Feminismo como acessório e o perigo da mercantilização da causa

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Sem dúvidas, é melhor viver numa época em que se debatem assuntos sérios, do que numa época que os varria para baixo do tapete e sufocava os denunciantes. Embora ainda não tenhamos um grande êxito, e por vezes pareça que a cada passo para frente retrocedemos dois, volta e meia temos nossas vitórias.

O feminismo tem conseguido uma grande força e expressividade, e consequentemente, virou alvo da indústria. Vender “empoderamento feminino” é lucrativo, ganhar dinheiro sexualizando mulheres com a desculpa de “é empoderador, elas quiseram” dá mais grana. O mercado viu uma oportunidade, e transformou a luta num negócio. E nós caímos feito patinhas.

Permitimos que a ideologia se transformasse num acessório personalizado. O meu feminismo aceita “A” e rejeita “B”, uma “luta” personalizada, que tem por foco apenas criar e sustentar privilégios. Virou um escudo que me impede de ter que responder por certas ações, como atitudes racistas e preconceitos de classe, por exemplo. Quem critica feministas midiáticas corre sério risco de ser rebatido com “cadê a sua sororidade?”, ou então “esse é o meu feminismo, você não pode criticar só porque o seu é diferente”.

Entretanto, por mais difícil que seja para algumas mulheres aceitarem, a ideologia não é um brinco que você combina com a roupa e usa quando lhe é conveniente, e perpetuar o relativismo ideológico é sustentar uma situação que acaba prejudicando as mulheres que tem menos expressividade e dinheiro, culminando em afastá-las da causa.

Taylor Swift é favorecida pela mídia por ser branca. Mulheres negras conseguem apenas os restos, um reconhecimento ficcional, apenas para evitar críticas; “quando mulheres brancas fazem o que negras fazem há tempos, são premiadas por isso”, apontou Nicky Minaj, como Taylor respondeu? “Não incite rivalidade feminina.”. Para não abdicar de seus privilégios de branca, vale colocar a pulseirinha de feminista, e todos caíram em cima de Nicky, a preta barraqueira e anti-feminista. Taylor faz músicas e ganha prêmios incitando a rivalidade feminina e estereótipos de gênero. Feminismo sim, quando for conveniente para a venda dos meus discos, e manutenção dos meus privilégios.

A aclamada escritora, J. K. Rowling, um dos maiores exemplos que os “meritocratas” gostam de usar: de pobre, sobrevivendo de bolsas do governo, conseguiu construir um império, “porque não desistiu”. Todos sabemos que Joanne foi instruída por um editor a usar iniciais de seu nome, para que os leitores não soubessem que se tratava de uma escritora, além de várias violências que a mesma sofreu do marido, chegando a sofrer agressões domésticas. Rowling sempre se posiciona com discursos feministas, enfrenta o machista Trump; e em seu novo projeto para o Cinema, é conivente com a contratação de um ator agressor de mulheres. Não foi ela quem o contratou, foi a indústria, mas o seu papel como ativista não deveria ser um pouco mais incisivo? Será que uma nota de descontentamento com a escalação não causaria um rebuliço que poderia terminar na mudança de ator, pois a indústria poderia ficar preocupada com a queda dos lucros – sim, empresas não ligam pra causas, não ligam pra direitos, apenas dinheiro –, mas a escritora não apenas se calou sobre o assunto, como faz questão de bloquear seguidores que a questionam sobre sua falta de posicionamento. Feminismo sim, desde que não prejudique meus negócios e lucros.

MC Carol, cantora brasileira, lança música “100% feminista”, e afirma que “seduz” homens casados, mesmo sabendo que o são, porque o feminismo dela é assim. Não vou entrar na questão de “inocentar” homens que “cedem a investidas” de mulheres sendo casados. Eles são os responsáveis pela traição, eles fizeram um acordo de monogamia com suas parceiras, ELES aceitaram as investidas. No entanto, se você é mulher, feminista, e sabe que um homem é casado, e prefere se satisfazer sexualmente a pensar na outra mulher, a que será humilhada e submetida a problemas psicológicos causados por uma traição, você pode usar a desculpa que quiser, menos a de que o feminismo dá aval para isso; sem contar que as mulheres traídas são responsabilizadas, porque “não deram conta do marido”, “não satisfaziam, ele foi procurar na rua”. Há falta de empatia com a outra mulher, há falta de pensamento coletivo, mas tudo está justificado, porque “é o feminismo dela.”. Feminismo sim, desde que eu não precise ter empatia com outras mulheres.

Eu, infelizmente, poderia citar diversos casos assim, desde que permitimos que a mídia se apropriasse da luta, desde que demos aval para a mercantilização da ideologia, essas situações se multiplicaram e fortaleceram. Mas o que podemos fazer para mudar esse problema? A primeira coisa, sem dúvida, é a educação ideológica, e não aceitar a comercialização da luta. Comprar camisetas com a estampa “FEMINISMO” de lojas que utilizam trabalho escravo – principalmente de mulheres e crianças – não é luta! Educar as mulheres de que não é possível ser livre enquanto outras de nós serão prejudicadas pelo falso empoderamento, pela mídia que elege o padrão correto de militância, que dita qual deve ser o discurso utilizado, o que deve ser denunciado e o que deve ser relevado. E, principalmente, não relativizar a ideologia. Não é acessório, não é só você ou as pessoas de condição social privilegiada que devem ser livres e empoderadas. Seus privilégios não podem ser mais importantes que o feminismo, que a verdadeira libertação feminina.

As dificuldades do dia-a-dia doem, é difícil estar inserida na causa, e não é possível vencer se nos rendermos, se nos adequarmos ao que os interessados em ganhar dinheiro querem nos vender. Não é um mercado, é uma causa! Volta e meia é necessário cortar a própria carne, ter conflitos com pessoas de nossa convivência. Não é que seremos sempre exemplares, às vezes vai ser difícil nos posicionar sobre certas coisas, às vezes vai ser doloroso tomar certas atitudes. Mas é impossível avançarmos se constantemente somos puxadas para trás pelos nossos. Feminismo não é apenas sobre você, seus privilégios, suas amigas e família, nem sobre mim; é sobre todas nós, nem uma a menos.

“Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve: Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve. Sons, palavras, são navalhas. E eu não posso cantar como convém: Sem querer ferir ninguém” – Belchior.

Hypolita Prince

"Nerd" por acaso, e ainda não satisfeita com a denominação. Escrevo sobre feminismo, e outros assuntos que me interessem. Não os desenvolvo tanto quanto gostaria, mas é por preguiça de organizar as ideias nos textos.

Este post tem 2 comentários

  1. luciano

    Bravo!
    De acordo cabalmente como o que relata no seu formidável texto!

  2. Siberia

    Boa noite!
    Então, gostei bastante do texto e, por isso, quero deixar meu comentário. Todos esses problemas levantados quanto ao movimento comprovam que o feminismo em si é uma farsa. Impossível que ele haja de forma concreta, uniforme e homogêneo dentre suas seguidoras. Pois vejamos, se não for a mídia a induzir o padrão correto de militância será uma outra instância, e esta pode ser tão corrupta quanto. Quanto à relativização da ideologia, se assim não o for, será uma imposição para que todas as feministas se comportem, pensem, sintam, vivam conforme o que essa ideologia (eleita por alguém/algumas pessoas ou alguma instância) determina, e convenhamos, imposição não levará ninguém à “verdadeira liberdade”, que por sua vez, é um termo bastante subjetivo. O que é ser verdadeiramente livre? Certamente essa retórica possui uma infinidade de respostas e não será uma ideologia que conduzirá todas as mulheres à materialização fantasiosa dessa tal liberdade.
    Por fim, reforço que por mais que queiramos uma união, autonomia, empoderamento, sororidade tudo isso é uma mera representação de uma fantasia utópica de sociedade delimitada por sexo (gênero). Certas características são inerentes do ser mulher e outras são inerentes de cada personalidade carregadas de suas experiências pessoais. O feminismo está vindo para destruir as singularidades femininas e impor uma ordem que tem causado muito estrago e causará muito mais.

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