Essa Garotada Viciada em Videogames Violentos…

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22/03/2019

Se você não vive em uma bolha – na verdade, até vive… Então, vamos começar de novo: se você não teve sua internet cortada nos últimos dias, deve saber sobre o atentado ocorrido na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano (SP), no dia 13/03/2019. Dois jovens, um de 17 e outro de 25, entraram em uma escola e assassinaram 8 pessoas. Não vou descrever o ocorrido aqui, basta uma rápida busca no Google que aparecerão diversas reportagens sobre o evento. Meu objetivo não é discutir o caso em si, mas focar nas discussões que surgem sempre que algo parecido acontece – aqui ou no mundo: videogames causam violência? Videogames atrapalham a vida social?

Como motivação inicial para este texto, a fala do Vice-Presidente da República:

É muito triste e temos de chegar à conclusão por que está acontecendo. Essas coisas não aconteciam no Brasil (…). A gente vê essa garotada viciada em videogames violentos. É só o que fazem (…). Tenho netos e os vejo muitas vezes mergulhados nisso daí. A gente nunca gosta de falar ‘no meu tempo’, mas quando eu era criança, era adolescente, a gente jogava bola, soltava pipa, jogava bola de gude. Então é isso que a gente tem que estar preocupado. Lamento profundamente o que ocorreu.

(E eu lamento profundamente ter lido isto…)

Infelizmente, a fala de Mourão não está isolada; inúmeras outras se seguiram e o debate sobre jogos e violência voltou com força. Como normalmente ocorre, as pessoas dão declarações baseadas em opinião própria, limitadas as suas pequenas bolhas. Na vida privada, naquele almoço em família de domingo, não há problema. No entanto, quando se está em nível nacional, com pronunciamentos oficiais do governo, o mínimo que se espera são argumentos com base em estudos. Simplesmente tornar pública uma perspectiva pessoal, e ultrapassada, não ajuda em nada a resolução do problema.

Que há violência nos jogos (dentro deles), não se pode negar. Temos grosseria para todos os gostos: linguagem chula, agressão, sangue, morte, desmembramento, crime, explosão e por aí vai. Mesmo assim, é injusto generalizar. Pais e grupos sociais (e membros do Executivo), precipitadamente, concluem que todos os videogames são violentos – mas temos jogos com pegada mais artística, como Journey, ou narrativa, como Gone Home, e ainda os casuais, como qualquer “joguinho” de smartphone. De fato, a representação gráfica, dramática e visceral da violência chama muito atenção, praticamente monopolizando os olhares.

No entanto, a representação gráfica não é o único atrativo para o uso de conteúdo violento. Devido a especificidades da linguagem dos games (mecânicas, regras, interface, interatividade), é mais fácil retratar a violência do que outras interações humanas, como conversação e romance. Assim, a violência como tema se intensifica: desenvolvedores não exploraram métodos diferentes; jogadores compram os mesmos tipos de jogos; e distribuidores concluem que jogos diferentes são difíceis de vender – é looping da violência…

Sob outra perspectiva, não é a violência em si que é atrativa, mas o prazer gerado após uma ação bem sucedida (neste caso, o ato violento). Em jogos, um de seus elementos básicos é a competição. Ganhar, vencer, sobrepujar servem para satisfazer necessidades básicas do indivíduo, que, segundo a “Teoria da Avaliação Cognitiva” (Cognitive Evaluation Theory – CET), são Autonomia (o poder de fazer as suas próprias escolhas), Competência (a capacidade de executar o comportamento de forma eficaz) e Vínculo (conexões sociais autênticas com outros). A satisfação destas necessidades é essencial para a motivação intrínseca do jogador. O ser humano possui sete sistemas básicos emocionais: Busca, Raiva, Medo, Desejo, Ajuda, Sofrimento e Engajamento Social. O sistema de Busca, tradicionalmente chamado de “sistema cerebral de recompensa”, é essencial para os animais adquirirem os recursos necessários para a sobrevivência. Na sua forma pura, ele provoca exploração intensa e entusiasmada e apetite por excitação/aprendizado antecipado. Quando totalmente excitado, preenche a mente com interesse e motiva os organismos a se esforçarem na procura das coisas que precisam, almejam ou desejam. Nos seres humanos, este sistema gera e sustenta a curiosidade desde o mais comum até nossos mais altos empreendimentos intelectuais. Orientado pela liberação de dopamina, que causa sensação de prazer, o Sistema de Busca persuade os animais a adquirirem os recursos necessários para sobrevivência e, também, promove o aprendizado gerando uma ansiedade por meio do estabelecimento de relações entre eventos. Ou seja, ele cria uma aflição em saber sobre o que pode acontecer e isto estimula o indivíduo a seguir em frente, explorando os recursos e aprendendo. Quando a Busca é frustrada, a Raiva é despertada – ela começa devido à restrição à liberdade de ação.

Em suma, jogos criam um ambiente competitivo, que simula a sobrevivência (da personagem) ou, pelo menos, cria objetivos a serem perseguidos. Ao introduzir elementos que atrapalham de alguma maneira este esforço, tanto psicológicos (necessidade básica – satisfação – dopamina – prazer) quanto fisiológicos (busca – recompensa – dopamina – prazer), o jogador precisa agir para “sobreviver”. E a violência é uma forma de responder a essas adversidades. Não é a única, mas é fartamente utilizada por responder bem aos empecilhos, principalmente em momentos de raiva. Logo, o desenvolvedor de jogos não cria a violência como ferramenta descontextualizada, ele responde a demandas físicas e psicológicas do indivíduo.

A questão é: se a violência não é uma regra, por que a utilizam em demasia? Bem subjetivo, mas permite duas possibilidades: 1) escolha pessoal do desenvolvedor; e 2) resposta fácil e imediata ao problema, pois envolve ação física pura – que é mais fácil de representar em videogames.

Dito isto – que jogos podem, sim, ser violentos, mas não em essência – passaremos para a violência como consequência da prática de jogar. Este é um debate antigo – e chato, pois sempre (sempre) envolve achismos, preconceitos e ampla desinformação. Diversos jogos polêmicos deram estopim para discussões desse tipo. Os primeiros, e que realmente ocasionaram mudanças na época, foram Mortal Kombat e Night Trap. Depois de muita “conversa”, em setembro de 1994, foi criada a Entertainment Software Rating Board (ESRB) a fim de classificar os jogos de acordo com a idade. Esta é uma excelente resolução (também utilizada em outras indústrias), pois protege crianças e adolescentes de conteúdos prejudiciais em potencial.

Neste post, publicado em março de 2013, faço um breve comentário sobre os argumentos que utilizam pesquisas formais para comprovar posicionamentos. No geral, há estudos que confirmariam as duas frentes: games estimulam comportamentos violentos e games não geram violência. Nestes casos, o que define a escolha por determinada pesquisa é a corroboração de argumentos preconcebidos. Eu não gosto de videogame, logo, citarei o estudo que confirma minha crença – o nome disso é viés de confirmação.

No fim das contas, os games seriam tão culpados pela violência quanto filmes, peças de teatro, notícias, livros, séries, novelas, podcasts – tudo que envolva representação ficcional de um real. E nunca estariam sozinhos. De fato, produtos de entretenimento podem funcionar como catalizadores ou gatilhos, mas de forma nenhuma seriam os únicos responsáveis. Afinal, o comportamento humano é um sistema complexo que envolve idade, sexo, condição social, sociabilidade, biografia, criação, ambiente particular, contexto social, contexto cultural, influencias…

Normalmente (sim, generalizei – my bad…), indivíduos que levianamente associam atos violentos com games fazem isto porque é mais fácil culpar aquilo que não entendem, tanto pela obscuridade quanto por não gostarem – afinidade, ignorância ou incapacidade cognitiva, tanto faz. Felizmente, a tendência é isto parar, pois aqueles que não vivenciam minimamente a cultura gamer estão desaparecendo (sim, morrendo mesmo). Mas enquanto isto não acontece, temos a obrigação de esclarecer certas imbecilidades ditas por aí. Como a segunda parte da fala do Vice, Mourão:

Quando eu era criança, era adolescente, a gente jogava bola, soltava pipa, jogava bola de gude. Então é isso que a gente tem que estar preocupado.

Ai, ai… A boa e velha nostalgia como parâmetro para avaliar o presente (dos outros)… Tratei rapidamente sobre isto neste post, quando afirmo que “a imutabilidade do passado aparentemente o credenciaria como melhor solução para o presente; é um esquecimento voluntário dos pontos negativos para deixar apenas aquilo que mais agrada.” Neste pensamento, o passado sempre é melhor, pois podemos moldá-lo de acordo com nossos interesses – neste caso, o interesse é ter razão…

Ai, ai… A boa e velha nostalgia como parâmetro para avaliar o tempo presente (dos outros)… Tratei rapidamente sobre isto neste post, quando afirmo que “a imutabilidade do passado aparentemente o credenciaria como melhor solução para o presente; é um esquecimento voluntário dos pontos negativos para deixar apenas aquilo que mais agrada.” Neste pensamento, o passado sempre é melhor, pois podemos moldá-lo de acordo com nossos interesses – que, neste caso, é ter razão…

Assim como os videogames, a internet e o ciberespaço são constantemente criticados e comparados a um passado mais feliz, analógico, material. Uns dirão que a infância de Mourão foi muito melhor que a de seus netos, pois ele brincava de bola, pipa e bolinha de gude… Que fofo… Seus netos não sabem o que é bom, pois “esse negócio de videogame é preocupante, taoquei…”

Coincidentemente (ou não), recebi, via Whatsapp, um texto intitulado “Os filhos do quarto! Uma geração condenada ao isolacionismo virtual e ao vazio existencial perpétuo”, da psicopedagoga Cassiana Tardivo. Como não devemos acreditar no Whatsapp, principalmente nos grupos de família (acho que aprendemos alguma coisa na última eleição, não?), pesquisei sobre a autora na internet. De fato, ela existe e o texto também – com algumas alterações, como o título que, originalmente, é apenas Os Filhos do Quarto. De qualquer maneira, o autor ou origem do texto, neste caso, não importam, pois eles seguem o batido discurso que demoniza a tecnologia e o contemporâneo.

O texto parece culpar as crianças pelo isolamento. Da mesma forma que demonizar apenas a tecnologia é injusto, os reais culpados aqui seriam majoritariamente os pais, que se aproveitam das facilidades digitais para ocuparem o tempo dos filhos e ficarem “livres”. Como pai, reconheço a liberdade que um smartphone permite ao se jantar fora, por exemplo – minha filha, após comer, pega meu celular e me deixa jantar em paz. O mundo digital é tentador, pois nos permite manter a liberdade que tínhamos antes. De qualquer forma, para chegar ao ponto de um jovem ficar “trancado em seu mundo”, é porque os pais se afastaram da vida do filho tempo suficiente para isso.

Uma trecho que gostaria de destacar é:

Convido você a tirar seu filho do quarto, do tablet, do celular, do computador, do fone de ouvido, convido você a comprar jogos de mesa, tabuleiros e ter filhos na sala, ao seu lado por no mínimo 2 dias estabelecidos na sua semana a noite.

A minha maior crítica, e que está intimamente relacionada aos falhos julgamentos sobre osvideogames, é o convite feito pela autora – e que revela aquele pensamento nostálgico de que a minha infância é melhor que a sua. Que tal, ao invés de “tirar seu filho do quarto”, o convite seja o de entrar nele? Que tal se interessar minimamente pelo que eles gostam e não impor aquilo que você acha que eles devem gostar ou consumir?

É um erro considerar o analógico como a salvação, que o retorno ao “clássico” e “tradicional” seja a saída. O digital faz parte da vida e deve ser encarado assim. Os pais não precisam “tirar os filhos do quarto”, trazendo-os exclusivamente para as brincadeiras de rua ou brinquedos de madeira, basta enviar um dm no Instagram, assistir ao mesmo programa na Netflix, montar um squad no Fortnite, assinar os mesmos canais no Youtube e por aí vai. Ou seja, realmente estar junto dos filhos e conhecê-los. Como amigos de verdade. Uma vida plena não precisa ser cópia dos pais – até porque, se fosse, nunca sairíamos do lugar…

Sei que é cruel escrever isso, mas toda vez que alguém aparece e relaciona os jogos com a violência, principalmente envolvendo crianças e adolescentes, ou lamenta sobre como a infância atual está perdida, está atestando sua posição de responsável ausente. Os netos do Mourão estarem mergulhados nestes “videogames violentos” só ocorre porque seus responsáveis assim o querem ou deixam. Jogos violentos, como Call of Duty, possuem classificação etária de 18 anos. Da mesma forma que – acredito eu – o Mourão, e qualquer indivíduo responsável, não deixaria crianças assistirem a filmes pornô, praticarem tiro ao alvo com armas de verdade ou entrarem em casas de massagem, também não deveria deixar que jogassem jogos de adultos. Deixe-me repetir: JOGOS DE ADULTO. Sim, jogos para adultos; videogames são consumidos por adultos – na verdade, já que adoram uma pesquisa para confirmar as coisas, aqui vai um dado na sua cara: o público gamer está majoritariamente na faixa dos 30 anos…

O problema não é a violência dos jogos ou o suposto isolamento digital, mas sim, a falta de um efetivo acompanhamento da vida dos pequenos e, também, da vigilância dos locais verdadeiramente maléficos: redes e fóruns tóxicos que incentivam homofobia, misoginia, racismo, suicídios, assassinatos e qualquer ato extremista – e não estou excluindo os chats de jogos online

Ou vocês acham que as armas compradas pelos assassinos de Suzano foram pagas com V-Bucks…?

Gustavo Audi

Se fosse uma entrevista de emprego, diria: inteligente, esforçado e cujo maior defeito é cobrar demais de si mesmo... Como não é, digo apenas que sou apaixonado por jogos, histórias e cultura nerd.

Este post tem um comentário

  1. Maria do Carmo M. Audi

    É isso ai, Guto! Falou muito bem sobre esse assunto, violência × game!
    Tb foi bom ter lido o texto ” Os filhos no quarto”, teu comentário foi perfeito qdo disse pros pais entrarem no quarto com os filhos e não tirá- los de lá! Muito bom!! E muitas outras observações legais! Parabéns!!

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