A Inveja e o Recalque em Talco de Vidro, de Marcello Quintanilha

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Talco de Vidro, de Marcello Quintanilha, tem sido comentada desde quando foi lançada pela Veneta, em 2015. Conhecido por sua crítica social em outras obras premiadas, o artista a manteve nessa HQ, mas desta vez, o alvo de sua crítica é a classe média de Niterói, RJ, na figura da protagonista do thriller, Rosângela.

Rosângela é uma dentista bem-sucedida, com vida social agitada por conta dos compromissos do marido. Com dois filhos adolescentes e acesso a museus e bons restaurantes, ela não poderia se queixar da vida, mas…

Há sempre um porém: a prima pobre, vítima de relacionamentos abusivos e que, além de linda, a “desgraçada” tem um sorriso de quem se sente abençoada pela vida, ao contrário do que sente Rosângela, que a essa altura, com uma vida estável e sem grandes traumas, gostaria de sentir algo parecido.

Com traço simples e recursos gráficos muito diferentes do que estamos acostumados, a história é narrada em 3ª pessoa, alternando com os pensamentos da protagonista, mas de forma contínua, como se o leitor estivesse dentro da cabeça de alguém no meio de uma crise de ansiedade. Não há pausa para respirar, porque Rosângela está (ou é) visivelmente obsessiva. Nesse sentido, Quintanilha foi extremamente feliz em retratá-la, porque mesmo alguém que nunca tenha tido um único episódio de ansiedade na vida, irá reconhecer essa sensação.

Acima de tudo, Rosângela é o retrato de uma classe média que se tornou uma caricatura há algum tempo: pessoas sem problemas reais e que na falta deles criam dramas fúteis para tentar atribuir algum sentido em suas vidas vazias e enfadonhas. Se esta imagem não lhe parece familiar, sorte a sua! Conheço algumas dessas pessoas que, morando em castelos, se irritam com o barulho dos pássaros na árvore que fica em frente seu quarto. Ou a menina rica que compra dezenas de roupas toda semana e tem um surto histérico diante do guarda-roupas por não ter nada para vestir.

Assim é Rosângela: uma pessoa que teve acesso a boa educação, se formou, exerce a profissão que escolheu, tem o carro do ano, mas é tão infeliz que se apega à imagem da prima do subúrbio para dar algum sentido à sua vida. Rosângela é, na visão mais popular e difundida em textos e músicas, uma recalcada.

No entanto, é curioso pensar que ela não é recalcada por sentir inveja da prima. O recalque, na visão freudiana, é um recurso que dispomos para lidar com a repressão de nossos desejos mais básicos. Estas pulsões, estes desejos, são inconscientes e ainda fariam parte de nossa constituição humana, por isso, ao passarmos a vida tentando reprimir nossos desejos para nos adequar socialmente, estaríamos sujeitos a lidar com o recalque.

Como não sou especialista e acredito que seja necessário o mínimo de embasamento para nos aventurarmos em áreas que não são de nossa expertise, conversei com um psicólogo, o “Poderoso Porco”, do site MDM, para tentar entender qual a maior diferença entre a visão de Freud e nossa concepção de recalque. De acordo com ele, para Freud, “recalque é um mecanismo inconsciente que o aparelho psíquico utiliza para “esconder” memórias e conhecimentos que geram sofrimento/incômodo – em resumo, conteúdos que sejam traumáticos. Freud usa de uma metáfora para descrever o funcionamento do recalque: descreve uma palestra, plateia cheia, e na qual de repente um dos espectadores começa a incomodar, fazer barulhos, ser mal-educado. Vendo que não é possível resolver aquele conflito de maneira civilizada, o palestrante pede que o sujeito que incomoda se retire do auditório, e imediatamente coloca dois seguranças para cuidarem da porta. O ato de colocá-lo para fora do auditório é o ato de recalcar, e o sujeito expulso é o objeto recalcado. Freud vai além e diz que o sujeito expulso começa a esmurrar a porta, a gritar e fazer barulho querendo voltar para o auditório, e com isso ele quer mostrar que o objeto recalcado, retirado do alcance da consciência, também faz “bagunça”, também quer retornar à consciência (aqui entra o trabalho do analista: auxiliar o paciente a resgatar e reelaborar esses conteúdos recalcados para que deixem de incomodar).”

E será que somos todos então recalcados em algum nível? O psicólogo diz que para Freud sim, e que o perigo de não lidarmos com o recalque da forma adequada seria a somatização dos problemas psicológicos, ou seja, sua manifestação física em forma de pesadelos, doenças, entre outras coisas.

Então, embora no senso comum recalque seja sinônimo de inveja, e Rosângela tem mesmo inveja de sua prima, o que observamos na HQ é bem mais complexo que uma simples manifestação de um sentimento tão pequeno. Quintanilha revela um conhecimento sobre o lado obscuro do ser humano que indica uma pesquisa detalhada ou convivência próxima com assunto.

Ao longo da história, o comportamento obsessivo e autodestrutivo de Rosângela são pratos cheios pra terapeuta nenhum botar defeito. Apesar de sua personalidade fútil, as consequências psicológicas da repressão de um desejo são destrinchadas diante do leitor, porque no fundo, o que ela quer mesmo, é poder matar a prima com requintes de crueldade. Não podendo dar vazão à sua ânsia de matar, desenvolve outros mecanismos para lidar com sua frustração e obviamente, qualquer conclusão possível não seria agradável.

Quintanilha não propôs uma história morna onde a personagem começa terapia e consegue lidar com seus problemas como em um filme hollywoodiano. É um drama e é incômodo, desconfortável, afinal, muitas das emoções retratadas são tão universais que é impossível que o leitor não se identifique com alguma situação em algum momento.

Ler Talco de Vidro é cutucar algumas feridas, suas e da classe média brasileira, e se você não estiver bem resolvido com os seus monstros, certamente terá uma experiência tão desconfortável quanto eu tive. Ou seja, é preciso coragem pra embarcar nessa viagem. Você se aventura?

Marcello Quintanilha nasceu em Niterói e e teve seu primeiro quadrinho publicado em 1988 e desde então colaborou com revistas como General e Heavy Metal, além dos jornais espanhóis La Vanguardia e El País. É autor de diversos livros que retratam o cotidiano brasileiro em crônicas visuais e teve obras publicadas na Europa. Ao longo de seus mais de 20 anos de carreira, o quadrinista ganhou admiradores como Aldir Blanc, para quem Quintanilha é o “Rosselini tupiniquim” e David Lloyd, co-criador de “V de Vingança”, que considera seu trabalho “um maravilhoso recorte da vida no Brasil, magnificamente desenhado”. (Via FestComix)

Quintanilha levou também alguns dos principais prêmios de quadrinhos nacionais, como HQ Mix e Bienal de Quadrinhos  e internacionais, como o Angouleme.

Principais obras:

2009 – Sábado dos meus amores (Conrad)

2011 – Almas públicas (Conrad)

2014 – Tungstênio (Veneta) – Atualmente em fase de adaptação para o cinema.

2015 – Talco de vidro (Veneta)

2016 – Hinário Nacional  (Veneta)

(Via FestComix)

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

Este post tem 2 comentários

  1. Rafael Vieira

    Pqp, que matéria bem feita.
    Parabéns! Vi outras matérias também e você arrebenta.
    Essa história me incomodou pra cacete, sobretudo na parte sobre o vazio das relações. Fora o estilo de narração, com suas idas e vindas, voltas, quase como uma formação de pensamento mesmo. Fiquei abismado com tudo. A história, a forma como é contada, os personagens tão críveis. Demais.
    Alguém me disse um boato que “Talco de vidro” já tinha sido vendido pra alguma emissora de TV, como minissérie. Não sei se é verdade.

    1. Daniela

      Obrigada, Rafael.
      Eu demorei um bom tempo pra escrever depois que eu li. Me incomodei com a forma que os balões foram feitos, com a protagonista…
      Depois de umas semanas, eu entendi que o que me incomodava tanto era justamente o fato de ser muito verossímil. Acho que a intenção do Quintanilha era essa mesmo, afinal, arte não é feita só pra agradar, né? Ela serve como contestação, crítica.
      Volte sempre! 😉

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