A facilidade em adquirir informação nos deixou burros?

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Havia um mito egípcio sobre a origem da escrita, relatado por Platão em Fedro, narrando o episódio em que Toth, o deus de todas as artes e ofícios, apresenta a escrita ao rei Tamuz, governante do Egito, como uma solução para o problema da memória, impulsionando assim o saber científico. Ora, sabemos das dificuldades que a tradição da oralidade acarreta: grande parte das civilizações antigas não tinha o mesmo hábito egípcio de documentar através da escrita o máximo possível de informações e, por isso, há uma grande dificuldade em estudá-las. O mesmo ocorreria com a ciência, filosofia e matemática, se dependêssemos apenas das informações divulgadas através da oralidade; dificilmente estaríamos em grau tão avançado de tecnologia e informação, especialmente por conta dos tempos sombrios onde apenas uma forma de pensar era permitida – os livros escondidos e repassados de forma mais discreta permitiram que muitos conhecimentos não se perdessem. No entanto, conta o mito, que o rei Tamuz não se convence de que a invenção do deus seria uma solução, e sim uma ferramenta que poderia até mesmo prejudicar o desenvolvimento da sabedoria e da memória. A escrita não curaria a memória dos homens, mas os ajudaria a lembrar. Assim como a leitura de muitos livros não os tornariam mais sábios, apenas repetidores, orgulhosos de terem acumulado grande quantidade de informação, aparentando sábios sem de fato o serem.

Deixando de lado todas as grandes reflexões filosóficas que podemos tirar do Fedro, observemos como, milênios depois, vivenciamos uma situação parecida com a do mito relatado. Com o advento da internet, temos à nossa disposição uma infinidade de informações; jamais em qualquer época da história humana foi tão fácil ser uma pessoa informada de tudo o que acontece ao redor do mundo quanto hoje. Notícias que viajariam durante meses, estão disponíveis num clique, muitas vezes em tempo real, em várias partes do mundo. Bibliotecas inteiras estão acessíveis em plataformas online, uma infinidade de livros, resumos de livros, comentários, filmes, enfim… A internet é a grande criação de nossa era, e nós realmente pensamos que com a facilidade de conseguir informação, o aumento do conhecimento seria incrível; as pessoas seriam mais informadas, portanto, mais sábias.

Como explicar, então, o retorno de pensamentos absurdos, e já totalmente derrubados pela ciência, como o terraplanismo; ou de que a gravidade é uma farsa? Com tanta informação disponível; com vídeos do espaço; com teorias científicas embasadas no fato de que a terra tem formato arredondado; com teorias sobre como funciona a gravidade; sobre a formação do universo e organização dos planetas; com todos os nossos avanços e a facilidade de acessar esses conhecimentos numa linguagem mais acessível – especialmente se o leitor não é físico ou cientista – como várias pessoas estão realmente defendendo e acreditando num absurdo como a “teoria” da terra plana? Existe um mal que afeta alguns pensadores e cientistas:  na medida em que chegam a um ponto em que não conseguem mais desenvolver suas teorias, atribuiriam o feito a alguma força mística. Um deus, por exemplo. Newton mesmo cometeu esse equívoco, quando não soube explicar o motivo do movimento dos planetas e atribuiu o feito a Deus. Vários outros cientistas fizeram o mesmo em tempos antigos. No entanto, no fim das contas, essas pessoas, e não deuses, romperam com muitas tradições de seu tempo; não avançaram até o final, mas também não regrediram! Uma coisa é dizer “a gravidade explica o movimento dos planetas, não sei como eles começaram a se movimentar, deve ter sido Deus”; outra, abismalmente diferente, é dizer “a gravidade é uma farsa, tudo é densidade e a terra é plana”. Como avançar no campo da Ciência, menosprezando suas maiores e mais revolucionárias descobertas?

Antigamente, com o controle total do estado sobre as formas de mídias, era “aceitável” que o povo estivesse sob manipulação de líderes duvidosos. Assim como é possível encontrar razões, através da psicologia, sociologia e ciências sociais, que expliquem por quais motivos a “supremacia racial branca” foi tão defendida no passado, dizimando centenas de milhares de pessoas. Duvidar dos efeitos maléficos do nazismo, do apartheid, e acreditar que a Klu Klux Klan não fez nada de errado ou condenável, depois de tantas informações disponíveis sobre os efeitos negativos destas. Acreditar em supremacia racial branca numa época em que temos tantas informações sobre nosso passado, tanto conhecimento disponível, é um absurdo sem fim! Além de criminoso, é irracional. É pegar todo o nosso avanço científico e jogar no lixo! É pegar todas as nossas referências sociais e simplesmente ignorá-las ou desmerecê-las.

O mesmo sobre o machismo. É fácil ter acesso a informações na Biologia, que derrubam a bobagem que é pensar que mulheres são “naturalmente inferiores aos homens”. É fácil pesquisar na internet (feito possível graças a mulheres programadoras, inclusive), e verificar o quanto de contribuição e quantas invenções foram feitas por mulheres! Não há justificativa para o apagamento dos feitos femininos, ou o impedimento e acesso de mulheres a quaisquer ambientes nos dias atuais. Os benefícios da emancipação feminina são incontestáveis, e, portanto, tornam inaceitável que em nossa era, homens ainda se achem no direito de tratar as mulheres como seres frágeis, dependentes, intelectualmente inferiores; e mais, é inaceitável que homens tratem as mulheres como mercadoria, como posses.

Assim, também é questionável o papel de passividade do povo frente a tantas barbáries provocadas por lideranças políticas, quando temos acesso fácil a registros históricos que mostram para que rumo estamos sendo direcionados. É uma questão lógica, de ação e consequência. Mas seguimos agindo como que à espera de um milagre, enquanto a manipulação de mentes se aproveita do desespero, da incredulidade e da ignorância. Sim, mesmo com tantas facilidades de informação em tempo real, dificilmente algo acontece no mundo sem ser noticiado pelas mídias alternativas, não há a mesma facilidade de manipulação da informação que havia em tempos antigos; ainda assim, somos ignorantes.

Como isso é possível? Por que mesmo com tanta facilidade em adquirir informação vivenciamos tanta falta de conhecimento? Um dos motivos, podemos considerar, é a preguiça em se aprofundar nos assuntos, em realmente conhecer as coisas. Se eu posso, a um clique, procurar citações profundas para compartilhar nas redes sociais e aparentar um conhecimento, não preciso realmente conhecer. Se eu posso ler revistinhas resumidas, muitas vezes tendenciosas, onde uma frase totalmente retirada de seu contexto original aparenta embasar algum pensamento fruto de minha ignorância, não preciso de fato ir em busca de fontes. Assim como, se houver alguém com um bom discurso, que fale coisas que meu pensamento não desenvolvido considerem lógicas, eu não preciso questionar nada, posso apenas repetir o discurso, e em caso de qualquer discussão, começar a disparar “referências” – em sua maioria, tiradas de contexto – para tentar embasar a minha repetição de alguém que, mesmo com o bom discurso, muitas vezes tem tanto conhecimento do assunto quanto eu. Por que eu preciso saber a raiz quadrada de 625, se posso usar a calculadora, ou melhor, se posso pesquisar na internet o resultado? Essa falta de necessidade de desenvolvimento intelectual, à primeira vista, pode parecer inocente; entretanto, é ela quem nos conduz ao ponto em que estamos: muita informação, pouco conhecimento.

Essa preguiça pode ter origem em nossa tendência de não gostarmos das dúvidas. Não gostamos de incertezas, nem da sensação causada pela sapiência da ignorância. Há vários ditados populares inspirados nessa preguiça e receio de desenvolver o pensamento “a ignorância é uma benção”, “o conhecimento traz dores”, “é melhor não saber do que sofrer após conhecer”… As dúvidas nos corroem, e por isso, se aparecem “pílulas mágicas do conhecimento”, que apenas tomando você se torna detentor da sabedoria universal, por que não tomar? Se um youtuber famoso prega, utilizando uma retórica convincente, 1. que a terra é plana; 2. que o nazismo nem foi tão ruim assim; 3. que minorias são apenas pessoas vitimistas… por que não acreditar? Por que nos dar à dor da dúvida, à dor da busca pelo conhecimento?

Pois eu pergunto, deveria o caminho para se alcançar o conhecimento doer mais do que a permanência na ignorância? Qual o problema em não sabermos tudo até o final de nossas vidas, desde que continuemos tentando saber o máximo de coisas possíveis da forma mais completa possível. Não apenas ler um comentário de outra pessoa num site, e propagar aquilo como uma verdade universal. Qual a dificuldade em estudar, compreender e aceitar os dados científicos? Questionar a Ciência não é pecado em nossa época, não vivemos mais num regime em que a Ciência é dominada por religiões que se baseiam no medo, não precisamos crer nela. Hoje o conhecimento científico não é firmado em crenças e sim em teorias, em provas científicas, em fatos! Quer questionar alguma coisa sobre teoria de evolução das espécies? Faça! Mas questionar se realmente a evolução das espécies é um fato, é absurdo! Um mínimo de pesquisa científica mostra que o debate não pode mais partir desse ponto, precisamos avançar. Não se pode, simplesmente, ignorar toda a credibilidade científica “porque alguém gravou um vídeo falando que ela está errada”. Defender que a Terra é plana, e que a Gravidade é uma farsa, eu não tenho nem palavras para descrever o descabimento que é isso! Já tivemos Aristarco, Copérnico, Galileu, Newton, Einstein, Carl Sagan, temos Hawking, DeGrasse Tyson e tantos outros cientistas que se dedicaram a estudar o Cosmos, para vermos a regressão à etapa de ainda questionarem se a terra é plana? A preguiça e o medo do conhecimento acabam por nos fazer regredir tanto, ao ponto de, numa época em que ao mesmo tempo em que cientistas buscam opções para desenvolver a tecnologia para explorarmos o Universo, milhares de pessoas estão discutindo questões em muito já provadas, como a necessidade de direitos humanos.

Quando chegaremos àquele momento histórico de parar de discutir direitos humanos básicos, para discutir os direitos dos hologramas?

Precisamos refletir sobre as grandes ferramentas desenvolvidas por nós, para nos permitir conhecer o máximo de coisas possíveis. Não com a intenção de nos desfazermos delas, jamais! Mas para, de fato, nos tornarmos mais sábios, para que possamos evoluir em nossos debates e crescer em conhecimento. Com tantos recursos em nossas mãos, o primeiro conhecimento a ser desperto é o de como utilizar tanta informação, de forma que saiamos da zona primitiva para a qual estamos nos direcionando. Novas compreensões nos aguardam, precisamos estar disponíveis para elas.

Hypolita Prince

"Nerd" por acaso, e ainda não satisfeita com a denominação. Escrevo sobre feminismo, e outros assuntos que me interessem. Não os desenvolvo tanto quanto gostaria, mas é por preguiça de organizar as ideias nos textos.

Este post tem 3 comentários

  1. Pixel Carnificina

    Que texto maravilhoso, Hypolita!!

    De fato, é triste que com tamanha facilidade em adquirir informação, a galera fique voltando a discutir absurdos como o terraplanismo. É o cúmulo da imbecilidade e preguiça humana. Por essas e outras acho que canais no Youtube como o Nerdologia e derivados são tão importantes. As pessoas vão atrás de informações sobre assuntos como terraplanismo, acredito eu, que muito influenciadas pelo ambiente em que estão inseridas. A velha história do “diga-me com quem andas e te direi quem és”.

    Se criamos um ambiente cada vez maior de espectadores, leitores, etc; de conteúdo científico, cedo ou tarde, vai se tornar algo comum deixar de ir atrás de assuntos tão arcaicos e já derrubados pela ciência, pq as pessoas estarão inseridas num “ambiente”, mesmo que virtual, de pessoas que discutem sobre ciência e se interessam por ela, já que no Nerdologia mesmo traz a ciência pra um viés mais geek e menos aula de ciências da escola… A esperança é que cada vez mais essa ideia atraia o “povão” pra ver um vídeo sobre sei lá, como matar o Wolverine, e os faça aprender algo útil e criar o interesse de ir atrás de ciência de verdade.

    1. Hypolita Prince

      Obrigada <3

      E você tocou num assunto muito importante: esse negacionismo científico seria proveniente da falta de compreensão da linguagem científica? Acredito que sim. Por isso essas iniciativas de falar sobre ciência de forma mais "popular" são bem interessantes, desde que seja feito com muito cuidado, para acabar não reduzindo ou criando mais confusão ainda.

      1. Sebastião Carlos Sobrinho

        globalistas alienados, como sempre. BABACAS ALIENADOS, isto sim!

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