Entrevista com Renata Farhat, da Peirópolis

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Essa entrevista com a Renata foi publicada originalmente aqui e agora trago para os Iluminerds devido à sua relevância para o meio dos quadrinhos.

Ela me concedeu a entrevista por e-mail,  na época em que a Peirópolis publicou umas das mais importantes obras de nossa literatura, Macunaíma, que entrou em domínio público em 1° de Janeiro de 2016 e esta é a sua primeira quadrinização.

A edição de Ângelo Abu e Dan-X transporta o leitor para a época tupiniquim no Brasil, preservando o espírito da obra ao mesmo tempo em que se adapta à linguagem moderna. “A adaptação para os quadrinhos aumenta a procura por esse tipo de leitura e aproxima os jovens. E também, espinho que ‘pinica’ de pequeno já traz ponta. Quanto mais versões, mais vasta a realidade”, afirma Abu.

Como surgiu a ideia da editora? Você já tinha uma relação com HQs antes? Gostaria que me falasse um pouquinho sobre isso.

Aprendi a ler HQ com minha mãe, que todo sábado, depois do almoço, me dava um dinheirinho para comprar 4 gibis: Mandrake, Fantasma, Cebolinha e Luluzinha. Às vezes comprava Recruta Zero também, e outras, Riquinho. Passava as tardes mornas ao lado dela na cama lendo enquanto ela descansava. Como editora, usei HQ sempre que pude, especialmente em livros informativos, sobre cidadania, a questão dos resíduos sólidos e do desperdício de alimentos. A Editora Peirópolis foi criada há 23 anos com uma missão bem definida, que é inclusive impressa em todos os livros. As principais linhas editoriais são os livros de não-ficção sobre meio ambiente, desenvolvimento social e educação, e a linha de literatura para crianças e jovens, em que a Peirópolis se destaca. Nesse trabalho, que envolve o livro para a criança e  jovem e a formação do leitor, acabamos por publicar, em 2005, a quadrinização de Dom Quixote, de Caco Galhardo, que inaugurou a coleção Clássicos em HQ, única coleção da editora dedicada aos quadrinhos, por enquanto.

 

Um dos pontos fortes da Peirópolis é a publicação de adaptações literárias, certo? Como é o processo de seleção das obras e das adaptações? Quem está envolvido nessa seleção?

Nós temos uma lista de obras que gostaríamos de quadrinizar, mas a seleção mesmo é feita a partir do histórico de leitura do próprio quadrinista. Entendemos que o envolvimento com uma adaptação é muito visceral, e que o artista deve ter alguma relação anterior com a obra que vai quadrinizar. Na história da coleção há muitos casos assim. Há inclusive casos de autores que quadrinizaram a obra mais de uma vez.

 

Desde a adoção das adaptações nos PCNs, o mercado  brasileiro cresceu bastante nesse aspecto. Quais são as principais vantagens de se trabalhar com adaptações literárias em comparação com os outros títulos?

A partir de 2006 o Governo passou a ser explícito nas chamadas aos editores para compra de livros e os editais se referem nominalmente a adaptações de obras clássicas da literatura universal adaptadas para quadrinhos, nos fazendo crer que os acadêmicos das universidades federais contratados como pareceristas para os programas entendem perfeitamente a função dessa categoria de publicação na formação do leitor literário. Então, abriu-se realmente um mercado para isso a partir dos editais de compras públicas. Ao mesmo tempo, alinhado a tal tendência, vê-se que muitas escolas particulares têm trabalhado as obras clássicas desta forma: apresentando o texto original e uma releitura em outra linguagem, seja teatral, cinematográfica ou em quadrinhos. As adoções crescem a cada ano.

 

Qual é a maior dificuldade em relação a estas HQs? (Você mencionou sobre Macunaíma e a questão do domínio público. Gostaria de saber um pouco mais)

Apenas quando a obra está em domínio público é possível assumir que a remuneração correspondente aos direitos do autor seja destinada ao autor da quadrinização. Mesmo assim, se a obra for estrangeira, o desafio é buscar uma tradução sacramentada para o português, e negociar os direitos de uso de trechos dessa tradução com seus autores. Toda a remuneração variável referente aos direitos do autor deve ser compartilhada entre os autores dos quadrinhos e o autor da tradução  mesmo que a obra esteja em domínio público. Se ela não está em domínio público, aí a coisa pega.

A adaptação em quadrinhos de Macunaíma foi encomendada para ser publicada em 2016, quando a obra entraria em domínio público – o que foi feito. No entanto, como ela ficou pronta bem antes e a FLIP de 2015 homenageava Mário de Andrade, nós procuramos o herdeiro de Mário para obter os direitos de publicação da HQ, mas fomos informados de que os direitos de quadrinizar a obra já haviam sido cedidos com exclusividade para outra editora. Isso gerou uma enorme frustração nos artistas, que fizeram esta HQ para circular durante o evento: http://www.editorapeiropolis.com.br/2016/01/16/antropofagofagia-2/ No final de janeiro, lançamos a de Angelo Abu e Dan X, a primeira quadrinização da obra nesse período. Antes disso, houve a quadrinização paródica de 1984 de Aguiar e outros, nem sei se autorizada. As demais quadrinizações prometidas ainda não foram publicadas.

E o público? A Peirópolis tem uma ideia de quem compõe seu público leitor de adaptações?

Na coleção Clássicos em HQ, há muita variedade: de estilo, de gênero e até mesmo de objetivos da quadrinização. Portanto, há álbuns para todos os públicos; todo leitor que gosta de literatura, de arte ou de quadrinhos. Acredito que a arte dos quadrinhos, seu resultado estético, é que vai fisgar o leitor, junto, claro, com o prestígio de obra e do autor. São infinitas as possibilidades humanas de reler e subjetivar e, por meio de suas também infinitas expressões, compartilhar essa leitura com outros. Na coleção Clássicos em HQ, Os Lusíadas e Dom Quixote, Conto de escola e I-Juca Pirama, por exemplo, são adotados no ensino fundamental; Odisseia e Divina Comedia têm sido adotados por jovens do ensino fundamental 2 e médio, no mercado escolar,  e estudantes de literatura, filosofia, tradução, nas universidades.

 

Qual foi o primeiro título a ser disponibilizado em formato digital? Como foi a experiência?

Disponibilizamos, a partir de 30 de janeiro de 2016, os 15 títulos da coleção clássicos em HQ em formato epub para todas as lojas: Amazon/Kindle, Apple/IBooks, Cultura/Kobo, e  Googleplay, além de várias outras plataformas de comercialização de e-books. O mercado ainda é muito tímido, mas temos a impressão de que a disponibilização das obras no meio digital ajuda a divulgá-las. Por essa razão, junto com a venda dos álbuns, disponibiizamos também em epub o catálogo da coleção, que tem entrevistas com os artistas, textos sobre os autores clássicos, além de trechos das quadrinizações. O mesmo catálogo está disponível gratuitamente em http://www.editorapeiropolis.com.br/arquivos/classicosemhq.pdf. 

 

Você tem um adaptação favorita entre as que publicou? (pode contar? hehe)

Tenho. Todo dia é uma diferente. 🙂

Além disso, há sempre os álbuns que estão em produção – eles me mobilizam muito. Porque editar é ler, reler e acompanhar a construção do álbum, testemunhar de forma quase inaugural a leitura de um artista sobre uma obra que você já leu. Mas que, de uma forma incrível,  se reapresenta sob o olhar e a pena de um outro leitor, alguém que também nunca deixou de ler esta obra. 

 

Tem alguma que gostaria muito de publicar e ainda não conseguiu?

Sim, queria muito ter publicado Guimarães Rosa anos atrás, mas as condições de direitos autorais eram bastante restritivas. Fiquei muito feliz de ver a adaptação do Guazzelli e do Rodrigo Rosa numa lindíssima edição. Nessa obra, Guazzelli fez o roteiro. Na Peirópolis, ele publicou dois álbuns: Demônios, roteirizado e desenhado por ele, e Eu, Fernando Pessoa, roteirizado por Susana Ventura e desenhado por ele.

 

Sobre o formato digital, quais são os desafios de se trabalhar com uma nova mídia?

Além de publicar os livros em epub, nós estamos disponibilizando as obras no sistema de streaming, pela Nuvem de Livros. A dificuldade do meio digital é conhecer os modelos de negócio possíveis e acompanhar seu amadurecimento. Pois é muito fácil publicar hoje em dia, todo mundo pode criar e colocar na rede. O difícil é fazer essa publicação se transformar num produto, que  remunere a cadeia criativa e possibilite o reinvestimento em novas obras.

 

Sobre a ideia que muitas pessoas ainda têm de que HQs facilitariam um conteúdo e comprometeriam a apreensão do verdadeiro sentido da obra original, o que você pensa a respeito?

Toda quadrinização literária é uma releitura. Não é absoluta, e nem é a única. Gosto muito da definição da Profa. Tereza Virginia Barbosa, professora de grego da UFMG que coordena um grupo de pesquisa sobre tradução para quadrinhos. Segundo ela, a literatura produz imagens, com suas metáforas e demais figuras de linguagem, que podem ser traduzidas em quadrinhos. Ou seja, mais do que traduzir a mensagem textual, o que se traduz nos quadrinhos são as imagens que esse texto produz na cabeça do leitor. Assim, se o leitor é um artista, ele tende a naturalmente lançar-se na representação das imagens que o texto produz. Não acredito que as histórias em quadrinhos sejam sempre facilitadoras de conteúdo: isso depende do objetivo e da intenção do artista. As quadrinizações de Odisseia e de Divina Comedia ajudam o leitor a adentrar o universo de Homero e Dante, sim, mas apresentam tantas camadas de sentido que podem facilitar ou complexificar – a depender de quem lê.

 

Macunaíma é o mais recente lançamento da editora. Gostaria que me falasse um pouco sobre a escolha da obra, dos autores, do processo…  Também foi disponibilizado em vários formatos, certo? Como a editora está se preparando para lidar com esse novo modelo de negócio?

A história de Macunaíma em quadrinhos está contada em quadrinhos no posfácio do próprio álbum e neste link: http://www.editorapeiropolis.com.br/2015/07/03/antropofagofagia/. Foi muito divertido trabalhar com o Abu e vê-lo se lambuzando de Mário de Andrade, a ponto de até hoje conversar comigo em Macunaimês! 🙂 A receptividade ao álbum tem sido surpreendente, com matérias no Globonews Literatura, na Folha, Estadão, e principais jornais do País. Estamos bem felizes com o resultado. Agora estamos investindo nas escolas, enviando exemplares de avaliação para possíveis adoções.

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

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