A parte obscura de nós mesmos – uma história dos perversos.

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Embora os vilões das HQ sejam personagens fictícios, sabemos que suas características mais perturbadoras possuem forte conexão com transtornos psiquiátricos ou com a perversidade e perversão. Não à toa, além de serem objetos de pesquisa em trabalhos de psicologia e psiquiatria, são motivos de debates fervorosos acerca de suas personalidades e ações.

Existem inúmeros artigos e livros que podem nos fornecer pistas sobre como interpretar os comportamentos que muitas vezes parecem absurdos demais para serem reais, porém, Elizabeth Roudinesco em seu livro O lado obscuro de nós mesmos nos lembra que todos podemos ser perversos, dadas as devidas circunstâncias. Qualquer semelhança com o roteiro de Piada Mortal, que acaba de ganhar uma versão em animação, não é mera coincidência, afinal, é disso que se trata, não é mesmo? Apertando os gatilhos certos, até um representante cuja retidão de caráter é inquestionável, pode se tornar um vilão.

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É curioso pensar em perversão e não assumir automaticamente uma postura de voyeur em relação ao assunto. Digo voyeur porque, quando nos referimos a qualquer ato que infrinja a moral vigente, nos colocamos automaticamente do lado de fora do evento, como se a perversão não fizesse parte de nossa personalidade.  Nossos discursos são deliberadamente colocados em terceira pessoa, de modo que os perversos possam ser devidamente julgados e apontados.

“Quando você aponta um dedo, os outros três apontam para você”, não é o diz o ditado popular? Dessa forma, a psicanalista Elisabeth Roudinesco nos lembra que a perversidade é acima de tudo, uma característica humana, ou seja, inerente a todos nós. Ainda que possamos considerar níveis e âmbitos de perversão, essa característica é o que nos faz lembrar tudo de mal que existe em nossa humanidade e que, apesar da necessidade de combatermos suas variações consideradas abjetas, sua erradicação destruiria uma das distinções nas quais se baseia a civilização, que é justamente o antagonismo entre o bem e o mal.

Quantas vezes não ouvimos citações que nos advertem que, sem a sombra, não seríamos capazes de reconhecer a luz? Não seria o mesmo com esse lado obscuro que insistimos em sufocar? Obviamente, se todos dessem vazão às perversidades que tão cuidadosamente procuramos ignorar em nossas mentes, não seria possível o convívio em sociedade, porém, se esta perversidade puder ser traduzida em forma de arte, poderíamos chamá-la de sublime, de acordo com as observações de Roudinesco.

Muitas vezes temos a sensação de que se alguém pratica um ato de perversidade o qual não conseguimos deixar de observar, esta simples observação não nos torna seres perversos. Será? No filme 8mm, com Nicolas Cage, a trama gira em torno de filmes produzidos com requintes de sadismo, onde as vítimas sofrem todos os tipos de abusos diante das câmeras para apreciação de telespectadores. O protagonista acaba se envolvendo em uma investigação que o leva a um submundo de perversões que são consumidas por pessoas que “apenas” assistem às torturas, estupros, assassinatos. Essas pessoas se comportam como se não fizessem parte do esquema, da mesma forma que nos comportamos diante de um acidente, por exemplo. Sentimos pena, sofremos, mas não deixamos de olhar. A curiosidade sempre nos leva à procura de nossos extremos, como se quiséssemos saber até onde somos capazes de ir, porém, nem sempre apreciamos o destino.

“Que faríamos se não pudéssemos apontar como bodes expiatórios – isto é, perversos – aqueles que aceitam traduzir em estranhas atitudes as tendências inconfessáveis que nos habitam e que recalcamos?”

ROUDINESCO, p.07

Talvez a maior dificuldade ao abordarmos a perversão seja conseguir dissociá-la da maldade pura e simples. O senso comum nos diz que perverso é alguém que acima de tudo é mal, porém, em seu livro A parte obscura de nós mesmos, a psicanalista Elizabeth Roudinesco procura traçar a história de alguns perversos e nos mostra que, embora a maldade possa ser uma característica encontrada na perversão, ela não é necessariamente um sinônimo da mesma. Dois bons exemplos citados pela psicanalista para ilustrar a questão são os da santa Catarina de Siena – ao afirmar nunca ter comido nada tão delicioso quanto o pus dos seios de uma cancerosa -, e da santa Marguerite-Marie Alocque que, além de limpar o vômito de uma paciente transformando-o em sua comida, sorveu as matérias fecais de uma disentérica declarando que o contato bucal suscitava nela uma visão de Cristo mantendo-a com a boca colada em sua chaga. Essas práticas de emporcalhamento e autoflagelação que muitos consideravam uma maneira dos místicos se identificarem com a paixão de Cristo seriam classificadas posteriormente como perversões.[1]

“Confundida com a perversidade, a perversão era vista antiga­mente — em especial da Idade Média ao fim da idade clássica — como uma forma particular de abalar a ordem natural do mundo e converter os homens ao vício, tanto para desvirtuá-los e corrompê-los como para lhes evitar toda forma de con­fronto com a soberania do bem e da verdade”.

ROUDINESCO, p.10

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Se, para Freud, a perversão está relacionada à estrutura psíquica na qual o prazer só pode ser obtido através de um único objeto ou ato, a etimologia da palavra nos lembra que em sua origem latina pervertere significa algo ruim, ao contrário do normal, corrompido. Por isso a importância de nos situarmos cultural e historicamente, visto que a norma é sempre cultural e esta se move, se molda e se restaura ao longo da História de forma contínua.

Muito embora o surgimento da psicanálise tenha contribuído imensamente para as mudanças ocorridas nos códigos penais europeus a partir do século XVIII, algumas mudanças extremamente significativas já vinham ocorrendo muito antes, principalmente no que cerne os suplícios praticados como punição de infratores e o filósofo francês Michel Foucault faz uma análise histórica sobre estas mudanças em seu livro Vigiar e Punir.

“Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. ”

FOUCAULT, p.20

Se, até então, os suplícios eram praticados em praça pública aos olhos de todos que quisessem assistir, com as mudanças nos códigos penais ocorridas em meados do século XVII, o ato de punir passou a ser pouco glorioso e deixou de ser um espetáculo. Em vez de julgamentos secretos e punições que marcavam o corpo, uma nova consciência emerge sugerindo que os crimes deveriam ser julgados de acordo com sua gravidade. Novos conceitos sobre a loucura, atenuantes e culpabilidade aparecem, transformando o processo penal em outro tipo de sistema cujos objetivos iam além de descobrir a verdade sobre um crime, mas avaliar até que ponto essa verdade era plausível e que tipo de punição deveria ser aplicada ao criminoso de acordo com as perspectivas mais complexas na qual a nova ótica passou a avaliar os delitos.

O próprio Freud seria perverso se pensarmos que grande parte de suas ideias tiveram origem nas obras de que quem o teria inspirado: Nietzsche. Em entrevista dada antes de sua morte, o pai da psicanálise admitiu que suas considerações eram de fato muito parecidas com as do filósofo alemão e que por isso teria usado nomenclaturas diferentes para que seu trabalho não fosse confundido com o de Nietzsche. É compreensível então que a confusão entre os termos usados em seus ensaios e as palavras do senso comum seja constante e, no caso da palavra perversão, o psicanalista se apropriou de um termo cujo significado já estava fortemente enraizado no inconsciente coletivo e o adaptou para uma estrutura psíquica que só pode ser constatada em um consultório de psicanálise. Não à toa, um psicanalista nos diria que tal estrutura não está relacionada à maldade ou à corrupção de uma norma vigente, mas sim a condições psíquicas ligadas à satisfação do prazer.

 

[1] O sublime e o abjeto de Elizabeth Roudinesco em A parte obscura de nós mesmos, p.25.

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

Este post tem um comentário

  1. Joao Gabriel de Oliveira

    Um tema muito difícil de ser abordado, que poderia gerar um artigo muito superficial, se fosse escrito por qualquer outra pessoa. Mas vc Dani trouxe informações muito pertinentes e embasadas! Adoraria ler uma parte 2 deste texto, rsrs…

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