a-googlelizacao-do-mundo-e-uma-ficcao-sera/

http://www.iluminerds.com.br/o-original-e-sempre-melhor-que-a-adaptacao-sera/

http://yokai.wikia.com/wiki/Tsukumogami

 

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

Este post tem 2 comentários

    1. Daniela

      Obrigada! É sempre uma excelente oportunidade poder participar de eventos assim e compartilhar com quem não pode estar presente.

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