A História que Ninguém te Contou

Você está visualizando atualmente A História que Ninguém te Contou

Desço na estação Consolação do metrô e meus olhos ardem muito, um cheiro estranho faz com que minhas narinas e garganta também comecem a arder, pessoas correndo na minha direção, cobrindo os rostos e tossindo muito: ”Gás lacrimogênio! ”, alguém grita. Minutos antes vejo três meninas saltarem na estação Trianon-Masp, carregavam um cartaz e seguiam rumo à manifestação contra o estupro.

Não fosse minha imensa curiosidade, teria desistido, mas teimosa que sou, alterei a rota e segui pelos caminhos tão familiares nos arredores da Avenida Paulista, palco de manifestações constantes.

Ao que se devia tanta determinação? A um encontro incrível que aconteceria na Livraria Cultura do Conjunto Nacional: um bate-papo entre a historiadora Mary Del Priore e Bárbara Gancia, do programa Saia Justa da GNT com mediação do jornalista Rodrigo de Almeida. Bom, sou fã da Bárbara desde a primeira vez que a vi no programa. Sempre me identifiquei com sua irreverência e coerência ao abordar todo tipo de assunto, dos mais leves aos mais complicados. Já a Mary, embora não conhecesse seu trabalho, é aquela professora que causa um tipo de entusiasmo que qualquer pessoa que tivesse a oportunidade de vê-la falando, não perderia. Além dos colegas que foram seus alunos, outros alunos e leitores presentes fizeram questão de expressar seu carinho e admiração não só pela professora, mas pela escritora que ela é.

O evento tinha como principal objetivo falar da pesquisa da Mary para seu mais recente empreendimento: Histórias da Gente Brasileira, uma tetralogia sobre a História do Brasil narrada como nunca antes tivemos acesso. Como a autora explicou, seus livros são resultado de cerca de 30 anos de pesquisas em arquivos no país inteiro e buscam contar a nossa história de uma perspectiva pouco usual: a memória de pessoas que vivenciaram, fizeram e contaram histórias, como o escritor José Lins do Rego, além, é claro, dos dados recolhidos ao longo de suas incursões aos grandes arquivos nacionais.

13315665_10209525126547727_3357249882146100797_n

Rodrigo de Almeida descreveu a obra como “Uma grande história das pequenas coisas”, entendendo por pequenas não como menos importantes, mas como considerações relevantes que fazem da assimilação da História algo muito mais interessante que a mera apreensão de datas e nomes.

Como a própria Mary disse, sua intenção é contar nossa história de forma que o leitor possa experimentar o mesmo prazer que tem ao ler uma obra de ficção. Adianto que ao levar pela paixão com que ela narra suas histórias, parece quase impossível acreditar que seus livros não sigam a mesma tendência: com apenas uma descrição, ela foi capaz de levar os presentes a uma rua de um centro urbano de uma zona portuária, onde mendigos pediam, mulheres traziam seus doces para vender (doces que tinham nomes sugestivos de conotação sexual), os sinos da igreja tocavam…em pleno século XVIII.

Sua fala me fez refletir sobre como seria o ideal de ensino de determinadas disciplinas na escola. Conto nos dedos os professores que transmitiam tanto tesão no que faziam que não restava outra opção aos alunos a não ser se apaixonar pela matéria dada. Imagine aprender por exemplo, em vez datas e nomes, que havia negras alforriadas que enriqueceram e casaram, mas que não querendo sustentar os maridos que se aproveitavam delas, pediam o divórcio! Mary contou sobre os diversos pedidos de divórcio que encontrou em arquivos do Rio de Janeiro e Bahia. Imagina saber que a Igreja proibia terminantemente certas posições sexuais, por isso, as esposas podiam se queixar com os bispos quando os maridos sugeriam posições proibidas. Certamente, a história seria muito mais interessante se conseguíssemos nos enxergar nela de alguma forma. Talvez por essa falha em nosso sistema de educação é que a grande maioria de brasileiros desconhece sua história e isso se reflete nos dias de hoje, na nossa forma de enxergar a política, nas manifestações e na polarização que o país enfrenta.

O que me leva de volta ao gás lacrimogênio na estação, aos helicópteros, à tropa de choque armada até os dentes. Mary não está errada em recorrer aos arquivos e aos contadores de história para narrar a nossa História: essa prática já é bem comum em teses de Literatura Comparada, por exemplo, e de outras áreas afins, como Sociologia, Antropologia e História mesmo. Isso porque em face à censura de sistemas ditatoriais, a produção de material documental é muitas vezes comprometida, por isso, não é de se espantar que estudiosos recorram à produção cultural para entender determinados períodos históricos.

Não é possível prever ainda o que nossa produção irá dizer sobre nós daqui a uns anos, mas para entender o que aconteceu até aqui, fica a dica de leitura do primeiro volume dessa obra que deve se tornar uma referência para todos que quiserem saber um pouco mais sobre nossas origens, costumes, curiosidades:  http://historiasdagentebrasileira.com.br/

 

Dani Marino

Dani Marino é pesquisadora de Quadrinhos, integrante do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Formada em Letras, com habilitação Português/Inglês, atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na Escola de Artes e Comunicação da USP. Também colabora com outros sites de cultura pop e quadrinhos como o Minas Nerds, Quadro-a-Quadro, entre outros.

Deixe um comentário