Como as tecnologias digitais ajudam na produção de lixo

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Antenor acabou de completar 70 anos e se aposentou. Está com uma saúde de dar inveja em muito garoto e busca por novas atividades para ocupar o tempo livre – que agora é a maior parte do dia. Em um canto esquecido de casa, há um computador que seu neto, Wellington, havia abandonado alguns meses antes. Antenor resolve, então, dar uma chance àquela máquina esquisita. Após algumas semanas explorando a interface, Antenor, com a ajuda de Wellington, cria um perfil no Facebook. Alguns dias depois, sozinho, descobre o Photoshop. Orgulhoso de suas obras de montagem, decide publicá-las nas redes sociais. O que a gente não sabia até Antenor começar a compartilhar seus pensamentos no Facebook  é que ele é super fã de Charlton Heston. Além disso, como militar, batia nos estudantes “vagabundos” durante a ditadura, acha que homossexualidade é doença e votou em Bolsonaro (e curtiu seu perfil).

Como Antenor, há diversas outras pessoas que aproveitam a facilidade de manipulação das tecnologias digitais para criar conteúdo online. Com interfaces cada vez mais intuitivas, simples, previamente programadas e, mais importante, socialmente valorizadas, observamos uma inundação de textos, vídeos, áudios e fotos. Todo este material é facilmente distribuído, editado, comentado, compartilhado e divulgado.  Com ferramentas acessíveis, a internet se tornou um campo atrativo para que todos compartilhem seus pensamentos e ideias. Até imbecis como Antenor.

Vamos polemizar?
Vamos polemizar?

Podemos pensar que isso é um ponto positivo? Sim, claro. Temos mais pessoas se expressando, interagindo. A informação está circulando de uma maneira dinâmica e global. Mas será mesmo? Esta percepção não é um pouco parcial?

A partir da facilidade de uso das ferramentas de criação de conteúdo (editores de texto, vídeo, áudio e imagens; smartphones e tablets) e de divulgação do mesmo (email, blogs, wikis, Twitter, Youtube, Facebook, Instagram etc.), realmente notamos um aumento da participação do indivíduo sobre os tópicos discutidos nas mídias. Por outro lado, esta participação não significa que está contribuindo para uma sociedade mais justa, igualitária e agradável.

Há quem afirme que atualmente vivemos um período conscientizado, em que as pessoas debatem temas importantes para a sociedade, como política, violência e preconceito. Contudo, o que percebo é um monte de gente compartilhando a própria visão de algo sem, de fato, abrir para possibilidades de mudança. É um esforço de convencimento ao invés de um esforço de debate. Todos estão certos. Sempre. Não há uma mínima chance de o que você acredita estar ligeiramente equivocado. A satisfação está em persuadir o outro.

Muitas vezes (e na maioria), basta ler o título da matéria que o resto é complementado a partir das crenças individuais pré-existentes. Esquecem que há diversas estratégias de marketing sendo utilizadas a fim de criar um título atraente, como o número de caracteres ou o uso do imperativo. E nem sempre o título informa o que de fato o texto está passando. Os “compartilhadores de plantão”, na ânsia de expor o próprio ponto de vista, leem o cabeçalho e, se ele estiver de acordo com o que acredita, escrevem um comentário agressivo e está pronto para publicar. Dane-se o resto. Inclusive a data em que o suposto texto foi elaborado.

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Simples assim?

Outra “dica” para garantir o sucesso de uma informação é a ideia de que uma imagem é mais bem percebida e assimilada que um texto. Por isso, temos esta profusão de memes. Eles são tão resumidos, com linguagem universalmente acessível, que se tornam idiotas e vazios. Normalmente, são extremamente parciais, pois o objetivo é chamar atenção para um recorte específico e, assim, criar a ilusão de que o todo também segue aquela lógica. É o inverso de um sistema complexo: um microelemento representa o todo. Logo, um meme sobre uma questão pontual é capaz de definir toda uma classe de pessoas, independente de suas idiossincrasias.

Uma imagem só vale mais do que mil palavras quando o seu objetivo é sensacionalista. Se o objetivo é chocar, e não informar, basta publicar a foto de um viaduto com pedras embaixo e a frase: “é assim que a prefeitura lida com os pobres”. Para que pesquisar sobre os programas de auxílio ou as tentativas anteriores? O Antenor que fez esta montagem sabe que os mendigos que dormiam ali foram encaminhados a abrigos, mas preferem voltar e voltar e voltar? Ou ainda, ele sabe se os mendigos moravam ali por serem pobres mesmo ou por terem problemas mentais? Nada é 8 ou 80.

O que quero dizer é que há mais variáveis no sistema. O buraco é mais embaixo. Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia. Não é frutífero escolher a informação que mais lhe agrada e simplesmente divulgá-la como se não houvesse mais nada relacionado.

Neste frenesi de acontecimentos, temos de ter opinião sobre tudo. E rápido. Ou seremos omissos. Você não comentou sobre a Grécia? Alienado! Você não se posicionou sobre a redução da maioridade penal? Omisso! Você não curtiu a foto do gatinho sendo maltratado? Insensível! Uma pena que a exigência seja um discurso com base em opinião e não um posicionamento com base em análise de evidências ou troca de informação relevante. A apuração de dados deveria ser a base da construção do pensamento, não o achismo.

Estamos vivendo um período de chatos. Pessoas que só reclamam, criticam, falam mal, denigrem e por aí vai. Ao mesmo tempo em que você tem que se posicionar, sua posição é constantemente vigiada e altamente criticada. Não importa o que você tenha dito, sempre tem alguém para encher teu saco. Há esta equivocada visão de que para parecer sábio, deve-se criticar negativamente ou discordar – ser do contra. Por quê? É tão fácil apontar o lado negativo! Difícil mesmo é buscar os pontos positivos, as relações benéficas ou como tirar proveito daquilo.

É muito mais gratificante receber elogios por um texto positivo que por um descascando alguma coisa…

Mas toda esta produção não está estimulando as pessoas a pensar? Realmente, há quem afirme que estamos lendo e escrevendo mais. Ou seja, estamos consumindo e produzindo informação. Será mesmo? Eu vejo este processo de outra maneira:

superestimulação > processamento raso > resposta apressada

Sendo que o problema não está na superestimulação ou no processamento rápido, mas sim, na resposta apressada.

Eu costumo dizer: se você não tem nada de interessante para falar, fique calado.

O que de fato está acontecendo é a produção de lixo. Lixo de direita, lixo de esquerda, lixo que ama gatinhos, lixo que gosta de pratos de comida, lixo revoltado, lixo relaxado, lixo de celebridade e por aí vai. Lixo de celebridade é um caso interessante. Para muitos, basta ser famoso para ter credibilidade e poder escrever qualquer porcaria que as pessoas vão aplaudir como se fosse uma obra prima. Temos muitos exemplos por aí…

As pessoas acham que basta escrever um comentário “inteligente” para iniciar uma sequência de eventos que levará a uma mudança. Sinto muito, ser ingênuo, mas se você não escreveu algo que os outros já acreditam, eles estão cagando baldes. Podem até achar interessante, contudo, tentarão ao máximo te desmascarar ou, simplesmente, ignorar o que você expôs.

11692719_906438492750997_6523862646601337946_nPortanto, você é um idiota se acredita que post em Facebook é uma ação engajada e que “está fazendo a sua parte”. Denunciar no Facebook é mimimi para aparecer. Um caso engraçado foi uma pessoa que publicou um vídeo de uma mulher espancando uma criança. Ela pedia por compartilhamentos a fim de que aquela denúncia chegasse às autoridades e a pessoa fosse punida. Pera aí. Por que, então, ela não levou diretamente às autoridade? Por que jogar online e esperar as consequências?

Ou seja: a não ser que você seja um formador de opinião com força política e um argumento realmente forte (Rafinha Bastos e Felipe Neto não estão incluídos), reclamar no Twitter ou Facebook só alcançará seus amigos. E eles te conhecem. Então, não consideram que sua opinião tenha força transformadora. Sorry

Os Antenores estão aí. E são mais que novos usuários de tecnologia, são deslumbrados com a ampla visibilidade que podem ter na internet. Querem aparecer, falar, reclamar, convencer. E não querem ser enfrentados, pois se consideram sábios, conhecedores da Verdade Absoluta, atualizadores dos Vedas. Transcenderam à Sabedoria com base exclusivamente na “experiência de vida” (seja lá o que isso signifique).

Em suma, as montagens de Facebook, denúncias no Twitter, vlogs do Youtube, etc. não chegam nem perto da complexidade que é a realidade social e estão longe de representar agentes de mudança.

Na internet, enquanto não nos dispormos a investigar, analisar, ponderar e, somente depois, exteriorizar, tudo será entretenimento sem valor revolucionário.

Inclusive os textos do Duvivier.

Gustavo Audi

Se fosse uma entrevista de emprego, diria: inteligente, esforçado e cujo maior defeito é cobrar demais de si mesmo... Como não é, digo apenas que sou apaixonado por jogos, histórias e cultura nerd.

Este post tem 4 comentários

  1. JJota

    O que me enoja não é a ignorância, mas a desonestidade intelectual. É você saber que está errado, que não tem como ignorar, e se fazer de desentendido, pintando um mundo ou um painel que não existe, filtrando informações para que a visão desonesta prevaleça e, aí sim, alcance os burros – ou preguiçosos – e estes concordem com você.

    Lembro do sujeito que negava a existência do Holocausto, alegando, principalmente, a impossibilidade tecnológica e financeira da Alemanha nazista para realizar aquilo durante uma fase crítica da Segund Guerra Mundial.

    1. Gustavo Audi

      Parece que, por a informação estar aparentemente disponível, todos devem saber as respostas. As pessoas sentem vergonha de admitir que não sabem algo.
      Elas esquecem que não saber é o primeiro passo para aprender. E isso é o máximo…

      1. JJota

        Sempre achei este o verdadeiro significado da expressão “a ignorância é uma bênção”.

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